Andrei Kurkov. "As pessoas do Donbass não eram pró-Kremlin, eram pró-soviéticas"
Em Lisboa para promover Abelhas Cinzentas, romance situado em Donetsk sob bombardeamentos e na Crimeia ocupada, o escritor censurado na Rússia esclarece o que distingue as regiões do Leste do resto do país, bem como os ucranianos dos russos.
O apicultor Sergei Sergeyich e o vizinho Pashka são quem resta numa aldeia do Donbass, na zona cinzenta, isto é, na terra de ninguém no combate entre as forças de Kiev e as separatistas. É este o cenário inicial deste romance, publicado em 2018 em russo, a língua de Andrei Kurkov, e que ainda percorre, além de Donetsk, as regiões ocupadas de Zaporíjia e da Crimeia.
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O que seria mais exato como uma breve descrição deste romance: uma road trip, um épico ou nem uma nem outra?
Em parte é uma road trip, porque a viagem na estrada começa na segunda parte do romance. Mas em geral é uma fábula. É talvez realista, mas, ao mesmo tempo, uma fábula metafórica sobre dois homens, três mulheres, seis colmeias, um carro e uma guerra. Por isso é uma história humana que pode acontecer durante qualquer guerra. Mas tem lugar na Ucrânia, no Donbass, porque eu fui levado pelos acontecimentos a situar este romance lá.
Fez três viagens ao Donbass desde o início da guerra, em 2014. Em que medida essas viagens foram importantes para moldar o enredo?
Eu conheço a mentalidade das pessoas que lá vivem. A Ucrânia é constituída por 26 regiões. Algumas regiões têm a sua própria mentalidade, a sua própria história. São muito diferentes umas das outras. O Donbass era uma enorme área industrial com 7,5 milhões de pessoas, com a maioria delas a trabalhar arduamente, sendo politicamente passiva e nostálgica em relação à União Soviética. O principal é que eles tinham um conhecimento quase religioso do que é bom e do que é mau. As minhas viagens antes da guerra foram provavelmente tão importantes como as minhas viagens depois da guerra. O Pashka e o Sergeyich são representantes típicos do Donbass. Têm uma flexibilidade que depende da sua compreensão do bem e do mal.
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Conheceu algum apicultor?
Oh, descobri duas histórias semelhantes ao que escrevi, mas aconteceram depois de o romance ter sido publicado. Uma história é recente, de um apicultor que saiu do Donbass com as colmeias até Volyn, junto da fronteira com a Bielorrússia e com a Polónia, tendo vivido muitas aventuras pelo caminho. E a outra história é de um velho apicultor que fugiu de Pisky, uma aldeia quase toda destruída na fronteira com Donetsk. Esta é uma história mais triste, porque durante a viagem perdeu metade das abelhas.
Como disse, o Sergeyich e o Pashka são típicos daquela região, mas também são o retrato da adaptação a situações adversas e absurdas. E parecem incapazes de decidir o seu próprio destino, como se estivessem ligados ao seu lugar. Concorda?
Concordo, porque o Donbass é o lugar onde as pessoas têm a mentalidade coletiva soviética russa. A mentalidade original ucraniana é individualista. Os ucranianos são anarquistas. A partir do século XVI elegeram os seus chefes. Não tinham realeza, não tinham aristocracia, tinham pessoas ricas, claro, mas as pessoas ricas eram na sua maioria de origem polaca ou russa. Os ucranianos estavam habituados a não aceitar o que lhes era dado, mas a escolher o que queriam. Depois da União Soviética, a Ucrânia estava dividida numa fronteira entre duas mentalidades - a mentalidade soviética e coletiva russa e a individualista ucraniana. E a cada ano a fronteira avançava para a fronteira ucraniana russa, porque a mentalidade original ucraniana era, diria, salva e defendida pela Ucrânia ocidental, onde as pessoas falavam ucraniano, onde mantinham a sua identidade, porque a identidade é a história, a cultura e a língua. Em Kiev, por exemplo, as pessoas têm identidade ucraniana menos a língua, porque os habitantes de Kiev, até hoje, são maioritariamente falantes de russo, embora falem também ucraniano. Falo ucraniano sem sotaque, mas a minha língua materna é o russo. No Donbass, na Bessarábia [região hoje integrada na Moldávia e na Ucrânia], na fronteira com a Rússia, o povo era como os russos. Queriam ser um grande grupo, não queriam mostrar a cara porque fazem parte da grande multidão. A sua responsabilidade significa falta de responsabilidade. Não se é responsável como no exército, tal como os soldados russos que são agora apanhados, que violam mulheres e matam civis e dizem que receberam ordens dos comandantes para o fazer. Já na Ucrânia, tradicionalmente, cada um decide por si próprio. As pessoas do Donbass, como Pashka e Sergeyich, ainda são ucranianos porque cada qual decide o que é melhor fazer e como é mais correto comportar-se.
