Como nasceu este trabalho?Este livro teve a génese numa grande reportagem que eu fiz há 25 anos. Eu e o Carlos Oliveira, o repórter de imagem, levámos de volta para a casa dele, no bairro de São João, no Huambo, o principal organizador da caravana. Era o sonho de vida que tinha.O Carlos Serra.Que vivia em Joanesburgo, na altura. E eu chefiava a Lusa lá. Conheci a história porque a comunidade angolana na África Sul é muito solidária. Tentámos fazer o percurso em sentido inverso. Ainda havia guerra no sul de Angola, muito intensa. Tentámos prosseguir o caminho, mas foi impossível. Porque, apesar de eu ter guias e autorizações, tanto do MPLA como da UNITA, consoante o que encontrasse primeiro, era mau demais. Especialmente porque levávamos um convidado. Voltámos para Windhoek, e com o chefe da delegação da RTP em Luanda conseguimos ir num cargueiro das Nações Unidas, contrabandeados. Fomos nós e os sacos de farinha num Antonov e aterrámos em saca-rolhas. Como não se podia fazer uma aproximação convencional, devido ao risco de levar com mísseis ou com bazucadas, o avião, depois de sinalizar a vertical da cidade, cai de lado, no limite da estrutura e depois aterra em círculos muito apertados. Não é uma sensação boa. Passado agora mais de 25 anos, a minha editora, a propósito dos 50 anos da independência, desafiou-me a escrever sobre a guerra e a paz. Eu disse-lhes que não queria. Por conhecer a fundo o processo, sei que nós ainda não suturámos esta ferida. As pessoas ainda têm visões muito extremadas, têm muito pouca tolerância a críticas aos seus e há muita dor. E as pessoas não se ouvem. Angola deveria ter tido um processo idêntico àquele que Mandela e Desmond Tutu fizeram na África do Sul, da Comissão da Verdade e Reconciliação. .Falta a reconciliação em Angola.Não é só a reconciliação, é assumir-se que pisámos os direitos de outra pessoa. Eu assisti a quase todas as sessões da Comissão da Verdade e Reconciliação. Em que as pessoas, para serem perdoadas do que fizeram, tinham que admitir e descrever o que fizeram. E depois deixavam de ser puníveis por lei. Em Angola, entre outras coisas, era uma prática de tortura - não vou dizer qual é o partido, porque é uma acusação muito grave - meter à borda do helicóptero pessoas do outro partido que apanhavam, e que ou respondiam às perguntas ou iam aprender a voar. Isto aconteceu, eu vi. E as mulheres nas aldeias, que eram tomadas e retomadas, serviam de lavandaria sexual a quem entrava. Isto não está dito e tem que ser dito.Esse era o primeiro passo. Mas não é só disso que Angola precisa.Angola tem de começar por travar a sangria de recursos humanos das novas gerações. São muito bem-vindos em Portugal, mas eles é que têm de construir o futuro de Angola. Eu, se fosse líder angolano, vinha a Portugal saber o que era preciso para voltarem. Angola tem uma tragédia, como tem a Nigéria, de ter o petróleo. Ou seja, tem uma monofonte de riqueza. E não tem indústrias, praticamente. A agricultura é quase inexistente. Um país que no planalto do Huambo pode fazer duas colheitas por ano, como é que nada disto está a andar? Mas para fazer isso tem de ter recursos humanos. Tem de se tornar muito mais positivo, muito mais recetivo e apagar daquelas cabeças o complexo de que quem vai é para explorar. Há ainda esta hipersensibilidade. É branco, vem explorar. Ou é neocolonialista. Um branco não podes criticar um governo em Angola. Os angolanos podem criticar Portugal. Este trânsito não funciona bem.Angola está bastante dependente da China.Está completamente.E, no entanto, isso não é visto como neocolonialismo.Não, porque não é tão fácil. Portugal tem dois ónus. Fomos a potência colonial, por um lado, e, por outro lado, estar-se a perpetuar esta desculpabilização com o passado colonial. Temos de nos libertar da herança colonial. Mandela, ao fim de 10 anos como presidente, dizia que o apartheid foi inaceitável, estamos todos de acordo com isso, mas não podemos continuar a desculpar-nos dos erros que fazemos, do nepotismo em empresas, da incompetência de só metermos pessoas do ANC à frente de empresas. Esta situação tem uma certa simetria, não é só em Angola, é em Moçambique, em todo o lado, até aqui em Portugal..