Cimeira Biden/Putin em busca de uma relação "estável e previsível"
O Presidente dos EUA, Joe Biden, conclui na quarta-feira a sua deslocação à Europa com a anunciada cimeira com Vladimir Putin, numa sequência deliberada e em que pretenderá demonstrar o regresso da "aliança firme" com os aliados ocidentais.
A Ucrânia, a Bielorrússia, o destino do opositor detido Alexei Navalny, os ciberataques serão temas das negociações que se preveem ásperas e difíceis, em particular neste último ponto. A questão dos ciberataques "será um assunto da discussão", assegurou Biden na quarta-feira, antes da sua partida.
A cimeira com Vladimir Putin, que vai decorrer na cidade suíça de Genebra, será o ponto culminante da primeira deslocação de Biden à Europa desde que tomou posse em 20 de janeiro, e surge num momento em que enfrenta dificuldades no seu país, com tensões no campo dos democratas.
Biden, 78 anos, foi eleito para o Senado em 1972, tomando-se no sexto senador mais jovem da história norte-americana e desde então viajou pelo mundo durante décadas, na qualidade de vice-Presidente de Barack Obama ou de líder do Comité das Relações Externas do Senado, tendo-se já encontrado com o líder do Kremlin.
Num momento em que se acentuaram as tensões entre a Rússia e o Ocidente, a sequência da primeira viagem presidencial de Biden ao "Velho Continente" foi deliberada, ao optar inicialmente por consultar os seus aliados europeus ocidentais durante quase uma semana (cimeiras do G7 e da NATO) antes da cimeira com Putin.
Assim, Biden assegurou à Aliança atlântica que os EUA são um "parceiro de confiança" que regressou à doutrina de defesa coletiva da NATO e está preparado para enfrentar a "agressão russa" quer na frente leste quer nos seus conflitos internos, na nova trajetória que Washington pretende imprimir à sua política externa e contrariar a herança da anterior administração de Donald Trump.
A abordagem de Biden face à Rússia assinala uma rutura com a protagonizada por Trump. A única cimeira que mantiveram, em julho de 2018 em Helsínquia, ficou assinalada pela recusa de Trump em legitimar as conclusões das agências de informações norte-americanas e quando Putin continuava a negar interferência russa nas presidenciais realizadas dois anos antes.
A Presidência norte-americana optou agora por fornecer poucos detalhes sobre o encontro a dois, e apenas deixou entender que, ao contrário do que se sucedeu com Trump em 2018, não está prevista uma conferência de imprensa conjunta.
A Casa Branca tem alternado mensagens conciliadoras com advertências dirigidas à Rússia, e já admitiu que espera resultados modestos do encontro bilateral. O único objetivo avançado foi tornar as relações entre os dois países "mais estáveis e previsíveis".
Biden tem insistido que pretende uma relação "previsível" com a Rússia e que pretende baixar a temperatura entre os dois países, assinalada em particular pelas divergências em torno da soberania da Ucrânia e a vaga de ciberataques.
"O problema é que Putin não pretende necessariamente uma relação mais estável e mais previsível", admitiu à agência noticiosa AFP Alexander Vershbow, antigo número dois da NATO.
Os dirigentes da União Europeia, e do Reino Unido, apesar de apoiarem no geral o apelo de Biden para uma relação "estável e previsível", também parecem manter poucas expectativas num avanço significativo após o encontro a reunião de Genebra.
Biden fez questão de frisar que pretende deixar claro aos líderes da China e a Rússia que as relações entre os Estados Unidos e os aliados na Europa "são firmes", e fazer acreditar que o Ocidente pode competir economicamente com a China, apesar de Washington também ter manifestado preocupação sobre as ligações económicas da Europa com Moscovo.
Biden também deverá pressionar Putin para terminar com diversas "atuações provocatórias", incluindo os ciberataques a empresas norte-americanas por "piratas" informáticos a partir de território na Rússia, a detenção do opositor Alexei Navalny ou ainda a alegada interferência do Kremlin nas eleições norte-americanas.
Biden também poderá ser confrontado com as turbulências internas caso o líder da Rússia decida explorar o assalto ao Capitólio de 6 de janeiro ou a votação sobre direitos fundamentais, para contrariar a intenção dos EUA em se afirmarem como "modelo de governação" à escala global.
Por sua vez, o Presidente dos EUA tentará confrontar a Rússia com a suas "ingerências" externas e enviar uma mensagem a Putin sobre a renovação de velhas alianças que comprovam o regresso de Washington a um rumo mais condizente com a sua tradicional liderança e influência no mundo ocidental.
Na passada quarta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, sublinhou o interesse de Moscovo e Washington na estabilidade estratégica e manifestou a esperança de que os dois líderes concertem posições na cimeira de Genebra.
Ao pronunciar-se a favor da "estabilidade estratégica", Lavrov defendeu uma abordagem global desta problemática e indicou que o diálogo com os EUA deve ter em considerações todos os fatores que a influenciam, enquanto Washington apenas parece interessado em alguns aspetos e não se mostra disponível para uma conceção global.
O chefe da diplomacia do Kremlin também frisou o interesse da Rússia na obtenção de "resultados positivos" da cimeira de Genebra, mas insistiu que "para dançar o tango é preciso um par".
