Agentes da Polícia Municipal de Lisboa a arrastar, algemado, um homem suspeito de venda ambulante ilegal (imagem de uma reportagem do canal Now). Peritos ouvidos pelo DN questionam legalidade de ações encobertas desta polícia e das detenções efetuadas nesta "operação".
Agentes da Polícia Municipal de Lisboa a arrastar, algemado, um homem suspeito de venda ambulante ilegal (imagem de uma reportagem do canal Now). Peritos ouvidos pelo DN questionam legalidade de ações encobertas desta polícia e das detenções efetuadas nesta "operação".

Governo esconde parecer da PGR que contraria Moedas

Operações recentes da Polícia Municipal de Lisboa suscitam dúvidas de legalidade. Parecer pedido por anterior ministra à PGR sobre poderes desta polícia está pronto desde abril e contraria pretensões de Carlos Moedas. Ministério ainda não o homologou, alegando que está a analisá-lo, e recusa revelar o seu teor.
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A Polícia Municipal de Lisboa (PML) tem vindo a efetuar operações com agentes encobertos, fazendo-se passar por turistas, com detenções musculadas e atitudes que peritos ouvidos pelo DN creem configurar abuso de poder e constituir ações vedadas a esta polícia, porque típicas de órgãos de investigação criminal.

O que esta força policial dependente da Câmara de Lisboa (definida pela lei, como todas as polícias municipais, como sobretudo administrativa) pode ou não fazer, nomeadamente se pode cumprir a ordem que o edil de Lisboa, Carlos Moedas, anunciou em setembro de 2024 ter-lhe dado — proceder a “detenções pela prática de crimes”  —, é o objeto de um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR) requerido nessa ocasião, com urgência, pela anterior ministra da Administração Interna, Margarida Blasco. Tal parecer, que deu entrada no ministério a 4 de abril, não foi até agora objeto de homologação — diz o ministério que porque está a ser objeto de “uma cuidada análise” —, nem de divulgação pública. 

Sucede que o documento, a cujas conclusões o DN teve acesso, reitera o anterior parecer, de 2008, do mesmo órgão sobre o assunto. Parecer esse que, como o novo documento sublinha, foi homologado pelo então governo, ficando a valer como interpretação oficial da lei. Não tendo a lei, como releva o novo parecer, sofrido desde 2008 alterações substantivas, não há motivos para não considerar plenamente atual aquela interpretação.

Quer isto dizer que, tal como ficou claro no parecer de 2008, sendo as polícias municipais definidas como “serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa no espaço territorial correspondente ao do respetivo município”, “não constituem forças de segurança, estando-lhes vedado o exercício de competências próprias de órgãos de polícia criminal”

As competências próprias de órgão de polícia criminal incluem a investigação criminal e a competência para a constituição de arguido — ambas proibidas às polícias municipais, que, como lembra o parecer de 2008, apenas podem deter pessoas em flagrante delito de crimes aos quais corresponda pena de prisão.

Pelo que parece não haver muito para analisar no que respeita às conclusões da nova tomada de posição do Conselho Consultivo da PGR: a ordem que Carlos Moedas anunciou em setembro de 2024 ter dado ao comandante da PML, Superintendente José Carvalho Figueira, será — como aliás logo na altura frisou, em declarações ao DN, Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto —, ilegal.

Porém o gabinete da atual ministra da tutela, Maria Lúcia Amaral, afiança, em resposta às perguntas do DN, que esta “tem, desde o início das suas funções, dedicado uma análise cuidada ao parecer do Conselho Consultivo da PGR, não tendo ainda, essa matéria, sido objeto de decisão de homologação”.

“Para não desautorizar o presidente da Câmara?”

Para justificar o facto de o parecer estar há mais de três meses à espera de uma decisão, o gabinete alega que o documento foi “recebido já na vigência de um Governo de gestão”. 

