Do crime como instrumento político

Como é que nos transformámos num país em que se leem nomes de crianças no parlamento para as apontar como estando a mais, como indesejáveis, como um perigo? Como é que as instituições estão a permitir que entremos tão depressa nesta noite escura?
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Esta segunda-feira, o DN fez manchete com um relatório no qual se afirma que, se em 25 anos as participações de crime desceram 1,3%, as menções a crimes nas capas de jornais cresceram 130%. Em entrevista ao jornal, o diretor do observatório que produziu o documento associa esse facto ao tão propalado “aumento da percepção de insegurança”. Este responsável — João Vieira Borges, general e académico — refere também que o facto de haver “partidos que usam os crimes como instrumento político” contribui para o sentimento de insegurança e para o reforçar do noticiário sobre criminalidade.

Por coincidência, este relatório, do Observatório de Segurança e Defesa da SEDES (Associação para o Desenvolvimento Económico e Social), sublinhando mais uma vez o desfasamento entre a realidade criminal e a percepção que se tem vindo entusiasticamente a construir sobre a mesma, foi conhecido poucos dias depois de um deputado do Chega, Rui Paulo Sousa, ter asseverado no Twitter que a Amadora é a 17ª cidade “mais perigosa da Europa*”, “à frente de Odessa na Ucrânia”. A seguir, claro, promete (é o candidato do partido à presidência da câmara da cidade) “limpar a Amadora da bandidagem”.

Amadora à frente de Odessa, cidade num país em guerra vai para quatro anos e na qual caem mísseis russos? A sério. Fonte? Um índice produzido por uma empresa sérvia (Numbeo) com base em, e cito o Polígrafo, “inquéritos respondidos pelos visitantes do website, estruturados de forma similar a inquéritos científicos e governamentais estabelecidos”. O mesmo deputado tinha há algum tempo publicado um vídeo no qual se viam, com uma música soturna, ameaçadora, pessoas negras e de outras etnias minoritárias a passar na rua, com as legendas “Um habitual final de tarde na Venteira — Amadora!” e “Vamos limpar a Amadora”

Escusado dizer que o “ranking” da Numbeo é aquilo a que popularmente se costuma denominar de “números tirados do sítio onde o sol não brilha”, já que as percepções, se é disso que se trata, de visitantes quaisquer de um site valem exactamente isso: nada. E, como sublinha o Polígrafo, colidem de frente com aquilo que os relatórios das polícias nos dizem e com os números do instituto Nacional de Estatística.

Já não será tão escusado atentar à propaganda de um partido que nada mais faz que incitar ao ódio (quando não está a processar nos tribunais quem lhe imputa essa atividade) e criar na sociedade portuguesa a ideia de que a democracia é um desastre — tudo de mau aconteceu “nos últimos 50 anos”, para trás pelos vistos estava-se bem —, com os resultados que se veem: não só chegou a segunda força política em número de deputados como condiciona totalmente o discurso e ação da coligação governamental.

Ou seja: o discurso mentiroso, odiento e racista, que mostra pessoas a caminhar pacificamente na rua como uma ameaça (apenas e só por não serem “brancas”) e vai ao inimaginável de usar nomes de crianças de uma alegada escola pública com o objetivo de exemplificar uma suposta “substituição” dos “portugueses de gema” por “imigrantes de nomes esquisitos”, está a triunfar. Porquê? O que leva tanta gente a embarcar nestas mentiras e a achar que o principal problema do país é a imigração, que esta traz insegurança e que “o crime está a aumentar”?

Como é que é possível que esse tipo de crença se compagine com os dados das polícias, vertidos nos relatórios anuais de Segurança Interna, os quais demonstram, sem margem para dúvidas, que ao longo do século XXI a criminalidade participada desceu de modo assinalável?

Vejamos: há 15 anos, em 2009, foram 416 058 os crimes participados. Em 2024, contaram-se menos 14,7%: 354 878. E 2009 nem sequer foi o ano com mais crimes participados neste século: esse palmarés pertence a 2008, com 421 037

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Como Portugal se tornou um país menos seguro #2

Se, por outro lado, atentarmos aos números da criminalidade violenta, a descida é ainda mais impressionante: entre 2014 e 2024, os reportes diminuíram 24,6% (de 19088 para 14385).

Isto enquanto se criaram novos tipos criminais (o que em tese deveria fazer aumentar o número de participações) e a consciência social e até policial em relação a certas realidades (como a violência sexual e a violência doméstica) se adensou, o que significa que haverá maior propensão para participar determinados ilícitos do que há uma década.

Sendo verdade que, como nota o sociólogo Nelson Lourenço, “quanto menos violenta é uma sociedade, mais percepciona a violência e mais reage a ela”, o que explica que a perceção da violência  — e portanto da criminalidade — varie na razão inversa dessa mesma violência, é evidente que aquilo que se repete no discurso político e nos media (para não falar das redes sociais) conforma a ideia que os cidadãos têm daquilo que se passa, mesmo que essa ideia contradiga aquilo que é a sua experiência direta.

E tanto mais quanto mais “autorizada” for a fonte. Se vemos o Governo a adotar os “temas” da extrema-direita, como o alegado “crescimento da insegurança” e o “excesso de imigrantes” como realidades, e realidades relacionadas, a ponto de no seu discurso no congresso do Partido Popular espanhol vermos o primeiro-ministro a vangloriar-se de estar a controlar a imigração, a aumentar a segurança no país e a reforçar a autoridade da polícia (?), como esperar que a maioria das pessoas não conclua que há mesmo um problema grave de criminalidade? 

Estes métodos — culpar grupos minoritários de todos os pretensos males de um país, tratando-os como pestilentos, perigosos e como estando “a mais” — deram resultado num tenebroso passado europeu e noutros passados tenebrosos. 

É porque funcionam, e porque este país de alegados brandos costumes não é melhor que aqueles onde aconteceu e está a acontecer, que é preciso não desistir de os enfrentar, refutar, combater. É esse crime, o da mentira e do ódio, que é fundamental denunciar e perseguir. Porque o maior risco que hoje Portugal enfrenta é o de entrar, e tão depressa, nessa noite escura.   

*Nota: Na edição em papel do DN, em vez de "Cidades mais perigosas da Europa" foi escrito "do mundo" -- pelo facto, peço desculpa.

Curiosamente, no "índice de crime por cidade" da Numbeo relativo ao mundo em 2025, a Amadora estava esta segunda-feira na 109ª posição, abaixo de Odessa (104º). Mas logo acima de Bangalore (cidade de 13 milhões na Índia), oito lugares acima de Medellin, na Colômbia, 37 acima de Minsk, na Bielorrússia, 42 acima de Nova Iorque (EUA), 72 acima de Carcóvia (Ucrânia, a 30 quilómetros da frente da guerra), 91 acima de Mumbai (Índia), 157 acima de Jerusalém (Israel), 162 acima de Moscovo (Rússia), etc. Talvez não seja surpreendente então descobrir, na página da Numbeo referente "ao crime na Amadora", que a classificação da cidade se baseia em 116 (à hora em que a consultei) "contribuidores" "nos últimos cinco anos". Ou seja, o índice da Amadora (e de qualquer outra cidade deste ranking, por decorrência) é o que se quiser dele fazer.

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