Imigrantes à porta da Agência para a Integração, Migrações e Asilo, aguardando atendimento, em outubro de 2024.
Imigrantes à porta da Agência para a Integração, Migrações e Asilo, aguardando atendimento, em outubro de 2024.Leonardo Negrão

Portugal e a imigração no século XXI: o que dizem os inquéritos?

Em 20 anos de Eurobarómetro, a imigração valeu pouco ou nada nas preocupações dos portugueses - até ao outono de 2024, quando 10% dos inquiridos a elegeram como um dos dois maiores problemas do país.
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"Os portugueses encontram-se entre os cidadãos da União Europeia mais receosos quanto à sua segurança física e económica. (…) Sendo perguntado aos inquiridos se tinham medo de 10 potenciais ameaças à sua segurança física: uma guerra mundial, um conflito nuclear ou guerra convencional na Europa, um lançamento acidental de um míssil nuclear, uma acidente numa central nuclear, a proliferação de armas de destruição maciça, conflitos étnicos na Europa, terrorismo internacional, crime organizado e epidemias (…), em média 80 por cento dos portugueses admitem ter medo dos 10 itens considerados, valor que ultrapassa em 17 por cento a média europeia, sendo superior a todos os outros países membros. (…) O crime organizado e o terrorismo internacional são as ameaças que mais preocupam os portugueses, com 86 e 85 por cento, respetivamente.” .

Num momento em que há uma guerra convencional na Europa, a ameaça de um conflito nuclear mobiliza o discurso europeu, e o mundo acabou de passar pela pandemia de Covid-19, poder-se-ia crer que as palavras citadas são contemporâneas. Porém têm mais de duas décadas – dizem respeito ao relatório do Eurobarómetro, inquérito semestral efetuado nos países da União Europeia, do outono de 2002.

Trazem bem clara a marca do 11 de setembro de 2001, o ataque da Al Qaeda aos EUA, que matou 2977 pessoas (fora os 19 perpetradores) e destruiu as Torres Gémeas, em Nova Iorque, assim como, na menção aos “conflitos étnicos na Europa”, a então muito recente guerra na antiga Jugoslávia. E, em menor grau, a pandemia de HIV-sida, que teve em Portugal, devido ao elevado número de utilizadores de drogas, sobretudo heroína, por vida endovenosa, um dos países europeus mais fustigados na última década do século XX.

Não admirará pois que a preocupação com o crime organizado, associado ao tráfico de droga, estivesse entre as mais expressivas no país: quem recorde as sondagens dos anos 1990 e os temas de debate mediático e político no Portugal dessa altura sabe que “droga” e “toxicodependência” estavam sempre nos lugares cimeiros. Como, a partir de 2003, por via da eclosão do caso Casa Pia, o abuso sexual de menores, designado como “pedofilia”, passará a aparecer consistentemente nos primeiros lugares das preocupações nas sondagens nacionais (o tema não faz parte do elenco do Eurobarómetro).

Difícil de compreender, porém, é o facto de, na então UE pré-alargamento a Leste, e sendo dos territórios europeus há mais tempo em paz, no qual os últimos ataques terroristas internacionais tinham ocorrido 19 anos antes (o homicídio de Issam Sartawi, político palestiniano, no congresso da Internacional Socialista, no Algarve, e o assalto de um comando arménio à Embaixada da Turquia), não sendo conhecidas redes importantes de “crime organizado” a operar no país, Portugal surgir como aquele onde se contava mais gente receosa pela sua integridade física, e devido sobretudo a esses dois tipos de ameaças.

A não ser que tanto receio se devesse, paradoxalmente, ao facto de se tratar de um país tão pacífico e num local aparentemente tão a salvo de ameaças territoriais (em contraste por exemplo com a Finlândia, que, colada à Rússia, se notabilizava por ostentar uma percentagem média de “medos” abaixo dos 50%).

Um Portugal no qual, sendo pela primeira vez incluída no Eurobarómetro a “luta contra a imigração ilegal” como uma de duas opções de prioridade de ação da União Europeia (substituindo a “proteção do consumidor”), 89% dos respondentes a elegeram, um pouco abaixo dos 95% que escolheram como mais importantes “lutar contra o terrorismo” e “lutar contra o desemprego”, e dos 94% que apontaram “lutar contra o crime organizado” e “manter a paz e a segurança na Europa”.

No relatório deste Eurobarómetro, lê-se: “Este resultado vem comprovar que a imigração é atualmente uma área de particular relevância”. Não é claro em que factos se baseia este comentário. De acordo com Retrato de um Portugal migrante: a evolução da emigração, da imigração e do seu estudo nos últimos 40 anos (2018, Pedro Góis e José Carlos Marques), em 2002 contabilizavam-se 286 601 imigrantes no território nacional – com predominância para os oriundos de África (122 352), sobretudo vindos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) – quase o triplo dos registados em 1990, quando pouco ultrapassavam os 100 mil.

Certo é que a escolha da luta contra a imigração ilegal como uma das prioridades da UE, ou da imigração como “uma das questões mais importantes” da União não terá grande seguimento nas preocupações dos portugueses nos anos seguintes – e, sobretudo, nunca mais com percentagens de resposta tão elevadas.

