Na noite das eleições, a 23 de fevereiro, o vitorioso Friedrich Merz anunciou que a “Alemanha está de volta”, referindo-se às suas intenções de revitalizar a economia, o setor militar e o papel de Berlim no palco da política europeia e mundial. E a verdade é que os primeiros 100 dias do líder da União Democrata-Cristã (CDU) como chanceler, assinalados na última quarta-feira, confirmaram Merz a mostrar uma Alemanha muito mais afirmativa no apoio à Ucrânia, contrariando a posição cautelosa adotada pelo seu antecessor Olaf Scholz nos primeiros meses da invasão russa, como se viu pela visita que fez a Kiev pouco depois de ser eleito, acompanhado pelo presidente francês, Emmanuel Macron, e pelos primeiros-ministros da Polónia e Reino Unido, Donald Tusk e Keir Starmer. Aliás, a data dos seus primeiros 100 dias no poder ficou assinalada com as reuniões virtuais que organizou entre líderes europeus, Volodymyr Zelensky e Donald Trump em antecipação ao encontro da última sexta-feira entre o presidente dos Estados Unidos e Vladimir Putin para discutir a guerra na Ucrânia. “Merz deixou claro que o seu objetivo principal era fortalecer a unidade europeia e tornar a Alemanha uma figura-chave na ordem europeia e global”, nota Jan Techau, diretor para a Europa do think tank Grupo Euroásia.No plano transatlântico, depois de uma atitude agressiva em relação a Donald Trump logo depois de ter vencido as eleições de fevereiro, ao dizer que “a [sua] prioridade absoluta será fortalecer a Europa o mais rapidamente possível para que, passo a passo, possamos realmente alcançar a independência dos Estados Unidos”, Friedrich Merz acabou por visitar a Casa Branca no início de junho, optando pelos elogios e por deixar Donald Trump tomar conta da conversa, tendo saído ileso do encontro — o que não aconteceu pouco tempo antes, por exemplo, com Volodymyr Zelensky. Esta segunda-feira, volta à Casa Branca com outros líderes europeus para acompanhar Zelensky em novo encontro com Trump. Na última Cimeira da NATO, Merz também se comprometeu com os 5% do Produto Interno Bruto em gastos com a Defesa, o que acelerará a modernização do setor militar alemão e que só é possível graças a legislação que conseguiu aprovar no Parlamento mesmo antes de ser chanceler com o apoio do SPD e dos Verdes e que permite contornar o travão da dívida de 0,35% do PIB — e que está previsto na Constituição.O seu papel na política externa da Alemanha tem sido tão preponderante que tira muitas vezes o protagonismo do ministro dos Negócios Estrangeiros, Johann Wadephul, nem sempre com bons resultados no tom diplomático e causando polémica, nomeadamente no que diz respeito à questão de Israel. “Este é o trabalho sujo que Israel está a fazer por todos nós. Também somos vítimas deste regime. Este regime de mullahs trouxe morte e destruição ao mundo. Com ataques, com sangue e trovões. Com o Hezbollah, com o Hamas”, disse Merz depois do ataque israelita de 13 de junho contra o Irão. Já este mês ordenou a suspensão do envio de armas para Israel que poderiam vir a ser usadas em Gaza, uma decisão tomada após o anúncio dos planos do governo israelita para assumir o controlo da Cidade de Gaza e que, segundo os media alemães, foi tomada sem uma discussão dentro da CDU e sem informar a sua congénere bávara CSU. “Continuaremos a ajudar este país [Israel] a defender-se”, explicou o chanceler à emissora pública ARD na semana passada, acrescentando que, apesar desta posição, o Governo alemão não poderia fornecer armas para um conflito em que centenas a milhares de civis poderiam ser mortos. “O chanceler solitário explica o seu maior erro”, criticou o jornal Bild. “Merz já moldou o papel global da Alemanha. Os seus 100 dias no cargo colocaram a Alemanha numa nova trajetória, e com ela, a União Europeia — rumo a uma postura de segurança mais assertiva e a um alinhamento transatlântico mais forte. Se esta mudança conduzirá a uma maior unidade e relevância global dependerá não só da visão estratégica, mas também da resiliência política”, escreveu Mina Kazbegi, do Grupo Euroásia, numa análise publicada no GZERO Media. “À medida que a Alemanha se torna mais central para o futuro da Europa, as suas fraturas internas, desde as tensões da coligação e os iminentes desentendimentos fiscais até à influência disruptiva do populismo digital, poderão, em última análise, determinar se as ambições de Merz se manterão.”Crises na coligaçãoA eleição de Friedrich Merz como chanceler no Parlamento foi um prenúncio dos problemas que o aguardavam no plano interno. O líder conservador acordou a 6 de maio com a certeza de que a votação estava ganha, já que a CDU/CSU e os seus parceiros minoritários na coligação governamental, os sociais-democratas do SPD, possuem 328 deputados, mais 12 do que os necessários para uma maioria. No