"Do ponto de vista estratégico das Lajes, guerra na Ucrânia relembra a do Yom Kippur em 1973"
A guerra feita pela Rússia na Ucrânia obrigou os Estados Unidos a voltarem o foco para a Europa. Isso irá reforçar o valor estratégico da Base das Lajes?
O valor do espaço geoestratégico dos Açores, que geralmente se sintetiza na Base das Lajes, está ligado, em termos militares, à potência que domina o Atlântico, no caso aos EUA. O que importa a essa potência é ter garantia de uso quando entender, sem demasiados problemas relativos a letras de acordos e outras minudências e, talvez ainda mais importante, ter garantias absolutas sobre a não-utilização do espaço, mesmo para (supostas) valências civis, por outras potências que possam ser hostis ou apenas concorrentes. O espaço geoestratégico dos Açores é um espaço seguro para os EUA, que podem cruzar os céus e operar nos mares com suporte nesta localização - a vários níveis, desde identificação e caça a submarinos com aviões P8, reabastecimento, comunicações, etc. - ou apenas com a sua negação a outros, o que é de extrema relevância. É um valor que não se altera com a invasão da Ucrânia pela Rússia.
Do ponto de vista do valor estratégico dos Açores, esta crise Ocidente-Rússia por causa da Ucrânia relembra-o de algum episódio da Guerra Fria?
Relembra a guerra do Yom Kippur, de outubro de 1973, que opôs Israel a vários países árabes. Enquanto aviões de transporte estratégico da então União Soviética entregavam material bélico aos países árabes envolvidos no conflito, o apoio a Israel foi garantido pelos EUA, através de uma ponte aérea de dimensões colossais suportada apenas na Base das Lajes (no circuito entre os EUA e Israel), uma vez que a Europa continental fechou os seus aeroportos à operação receando retaliações árabes, sobretudo ao nível do fluxo de petróleo, o que acabou por ocorrer, provocando uma chamada crise energética. Pelo que julgamos saber, o armamento entregue até agora à Ucrânia ainda não obrigou a operações de transporte aéreo estratégico de alta intensidade a partir dos EUA. Se tal acontecer, o que significaria persistência e eventual alastramento do conflito, será necessário recorrer a aviões com a capacidade de carga otimizada (ou seja, sem folga de combustível para percorrer grandes distâncias). A Base das Lajes reviverá, então, algo semelhante ao movimento que ocorreu aquando da guerra do Yom Kippur, quer com um rodopio de reabastecedores, quer com o reabastecimento em terra de cargueiros estratégicos e de outras aeronaves.
Acha que é para durar esta atenção da América à Europa ou depressa se voltará a concentrar na estratégia de contenção da China no Indo-Pacífico?
Parece claro no atual pensamento estratégico dos EUA que o competidor credível é a China. Note-se que o crescimento chinês é exponencial a todos os níveis. Para alguns economistas, a China já é mesmo a primeira potência económica e para outros é a segunda, atrás dos EUA. Em termos militares, a preparação da China é impressionante. Por exemplo, com o atual ritmo de crescimento, a Marinha chinesa poderá ser a primeira do mundo algures na década de 2030, a não ser que os EUA se envolvam numa corrida à construção naval. Mas o problema chinês - para os EUA - não ficará confinado na zona do Indo-Pacífico, ganhando contornos globais. As rotas da seda vão sulcando o mundo, criando parcerias sem atavismos ligados à natureza política dos regimes (um problema que se coloca aos EUA com a defesa da democracia liberal). Em África, o "poder suave" chinês pode-se equiparar hoje ao esforço feito pelos EUA na Europa depois da II Guerra Mundial. Com a abertura da rota do Ártico e com prováveis novas rotas marítimas a cruzar a América Central, a China tenderá a enxamear o Atlântico de barcos de comércio, o que equivalerá a um esforço de segurança que não poderá deixar de entrar em choque com os interesses norte-americanos de domínio neste oceano, incluindo aqui desafios ainda difíceis de definir no espaço geoestratégico dos Açores. Quer esta breve síntese dizer que a contenção da China será, em pouco tempo, um desafio multidisciplinar e global para os EUA, e não um problema localizado. E os desafios serão ainda maiores e mais globais se o mundo se dividir entre um bloco democrático e um bloco totalitário, tendendo este último bloco para um entendimento entre a China e a Rússia.
Como avalia o desempenho de Joe Biden nesta crise?
Julgo que o maior desafio que se coloca a Joe Biden será evitar, através da diplomacia - incluindo a diplomacia económica -, um entendimento estratégico sólido e duradouro entre a China e a Rússia. A posição da China não será por enquanto percetível, pelo menos para nós. No final do conflito começaremos a perceber o papel chinês, que deverá ser determinado, sobretudo, por garantias de continuação de acesso, talvez melhorado, aos grandes mercados da Europa e dos EUA, uma vez que a Rússia não parece ser um mercado que satisfaça as exportações chinesas. Um entendimento com a China sobre o acesso chinês a matérias-primas essenciais também deverá fazer parte da agenda de Biden. Em paralelo, os EUA não podem dar sinais de fraquejar, constituindo-se como garantia perante os aliados europeus, daí a preocupação do presidente norte-americano em reafirmar que o artigo 5.º da NATO (assistência mútua em caso de agressão) é sagrado. A crise em curso é também uma oportunidade para os EUA deixarem de ter problemas internos face à relutância dos aliados europeus em investirem na defesa, pelo menos ao nível dos 2% do PIB que fazem parte do entendimento que muitos países não cumprem. Aliás, vamos assistir a um rearmamento da Europa que poderá ser muito significativo, restando saber se será país a país - caindo os tabus sobre o rearmamento da Alemanha - ou com Forças Armadas europeias. Em qualquer caso, Biden não considerará a Rússia como um competidor de primeira categoria que possa desfocar a atenção da China. Conseguir que a Europa trate da sua segurança, embora no âmbito da NATO, será um objetivo norte-americano que agora parece ser credível.
Esta guerra no extremo oriental da Europa, como é sentida pela população dos Açores, a meio caminho da América? É demasiada longe e a preocupação maior é a crise sísmica em São Jorge?
Açorianos que conhecemos do nosso quotidiano desligaram-se dos canais de notícias, recusando entrar num ecossistema de sofrimento 24 horas sobre 24 horas. A sociedade está aberta a refugiados, como sempre esteve ao longo da História, e manifesta-se solidária. Quanto à crise sísmica em São Jorge, é apenas mais uma que assola os nossos dias. Um problema que nos acompanha desde o século XV... Nada de grave aconteceu, por enquanto. Apenas alguns sustos.
leonidio.ferreira@dn.pt