Refira-se no entanto que a 8 de julho Maria Lúcia Amaral reuniu com Carlos Moedas, tendo este, à saída da reunião, asseverado: “A senhora ministra entende exactamente a necessidade de a Polícia Municipal poder fazer detenções sem ser órgão de polícia criminal”

Dir-se-ia que estas afirmações, até ao momento não contraditadas pela ministra ou pelo Governo, entram em clara colisão com o conteúdo dos dois pareceres da PGR. E também com a opinião da anterior ministra, a juíza desembargadora e ex-inspetora geral da Administração Interna Margarida Blasco. “Para mim, as polícias municipais são polícias administrativas. As polícias municipais podem colaborar com a PSP e com a GNR mas são polícias administrativas”, afirmou Blasco a 15 de janeiro deste ano, numa audição parlamentar.  

Questionada sobre o motivo pelo qual, sendo essa a sua posição, tinha requerido um novo parecer sobre o assunto— “Foi para não desautorizar completamente o presidente da Câmara?”, perguntou o deputado do PCP António Filipe —, a governante explicou que o fez por existir “uma margem para dúvidas no que respeita à liberdade dos cidadãos”. 

Malgrado a sua preocupação com dúvidas em relação a um assunto tão primordial, Blasco saiu do ministério dois meses após ter recebido o parecer que pedira como "urgente", sem o homologar ou tornar públicas as respetivas conclusões. Publicidade que, ante o pedido de acesso do DN, o gabinete da atual ministra recusou: “Encontrando-se este parecer sob apreciação, importa sublinhar que, nos termos da lei (artigo 50.º, n.º 1, do Estatuto do Ministério Público), as conclusões do mesmo só poderão ser publicadas em Diário da República após homologação”.

A resposta do MAI leva a crer que os pareceres do Conselho Consultivo da PGR só podem ser conhecidos publicamente caso sejam homologados. Ora, como se verá mais à frente, o princípio é o da publicidade dos pareceres.

“O Ministério Público devia analisar as atuações da PML”

Enquanto a ex-Provedora de Justiça e atual governante põe todo o cuidado na análise do novo parecer da PGR, a Polícia Municipal de Lisboa (PML) tem vindo a dedicar-se, com ampla divulgação pública, a atividades que chocam especialistas ouvidos pelo DN.

Naquilo que parece constituir uma colaboração muito estreita com um canal de televisão — o Now —, têm sido transmitidas reportagens nas quais se veem os agentes, “disfarçados de turistas”, a surpreender, perseguir e algemar, de forma vigorosa, vendedores ambulantes na Baixa de Lisboa e a forçar a entrada, sem mandado judicial, num alegado restaurante clandestino.

“Vamos de autocarro como se fossemos turistas para apanhar os infratores mais desprevenidos”, diz, numa das reportagens, o oficial que parece dirigir todas estas atuações da PML — trata-se do subintendente Tiago Mota, que foi, com as suas extensas tatuagens, capa da revista Men’s Health em 2022 e desde dezembro de 2024 comanda a divisão policial da PML.  

Acompanhando os agentes e a coberto da respetiva autoridade, a equipa do Now filma tudo, incluindo, no caso de um alegado restaurante clandestino, uma zona onde há camas e crianças. Chega mesmo a conduzir “interrogatórios”, não sendo claro se os interrogados sabem que não são obrigados a responder e que quem faz perguntas não é agente da autoridade.   

“Tenho muitas dúvidas sobre a atuação de polícias municipais à civil”, comenta um dos especialistas consultados pelo jornal. Outro vai mais longe: “A polícia municipal é eminentemente preventiva. Agentes encobertos e coisas do género pertencem à investigação criminal. Polícias municipais andam fardados.”

Os agentes da PML (dirigidos pelo subintendente Tiago Mota, ao fundo) a tocar, fazendo-se passar por turistas, à campainha de uma casa onde alegadamente funciona um restaurante ilegal. (imagem da reportagem do canal Now)
Os agentes da PML (dirigidos pelo subintendente Tiago Mota, ao fundo) a tocar, fazendo-se passar por turistas, à campainha de uma casa onde alegadamente funciona um restaurante ilegal. (imagem da reportagem do canal Now)

Face à reportagem sobre alegados restaurantes ilegais, o primeiro perito citado pergunta: “Como é que, numa operação apresentada como constituindo a fiscalização de um restaurante clandestino, a PML entra, vestida à civil e acompanhada de jornalistas, numa residência? Como é que se permite que a jornalista filme tudo, interrogue as pessoas e examine os documentos que estas entregam?” Para este perito, pode tratar-se do cometimento dos crimes de introdução em lugar vedado ao público e de abuso de poder. Outra reportagem que lhe causa indignação é a que exibe a atuação da PML sobre os vendedores ambulantes na Rua Augusta.“Tenho muitas dúvidas de que não haja ali abuso de poder, porque a forma como a reportagem está construída, com imagens de drone antes da atuação, indicia que existiu, da parte da PML, um planeamento minucioso”, diz. “A PML anda a fazer investigação?” 