entanto, depois dos votos contados, o líder conservador não foi além dos 310 votos na primeira volta, o que significa que pelo menos 18 parlamentares da coligação não o apoiaram, uma humilhante e histórica derrota, já que nunca na Alemanha pós-guerra um chanceler tinha falhado ser eleito logo na primeira ronda.Tal veio só a acontecer horas depois, numa segunda volta, ao obter 325 votos, mais nove do que o necessário para a maioria absoluta. Houve ainda 289 votos contra, uma abstenção e três votos inválidos. Mesmo assim, e tendo em conta que a coligação governamental é apoiada por 328 deputados, quer dizer que, pelo menos três não apoiaram a eleição do novo chanceler. Quem e de que partido? Não se sabe, pois o voto é secreto, mas foi um primeiro sinal da existência de ressentimentos dentro da coligação direita-esquerda.Dias antes, na assinatura do acordo de governo entre a CDU/CSU e o SPD, Friedrich Merz prometia “uma governação forte, bem planeada e fiável em tempos de profunda mudança, de profunda agitação”. “É por isso que sabemos que é nossa obrigação histórica liderar esta coligação para o sucesso”, disse ainda o então quase chanceler, que pela primeira vez está a desempenhar funções governamentais.Apesar deste voto de sucesso, os momentos de tensão dentro da coligação têm sido vários, começando pela sua posição dura contra a imigração ilegal. Merz justifica esta sua atitude com a necessidade de responder às preocupações dos alemães sobre este tema e que levaram à subida da força de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD), que obteve 20% das eleições de fevereiro, tornando-se no segundo maior partido com representação parlamentar do país. A lista continua, com o SPD a sentir-se também posto de parte em temas como o Estado Social (Merz é a favor do seu emagrecimento) e a proteção ambiental (que não causa entusiasmo ao chanceler). Os pontos de fricção vieram também do lado da CSU, que exigiu cortes dos apoios sociais aos refugiados ucranianos, mais uma vez uma posição contestada pelos sociais-democratas. Desta vez, o vice-chanceler Lars Klingbeil não deixou margem para dúvidas sobre a insatisfação do SPD, apelando aos conservadores que se refreassem nas provocações dentro da coligação. “Já temos demasiadas discussões neste governo”, disse à Welt TV, citado pela AFP.A maior crise no seio da coligação nestes primeiros 100 dias de governação aconteceu no mês passado com a nomeação de três juízes para o Tribunal Constitucional. O SPD apontou o nome da professora universitária de Direito Frauke Brosius-Gersdorf, que cedo foi alvo de acusações de plágio, rapidamente afastadas por especialistas legais. No entanto, uma campanha nas redes sociais, impulsionada pela AfD, conseguiu pintar a académica como uma radical de esquerda, levando a que a CDU/CSU retirasse o seu apoio e consequentemente ao adiamento da votação para a sua eleição, inicialmente marcada para 11 de julho. O SPD acusou os seus parceiros de coligação de sabotagem política e Brosius-Gersdorf acabou por retirar a sua candidatura a 7 de agosto.A eleição dos juízes para o Constitucional voltará a ser debatida depois das férias parlamentares, esperando-se que venha acompanhada de novas fricções dentro da coligação já no período pós-100 dias. O mesmo deverá acontecer quando começarem as discussões para o Orçamento Federal de 2027, que terá um buraco iminente de 30 mil milhões de euros. “Este será um dos maiores desafios de política interna que teremos de enfrentar nos próximos 12 meses”, disse no final de julho Lars Klingbeil, o vice-chanceler e também ministro das Finanças, do SPD. Popularidade em baixaA CDU caiu para segundo lugar nas intenções de voto dos alemães, surgindo atrás da AfD (26%), segundo uma sondagem da Forsa para o Trendbarometer da RTL/ntv, divulgada na terça-feira, véspera de Merz atingir aos seus 100 dias no governoOs 24% recolhidos pela CDU são o pior valor de intenções de voto alcançado pelos conservadores desde a eleição federal de 2021, então liderados por Armin Laschet, quando não foram além dos 24,1%, o mais baixo resultado na história do partido.O mesmo Trendbarometer da RTL/ntv aponta que a maioria dos alemães está descontente com a gestão de Merz como chanceler, com 67% dos inquiridos a afirmar “não estar satisfeito” com o seu desempenho após 100 dias no cargo, sendo que apenas 29% dos inquiridos mostram estar satisfeitos com o chanceler, menos três pontos percentuais do que no inquérito anterior e também o mais baixo desde que assumiu o cargo em maio. Por outro lado, apenas 19% dos alemães acreditam que a CDU pode enfrentar eficazmente os desafios do país. .Merz ultrapassa derrota histórica e vai começar a mostrar que Berlim está de volta ao palco europeu.Merz passa no teste da Sala Oval num encontro em que o alvo de Trump foi Musk