“O livro é confinado no espaço à caravana que fugiu de Nova Lisboa e no tempo ao período em que a administração era exclusivamente portuguesa. Não se podia imputar a um governo angolano o descalabro da segurança que aconteceu ou a responsabilidade de a repor.”. Investiu muito tempo na investigação?Muito. O livro é confinado no espaço à caravana que fugiu de Nova Lisboa e no tempo ao período em que a administração do território ainda era exclusivamente portuguesa. Não se podia imputar a um governo angolano o descalabro da segurança que aconteceu ou a responsabilidade de a repor. Eu achei que isso era muito importante, porque há claramente, na história de Angola, dois períodos distintos na instabilidade. Eu quis falar sobre o que é menos documentado. E esgravatei tudo. Durante três meses fui para a Hemeroteca ler todos os jornais publicados em Portugal entre o 25 de Abril e o 11 de Novembro. Fotografei todos os artigos, imprimi-os, porque ainda sou da geração do papel, forrei o quarto dos meus filhos para eu os visionar no tempo, e fui-os lendo ao longo das noites. A minha mulher ficou viúva do livro, porque eu lia e escrevia depois de ela ir dormir, para ter ambiente para mergulhar naquele tempo. É como se estivesse a fazer uma reportagem no tempo. Depois, eu estive durante 14 anos na África Austral, dez na África do Sul, e conheci, ao longo do acompanhar da guerra, muitos militares sul-africanos que participaram na famosa Operação Savana, que entrou por Angola e que se cruzou com esta caravana na zona do campo de refugiados de Katwitwi. Deram-me acesso a toda a documentação do grupo fechado, que ainda existe, ainda está ativo. E, por exemplo, o livro contém uma fotografia, que é um documento precioso, que é a fotografia do Pieter Botha, que veio a ser presidente da África do Sul, então ministro da Defesa, no colonato da Cela, junto ao Hospital da Cela. Numa altura em que a África do Sul negava a sua presença em Angola.Exato. Comecei a colecionar documentos, incluindo a intervenção do embaixador de Cuba nas Nações Unidas, onde, semanas antes dos sul-africanos entrarem em Angola, já estava a vangloriar-se de apoiarem militarmente o MPLA. E o MPLA sempre disse que só o fez já depois dos sul-africanos entrarem. Portanto, o livro mostra como não há ninguém que tenha aqui autoridade para dizer que foram as vítimas. Não, fizeram todos parte daquilo que aconteceu de uma forma grave. E, finalmente, o general Pezarat Correia, que foi o elemento essencial nas negociações do Acordo do Alvor, porque era do MFA em Angola, que nos diz que o MFA negociou de boa-fé, mas todos os movimentos, todos, já estavam empenhados em correr às armas porque o compromisso do Acordo do Alvor de ir negociar a paz, ter um futuro conjunto, já estava subvertido à partida.Esse não foi o pecado original? Se os decisores em Lisboa já sabiam que o acordo não iria ser cumprido, porque é que Portugal se prestou a esse papel?Era muito complicado. Com a idade aprendemos que o ótimo é inimigo do bom, ou do possível. O contingente militar que estava em Angola tinha uma componente dos que eram nascidos lá. E esses defenderiam até à morte a sua terra. Mas a esmagadora maioria do contingente eram homens que estavam a cumprir o serviço militar em Portugal e que eram destacados para lá. Assim que veio o 25 de Abril disse-se que acabou a guerra. Um dos jornais que eu tenho colados na parede diz “Nem mais um soldado para as colónias”. Houve unidades que se recusaram a embarcar para Angola. E os que lá estavam nem protegiam a população que estava a ser flagelada, ficavam confinados aos quartéis, por um lado. Por outro, havia um setor muito importante das Forças Armadas, que