"A posição de Putin é dificilmente abalável, a não ser por uma traição interna"

Professora na Universidade do Minho e especialista em Relações Internacionais, Sandra Fernandes diz que ainda "não existe poder negocial" para uma partição da Ucrânia. E explica que presidente russo "concentra os poderes necessários para uma guerra longa."
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A Rússia anunciou que se pretende concentrar na "libertação" do Donbass. Mas os ataques continuam em várias cidades. Podemos esperar uma "partição" da Ucrânia ao estilo da Coreia?
Os objetivos iniciais russos não foram atingidos e a evolução da guerra revela que os serviços de informação russos subestimaram o adversário. Tem sido muito lembrada a estratégia do "rolo compressor", usada durante a época soviética contra a Finlândia e a Hungria, para atingir objetivos após o falhanço da primeira tentativa. Nesta guerra, apesar de a Rússia não estar numa posição de superioridade no terreno e sofrer perdas militares, provoca terror, tendo a Amnistia Internacional já qualificado os ataques russos de crimes de guerra por atingirem infraestruturas e pessoas civis. O que significa a declaração do Kremlin de sexta-feira passada neste contexto? Por um lado, os russos deixam pensar que se vão concentrar no Leste. Por outro lado, continuamos a observar uma devastação massiva da Ucrânia. A pressão de Putin mantém-se mas ainda não existe capacidade negocial para um cenário de partição, o qual pode no entanto acontecer à medida que o presidente ucraniano reajusta os pontos a negociar em função da devastação e da eficácia das medidas de contenção da Rússia.

Fala-se em ataques com armas químicas, Putin não rejeitou usar armas nucleares. Esse passo poderia levar a uma guerra total?
O uso de armamento não convencional, incluindo o nuclear, é um cenário hipotético que ainda não pode ser descartado no contexto atual da guerra. O papel central desta arma no racional militar russo é patente há muitos anos. Nos anos de viragem da política externa de Putin no sentido de maior confrontação, no final do seu segundo mandato (2007-2008), o general Gareev sublinhava a importância dos armamentos nucleares e a necessidade de a Rússia organizar uma "defesa ativa". A relação de forças era tida como desfavorável ao país em todos os eixos estratégicos e isso justificava a necessidade de aplicar a dissuasão estratégica com armamento nuclear.

As sanções têm sido incapazes de pôr fim ao conflito. Mas um Putin cada vez mais isolado, com a situação no terreno a não avançar, corre o risco de enfrentar uma rebelião que poria a sua posição em causa?
O apoio de Putin no poder sustentou-se nas forças armadas, na polícia, nos serviços secretos e na maioria parlamentar. A era de Putin assenta num sistema que o próprio presidente apelidou, em 2000, "a verticalidade do poder". A expressão remete para reformas ao sistema político e eleitoral mas também para práticas de controlo efetivo do poder através do controlo das oposições. Adicionalmente, no atual regime, os principais atores da corrupção protegem-se mutuamente. Eles formam um sistema interdependente de corrupção cujas vítimas são os agentes económicos, os cidadãos, o desenvolvimento económico e o Estado de direito. Putin é um hiperpresidente que concentra os poderes necessários para uma guerra longa ou mais alargada. Neste contexto, a sua posição é dificilmente abalável, a não ser por uma traição interna.

Se se apontou o dedo à NATO no início do conflito por encorajar as ambições de adesão da Ucrânia, agora a Aliança parece sair reforçada deste conflito. Diria que é quem mais beneficia até agora?
É algo difícil avaliar vantagens desta guerra, sobretudo se considerarmos que a construção europeia, num sentido amplo de sociedades democráticas e abertas, irá prosseguir numa Europa dividida e, porventura, cortada da Rússia. Para a NATO, o reforço imediato vai ao encontro das preocupações existenciais de certos Estados-membros em relação à Rússia. O novo ambiente de segurança pós-2014 nas fronteiras da UE e da NATO já havia trazido mudanças nas suas relações com Moscovo e os países vizinhos. Embora a adesão às estruturas euro-atlânticas em 2004 tenha mitigado as preocupações de segurança desses Estados em relação ao Kremlin, as práticas de securitização voltaram a prevalecer após a anexação da Crimeia e a insurgência no Donbass, em particular nos Estados Bálticos. O distanciamento tanto do passado soviético quanto do Estado que atua como sucessor da União Soviética, ou seja, a Federação Russa, é uma constante. Em essência, as políticas da Rússia têm sido continuamente vistas como uma ameaça à soberania e à integridade territorial embora a natureza e o grau dessa ameaça tenham variado ao longo do tempo. Juntar-se a essas organizações não era de forma alguma a única opção na mesa no início dos anos 1990, como por exemplo procurar permanecer neutro ou promover uma estrutura regional robusta com os vizinhos. UE e NATO eram consideradas as melhores garantias possíveis para a segurança estatal, até porque ofereciam proteção suficiente contra uma Rússia potencialmente poderosa e agressiva. Assim, podemos considerar que a NATO sai reforçada na sua coesão interna e nas garantias de segurança que oferece aos territórios que abrange na Europa.

Tendo em conta as ambições imperialistas de Putin, é credível que procure alargar o domínio sobre outras ex-repúblicas soviéticas?
As ambições de Putin são alimentadas pelo sentimento de humilhação que caracteriza a perceção que os russos têm do seu relacionamento com o Ocidente até à primeira liderança de Putin. A transição da política externa do Kremlin teve como foco a "vizinhança próxima" e a contestação da ordem do pós-Guerra Fria, tida como injusta. Surgiu, assim, a vontade de reequilibrar as relações de poder face ao seu principal parceiro comercial, a UE, e à hegemonia dos EUA marcam o século XXI. Com Putin, Moscovo questionou a ordem pós-Guerra Fria no sentido de operar um regresso da Rússia ao palco principal das relações internacionais. Neste panorama, as ambições russas concentram-se muito numa perspetiva territorial. Perante a falta de robustez nas fundações da arquitetura de segurança europeia, a escalada russa, que passou de uma oposição retórica à capacidade de ação, tem marcado o cenário europeu de segurança com Putin. A perda de territórios após a queda da União Soviética e a herança da política externa de uma superpotência focaram o interesse nacional (vital) russo no "estrangeiro próximo" (hegemonia regional). O envolvimento na Ucrânia desde 2013, assim como os projetos integracionistas na área política e económica (projeto de União Eurasiática), materializam, de forma aberta, a escolha por um rumo divergente e opositor da UE, e do Ocidente. Abandonando a tendência de integração no espaço ocidental, o Kremlin reafirmou a soberania russa, a defesa da integridade territorial e a segurança interna. O objetivo de recuperar o domínio sobre o antigo espaço soviético, segundo as suas próprias regras, continua na atualidade, sob a forma de uma guerra que pode ainda alastrar.

helena.r.tecedeiro@dn.pt

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