Sergeyich vive num mundo em que a realidade e os sonhos quase se fundem. Os sonhos e o simbolismo são importantes para si? Tenta aproveitar ideias dos seus sonhos?
Não, porque eu não me lembro dos meus sonhos. O simbolismo é importante para mim. Tenho muitas metáforas e símbolos, claro, como instrumentos de explicação para o que está a acontecer. Por exemplo, as abelhas são importantes para o Sergeyich não só porque estão a fazer mel, mas porque ele acredita que são os únicos seres vivos que conseguem criar uma sociedade comunista: trabalham arduamente, produzem mel, não são pagas, não se queixam e continuam a trabalhar.
E de forma pacífica.
São como ele, que toda a vida trabalhou numa mina e comportava-se da mesma forma. Portanto, temos uma coletividade natural e uma coletividade artificial com muitas coisas em comum.
É na Crimeia que Sergeyich é confrontado com o racismo dos russos em relação aos tártaros. E é aí que ouve a comerciante russa contar a história da Crimeia distorcida por Putin. A história recente da Crimeia é uma enorme zona cinzenta?
O que está a acontecer agora é bastante claro, e a história da Crimeia não é uma zona cinzenta, porque se uma pessoa quiser pode aprender tudo em pormenor. Primeiro foi uma colónia de Génova, depois uma colónia grega asiática, de seguida tornou-se num reino independente, o Estado Tártaro da Crimeia. E quando a guerra começou de facto entre russos e tártaros, a Turquia protegeu-a. Mais tarde foi ocupada por Catarina, a Grande, a rainha russa, tendo permanecido no império russo o tempo todo. Portanto, a história da Crimeia em si não é cinzenta, mas a história do que estava a acontecer dentro da Crimeia continua a ser. Há muitas zonas cinzentas, não só sobre deportações de tártaros da Crimeia, mas também sobre outras coisas. Porque esta foi a rota de fuga da aristocracia russa para Istambul. Entre 1919 e 1921, durante a Guerra Civil, foram cometidas atrocidades pelo Exército Vermelho na Crimeia. E existem atrocidades cometidas agora contra a Crimeia e contra os tártaros.
Em Portugal, muitos acreditam que os cidadãos do Donbass, porque falam russo eram pró-russos, ou antes, pró-Kremlin, e que foram perseguidos por Kiev.
Kiev é uma cidade de língua russa. Kharkiv, na fronteira com a Rússia, é uma cidade 95% ou 99% russófona, com um milhão de habitantes. E pode encontrar aí provavelmente 10%, 15% das pessoas simpatizantes da Rússia. As pessoas do Donbass nunca foram perseguidas pela língua. É um absurdo, porque o russo é falado em todo o lado. Não eram pró-Kremlin, eram pró-soviéticos, eram nostálgicos em relação à União Soviética. E esta nostalgia foi realmente apoiada pela Rússia, porque o que aconteceu foi que o Donbass estava a ver televisão russa e a receber da Rússia as notícias sobre a Ucrânia, estavam a ler livros da Rússia. Portanto, eram cidadãos ucranianos que viviam no espaço informativo e cultural do império russo. Ao mesmo tempo, tinham uma estranha mistura na cabeça, claro, porque me lembro de que antes da guerra as pessoas não viajavam do Donbass para a Europa Ocidental. Lembro-me de ter perguntado a um homem em 2010, 2011, se ele ia para o estrangeiro de vez em quando, ao que me respondeu: "Não, não, eu nunca vou para o estrangeiro. Por vezes vou a Moscovo, mas nunca vou para o estrangeiro."
Para ser claro, não houve qualquer perseguição nem genocídio.
Nem genocídio, nem perseguição, nada. E mesmo as leis que foram aprovadas pelo Parlamento na Ucrânia, por exemplo a lei de que os documentos judiciais devem ser escritos em ucraniano, não foi cumprida nem em Odessa nem em Donetsk, todos os que escreviam em russo continuaram a fazê-lo. E ninguém se importou. Também está na tradição ucraniana não respeitar as regras e as leis.
O que é diferente da Rússia, que é burocrática.
Sim, muito diferente. A burocracia lá é muito evidente e as pessoas têm medo de quebrar as regras. Na Ucrânia as pessoas não têm medo de nada, não se importam. Fazem o que querem porque pensam que estão certas.
É por isso que os ucranianos têm lutado e resistido?
As pessoas na Ucrânia apreciam a liberdade mais do que o dinheiro ou a estabilidade. E esta liberdade só é possível enquanto a Ucrânia for independente. Na Rússia não há liberdade. A liberdade de imprensa, a liberdade de religião, tudo isso foi tirado lentamente durante os últimos 22 anos, e as pessoas aceitaram. É por isso que o governo e os políticos na Ucrânia têm medo dos protestos de rua, da sociedade civil. Na Rússia não há protestos de rua. No início da invasão havia sete pessoas em Moscovo a protestar contra a agressão russa.