Quanto às algemagens a que se assiste nessa reportagem, aflige-se: “Tenho muitas dúvidas sobre as algemagens vigorosas, há sempre a questão da proporcionalidade. E não estamos na minha opinião perante um crime, a única coisa que estavam a fazer era venda ambulante sem autorização, uma contra-ordenação. No âmbito de contra-ordenações, aquelas pessoas não podem ser detidas assim. Agora se a PML vier dizer que os indivíduos estavam a praticar um crime, ou seja, se sabe que estavam a praticar o crime de contrafação, devia ter comunicado à PSP ou à Polícia Judiciária. Porque se a PML fez a operação ciente de que estava ali contrafação, é muito grave. Porque não tem poderes de investigação criminal.” 

Imagem da reportagem do Now sobre a operação encoberta da PML na Baixa de Lisboa.
Imagem da reportagem do Now sobre a operação encoberta da PML na Baixa de Lisboa.

A conclusão deste perito é de que “o Ministério Público deveria analisar estas reportagens”. Outro especialista considera que também a Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) tem a obrigação de agir, uma vez que os agentes da PML são do quadro da PSP.

O DN enviou questões sobre estas atuações da PML a esta polícia, à Câmara de Lisboa e à IGAI. Nenhuma das entidades deu sequer nota da receção das perguntas. O jornal também interpelou a Provedoria de Justiça sobre o assunto, mas esta limitou-se a assegurar não ter recebido qualquer queixa.

PGR pediu autorização para divulgar parecer

Mas voltemos à questão do acesso ao parecer da PGR. “Divulgação de pareceres pedidos por entidades externas” é o título artigo 28ª do Regimento do Conselho Consultivo da PGR, no qual se lê: “O processo relativo a parecer da 1.ª e 2.ª espécie [o parecer de 1.ª espécie é “comum”, o de 2ª espécie é “urgente”] é colocado em prazo pela secretaria, aguardando por 30 dias o despacho de homologação da entidade que o tiver solicitado. Decorrido este prazo sem resposta, ouvido o relator, a secretaria insiste. Se, ainda assim, não sobrevier tomada de posição, no termo de 60 dias, o Secretário do Conselho auscultará a entidade consulente acerca da sua oposição à divulgação do parecer através da base de dados de acesso público.”

Desde 4 de abril de 2025 até esta segunda-feira, quando o pedido de informação e de acesso do DN deu entrada na PGR, decorreram mais de 60 dias úteis — o que deveria implicar que o MAI já teria sido “auscultado” sobre a sua oposição à divulgação.

Isso mesmo — se o ministério já foi auscultado e se se opôs à divulgação — quis o jornal saber junto da PGR. Invocando a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, o DN pediu também acesso ao documento. 

Esta quarta-feira, em resposta ao DN, a PGR informou apenas que “a secretária do Conselho solicitou à entidade consulente que se pronuncie relativamente à divulgação do parecer em referência. Encontra-se a aguardar resposta”.

Face a esta informação, o DN quis saber quando foi tal pronunciamento solicitado e qual a resposta do Conselho ao pedido de acesso ao documento. Estas perguntas não suscitaram reação.

Ainda nos termos do já citado artigo 28º do Regimento do Conselho Consultivo da PGR, a entidade consulente pode, tendo recusado a homologação, opor-se à divulgação: “Recusada a homologação, e sendo manifestado interesse na reserva da consulta, o processo é arquivado, sem mais, mantendo-se confidencial.” Porém, “a menos que se encontrem classificado sob segredo de Estado, os pareceres referidos no número anterior podem ser consultados para estudo por terceiros, mediante autorização do Secretário e ouvido o órgão consulente.”

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