Numa confirmação da prevalência das tensões, Moscovo voltou a acusar na semana passada do Estados Unidos de manterem a tensão no leste da Ucrânia, ao não exerceram a necessária influência para que o Governo de Kiev cumpra os acordos de Minsk, que implicaram uma trégua entre as forças ucranianas e os rebeldes russófonos e um roteiro político, há muito bloqueado.
Apesar de fortes divergências e duras acusações mútuas, os presidentes norte-americano, Joe Biden, e russo, Vladimir Putin, devem manter as luvas calçadas e tentar manter abertos canais de diálogo na cimeira de Genebra, dizem analistas.
Joe Biden vai guardar o último dia da sua visita à Europa, na quarta-feira, para se encontrar com Putin, depois de ter prometido, num recente artigo publicado no jornal The Washington Post, que lhe diria, olhos nos olhos, que não lhe permitiria "um comportamento que viole a soberania dos Estados Unidos", referindo-se às alegadas interferências nas eleições presidenciais norte-americanas.
Mas, no parágrafo anterior desse texto, Biden também escreveu que "os Estados Unidos não procuram um conflito" com a Rússia, mas antes preferem "um relacionamento estável e previsível", apesar de numa recente entrevista televisiva ter chamado "assassino" a Putin e lhe ter imputado graves acusações.
"É improvável que essas acusações de Biden constituam qualquer obstáculo sério ao diálogo. O principal motivo do desacordo entre os Estados Unidos não está no plano das relações pessoais", disse à Lusa Pavel Slunkin, investigador do fórum Carnegie Europe.
Para este especialista em Europa do Leste, Estados Unidos e Rússia guiam-se "essencialmente pelos seus interesses nacionais", fazendo diluir quaisquer inimizades ou antipatias que possam existir entre os seus líderes, pelo que defende que Putin e Biden continuem interessados em manter as vias de diálogo abertas.
Ana Isabel Xavier, professor de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa, acredita que a conversa entre Putin e Biden será "cordial, sim, mas não amistosa", lembrando que "é do interesse de ambos que não se procure diretamente o conflito", o que os levará a procurar "algum ponto de convergência a meio caminho".
Esta investigadora leu no artigo de Biden que o Presidente norte-americano utilizará o processo de extensão do tratado de controlo de armas, que está em discussão com Putin, como tópico para manter a "relação estável e previsível que interessa a ambos".
"Mas será nas entrelinhas da declaração final do encontro que poderemos confirmar que a relação entre EUA e Rússia atinge atualmente uma tensão sem precedentes, reforçada pela Crimeia - cujas sanções podem passar pelo veto ao projeto Nord Stream 2 - e mais recentemente pela Bielorrússia", explicou Ana Isabel Xavier.
Nuno Gouveia, especialista em política norte-americana, lembra que "mesmo nos piores tempos da Guerra Fria, os EUA e a Rússia tiveram conversações diretas entre si, pelo que é normal que os presidentes realizem estas cimeiras", aproveitando para "manter canais de comunicação" e "aliviar a pressão de divergências entre os países".
"Mas não há grandes expectativas para um potencial 'reset' das relações entre os dois países, pois os temas abordados deverão continuar a dividi-los: a situação na Ucrânia, as relações da Rússia com os países da NATO, a Bielorrússia, as interferências russas nos processos eleitorais americanos ou as perseguições políticas aos adversários internos de Putin", disse à Lusa Nuno Gouveia.
"Um aspeto interessante que se discute muito em Washington é perceber se Joe Biden irá assumir posturas semelhantes às de George W. Bush ou Barack Obama, que iniciaram os mandatos em termos muito positivos com os russos e depois terminaram os seus mandatos em litígio absoluto com o Kremlin", acrescentou este especialista em política norte-americana.
Pavel Slunkin considera ser "impossível" o retomar do tratado de controlo de armas nucleares entre a Rússia e os EUA, sem a China, uma condição colocada ainda pelo ex-Presidente Donald Trump.
"A decisão tomada em Washington não foi impulsiva, foi equilibrada e orientada para o longo prazo. Por outro lado, a Rússia também não fará concessões sérias. As posições das partes são muito distantes para serem eliminadas num futuro próximo. Especialmente, tendo em conta a total falta de confiança entre Moscovo e Washington", defendeu este analista do Carnegie Europe.
Ao mesmo tempo, Slunkin considera que a reaproximação entre Moscovo e Pequim vai contra os interesses de Washington.
"Mas o Governo de Biden também sabe que o mero desejo de se oporem ao domínio americano não é suficiente para unir a Rússia e China numa frente única. Portanto, os Estados Unidos trabalharão paralelamente nas pistas russa e chinesa, jogando, entre outras coisas, nas diferenças nos objetivos de política externa de Moscovo e Pequim", explicou este analista.
"O facto do encontro (entre Biden e Putin) se realizar após a reunião do G7 e das cimeiras da NATO e com a UE é particularmente simbólico de como o Ocidente tem que estar unido em não ceder a Moscovo e de como os EUA querem assumir-se como porta-voz dessa intransigência", acrescentou Ana Isabel Xavier.
A cimeira de Genebra vai implicar restrições aéreas entre 15 e 17 de junho nesta região da Suíça, e ainda o envio de uma força máxima de mil soldados do Exército nacional em apoio às forças da polícia, proteção civil e outros corpos dos cantões que já se encontram mobilizados.