Será que o mais recente agravamento, com o anúncio das anexações de regiões ucranianas pelos russos, quando as suas forças armadas estão em perda, poderá levar a atos desesperados?
Pelos russos? Sim, a guerra nuclear é possível. Daria entre 15% e 20% de hipóteses de os russos utilizarem armas nucleares táticas. E então tudo dependerá da resposta do mundo. Se não houver resposta, as hipóteses de utilizar mais armas irão aumentar.
É um assunto de que os ucranianos estão a falar neste momento?
Estão a falar, mas o que também é muito importante é salientar a diferença mental e a diferença psicológica. Os russos são fatalistas. Todos os russos dizem que não podem fazer nada para mudar a situação, têm de aceitar o que quer que aconteça. Na Ucrânia não há fatalismo, as pessoas estão preparadas para lutar contra o que não lhes agrada. Tivemos muitas discussões no Facebook, na Ucrânia, sobre a guerra nuclear e tudo acabou com piadas. A melhor piada para mim é quando se pergunta a um ucraniano: "Estás pronto para o fim do mundo?", ao que ele responde: "Sim, estou pronto. E tenho planos para seis meses depois." É anarquia e é rebeldia, porque os ucranianos não querem que lhes ditem o que dizer, o que fazer, como reagir, como comportar-se e do que ter medo.
Nasceu em São Petersburgo. Existem diferenças de mentalidade entre Moscovo e São Petersburgo?
São sobretudo diferenças políticas e sociais. Por exemplo, a Sibéria odeia Moscovo. Em Ecaterimburgo ou Novosibirsk sempre se opuseram a Moscovo, também na época soviética. Portanto, se houver protestos algures, protestos reais, começarão não em Moscovo, mas na Sibéria, nos montes Urais. Petersburgo é um lugar liberal, mas não estão prontos para protestar, são uma espécie de liberais intelectuais. Dirão que discordam mas não agirão. Moscovo, estranhamente, é a capital do império, e também onde está a concentração de pessoas que se opõem ao império. O regime aprendeu a usar os dissidentes para proveito próprio e promoção. Como agora: estão a fugir do país como se fossem perseguidos pelo regime russo ou porque estão em perigo. Não estão em perigo, Moscovo não os perseguiu. Quando o FSB ou as autoridades russas quiserem assustar alguém, apenas dizem: "Está bem, pode ir para o estrangeiro como refugiado amanhã, ou depois de amanhã viremos cá prendê-lo." Todos os dissidentes da Rússia estão a deixar o país livremente. Ninguém os detém. E, ao fazerem isto, as autoridades estão a fazer com que aumente a percentagem de apoiantes de Putin.
A maioria dos russos que abandona o país e que fala aos media não critica a guerra.
Não querem é ir para a guerra, não querem ser mortos. E entre esses encontrar-se-ão alguns que estiveram a promover as ideias de Putin na internet e agora não se querem envolver.
Os seus livros estão proibidos na Rússia. Alguma vez sofreu uma ameaça?
Os meus livros foram proibidos pela primeira vez em 2005. Foram republicados em 2006. A partir de 2008 foram novamente suspensos, mas a minha editora ucraniana pôde enviar os meus livros para várias livrarias em Moscovo e São Petersburgo. Em abril de 2014 os livros foram devolvidos da alfândega russa, e a minha editora foi informada de que estão na lista negra. Não tenho leitores na Rússia. Por vezes as pessoas vão à Rússia e são enviadas de volta, outras vão à Rússia e são presas sob acusações falsas. Por isso não tenho planos para viajar para a bela Sibéria ou para a incrível São Petersburgo.
Os escritores e intelectuais que permaneceram na Rússia desistiram de ter um papel crítico?
A maioria deles desistiu. Muitos apoiam Putin, e na verdade uma das primeiras cartas abertas de apoio à guerra foi publicada no principal jornal literário e assinada por mais de 500 escritores, incluindo o diretor e membros da direção do Pen Club russo. Por isso, se falarmos de escritores que são contra Putin e contra a guerra, penso que se trata de uma minoria muito pequena.
Está a escrever outro romance. Está relacionado com a guerra?
Estava a escrever um romance no tempo da guerra civil, em 1919, antes de a invasão ter começado. Parei e não consegui continuar. Estou a escrever sobretudo ensaios e artigos sobre a guerra, que foram reunidos em Diário da Invasão, publicado em Inglaterra, na Noruega, etc. Quero voltar ao romance e por duas vezes tentei. Não consegui, porque para isso é preciso isolar-me da realidade. É impossível.
cesar.avo@dn.pt
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