era completamente pró MPLA. Na dúvida, fechavam os olhos a uma série de coisas, como fecharam quando começaram a desembarcar apoios militares cubanos para o MPLA. E isto é a absoluta verdade.Foi mais do que fechar os olhos.Foi conivência.. Voltando atrás. Além da investigação, quanto tempo demorou a escrever o livro?Quase um ano. Tive de o revisitar muitas vezes. É muito importante na escrita de um livro como este porque eu tenho a noção muito clara de que o livro é muito desconfortável politicamente e cruzam-se aqui uma série de coisas que na sociedade atual portuguesa são muito delicadas. Quando alguém diz, por exemplo, sobre um negro que nasce em Portugal, “Vai para a tua terra”, a terra dele é qual? É Portugal. Se eu lhe disser isso sou o quê? Sou racista. Então por que é que a um branco nascido em África e tem alma em África, se pode dizer “Vai para a tua terra, retornado?”. Não pode, e eu tenho visto que este tipo de paralelismo surpreende as pessoas porque as pessoas não pensaram ainda sobre isto. Isto tem que ser feito com amor, com tato. As pessoas habituaram-se a olhar para quem veio de África, e ainda olha, que eram todos exploradores e racistas. O meu avô materno e o meu tio eram do Partido Comunista e estiveram presos pela PIDE, portanto para eles havia a ideia de “eles tiveram o que mereceram”. E quando eu abordei isto a primeira vez este era o giz que estava no quadro da minha cabeça. E depois comecei a chegar [na investigação] aos campos de refugiados no Sudoeste Africano [hoje, Namíbia] e comecei a dar com vários casais que foram separados porque um era preto e o outro era branco e havia uns mulatos e não sei o quê e começam estes lugares comuns a cair todos.Qual foi a história que mais o tocou?Tantas, tantas. As pessoas a tentarem sobreviver no campo do Calai. Quando chegaram à fronteira descobriram que iriam ficar ali, porque os sul-africanos não os iam deixar passar a não ser que lhes fossem úteis. Ali cruzam-se os seres humanos na sua nudez maior que é gente em absoluto desespero e a serem explorados por militares sul-africanos sem escrúpulos, a serem explorados até por outros portugueses querendo comercializar coisas. O aproveitamento do sofrimento dos outros fica ali muito a nu. É um murro em nós todos como humanidade.Fez a cobertura de várias guerras em África e mais recentemente na Ucrânia. Quais as diferenças?As pessoas perguntam muitas vezes por que eu, jornalista há 42 anos, sempre me empenhei muito [de fazer reportagem de guerra], apesar das atrocidades enormes que vi em todo o lado. Por este paradoxo: é onde menos espero ver gente deslumbrante e situações comoventes de bondade humana e de solidariedade, e é ali que as encontro. Quase recupero a fé na bondade humana nos locais de maior atrocidade. Por exemplo, o meu livro, Zona de Impacto, que precedeu este, os meus direitos são doados 100% a uma organização baseada em Kramatorsk, no Donbass, e que cuida das mulheres que estão na linha da frente. O Mykola, a quem chamei de pai natal de Bakhmut, é um sujeito incrível. Anda com uma carrinha a levar comida para bebé, fraldas, tudo. Ele dizia que um adulto, quando anda em zonas de guerra, relativiza, mas uma criança só tem uma infância, e se a infância for reduzida àquele cenário, ela fica com a vida destruída para sempre, não tem resgate. Então ele dedica a vida, imagina, a devolver às crianças a imagem de que há adultos bons, que há adultos que vêm com um gorro de Natal trazer-lhes prendas. O mundo precisa de pessoas que não desistam do humanismo, e que, como Mandela dizia, mais importante do que a vida é a dignidade, e a dignidade do outro faz parte da minha. .Angola: Vidas QuebradasAntónio MateusClube do Autor320 páginas.Wagner Moura: “Quanto mais democrático for o governo, mais ele vai entender que cultura é importante”.José Pedro Serra: “São doações de extraordinário interesse, dada a qualidade dos espólios, para os estudos ultramarinos”