Atente-se por exemplo aos resultados do Eurobarómetro do outono de 2005 (quando ocorreu o ataque da Al Qaeda em Londres, em julho, com 52 mortos, o segundo em território da UE após o de Madrid, a 11 de março de 2004, que fez 191 mortos): são apenas 7% os portugueses que consideram que a luta contra a imigração ilegal deve ser uma prioridade na UE, e 2% os que elegem a imigração como um problema do país. Em contraste, querem a UE a lutar contra o crime organizado/tráfico de droga 22% dos inquiridos em Portugal, e 24% indicam a “insegurança” como um dos dois principais problemas do país.

Dois anos depois, no relatório do Eurobarómetro do outono de 2006, lê-se: “Os portugueses estão visivelmente menos preocupados com a imigração e com questões de segurança do que os seus homólogos europeus. Enquanto 21 por cento dos cidadãos da União salientam a imigração como um problema que o seu país enfrenta, em Portugal essa temática preocupa apenas 3% dos cidadãos. Este resultado está em congruência com o que obtivemos sobre o contributo dos imigrantes para o país. Com efeito, Portugal (66 por cento) surge como o segundo Estado-membro – após a Suécia (79 por cento) – cujos cidadãos mais defendem que os imigrantes constituem um contributo importante para o país”.

Na verdade, a perspetiva da imigração como um dos dois principais problemas enfrentados pelo país  esteve no Eurobarómetro, durante todo o século XXI, quase sempre entre zero (em 2010) e 3%, até que, no outono de 2024, “saltou” para 10%, mais do triplo do valor de 2023 – ainda assim metade da média da UE para a mesma pergunta.

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A “ameaça simbólica” e os “três milhões” de imigrantes

Este salto é tanto mais interessante quando no Eurobarómetro da primavera de 2024 a percentagem de inquiridos a indicar a imigração como um problema do país fora de 6%: em seis meses, a preocupação quase duplicou.

Outros inquéritos efetuados na mesma altura, como o European Social Survey (ESS, Inquérito Social Europeu, trabalho de campo entre setembro de 2023 e fevereiro de 2024) e o Barómetro da Imigração (efetuado em junho/agosto de 2024 e financiado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos) dão a ver um movimento no mesmo sentido.

“Há um crescimento claro da visão da imigração como algo negativo”, assente o psicólogo social Rui Costa Lopes, do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa e autor, com Pedro Góis e João António, do Barómetro, cujo relatório foi publicado em dezembro de 2024.
Um exemplo dessa visão espelha-se nos 67,4% de inquiridos do Barómetro que associam os imigrantes ao aumento da criminalidade (uma associação que os dados existentes não permitem fundamentar, mas que é muito comum a nível mundial, relacionando-se sobretudo, como o DN demonstrou num artigo recente, com preconceitos e com a criação de percepções erradas por via dos media e do discurso político). Quase a mesma percentagem (68%), no entanto, considera-os “bons para a economia”– muito perto dos 66% que no Eurobarómetro de 2006 os viam como “bons para o país” – , enquanto 69% acham que contribuem para manter os salários baixos e 54% que obstaculizam o acesso dos portugueses a melhores contratos de trabalho.

Mas, prossegue Rui Costa Lopes, “dizer, com base no Eurobarómetro, que triplicou a percentagem de portugueses que indicam a imigração como um problema pode ser alarmista, porque se trata, no que respeita a esse inquérito, de um aumento de apenas sete pontos percentuais. Os dados do nosso Barómetro são mais a favor da ideia de um crescimento das opiniões negativas do que positivas. Um dado que regista um particular crescimento tem a ver com a ideia de que os imigrantes constituem uma ameaça simbólica (ou seja, "empobrecem os nossos valores e tradições”). Passou de 28% em 2010 para 51% em 2024. É uma alteração brutal e fundamental que também se pode relacionar com o crescimento de um grupo particular de imigrantes (do Subcontinente Indiano) que aliás se revelou [no Barómetro], de forma congruente com essa ideia, como o grupo que recebe os maiores valores de oposição à imigração”.

A razão deste aumento da má opinião sobre imigração pode, crê o investigador, dever-se a uma conjugação de fatores: “Penso que tem a ver com a junção de três fenómenos: 1) um crescimento brutal da imigração, 2) uma instrumentalização política do tema e 3) a mediatização talvez excessiva do mesmo”.

É que se houve de facto um aumento muito significativo do número de imigrantes – entre 2020 e 2023 aumentaram 60%, e mais de 34% entre 2022 e 2023 –, o que pode, concede Rui Costa Lopes, contribuir para uma sensação de “invasão”, “o partido Chega e outros atores sociopolíticos de inclinação populista têm instrumentalizado, de forma eficaz, todas as notícias que envolvem crimes cometidos por imigrantes, utilizando tanto as redes sociais quanto os meios de comunicação tradicionais. E a mediatização do tema da imigração incluiu uma cobertura esmagadoramente negativa. Os media focaram-se sempre mais não só nas notícias dos imigrantes à porta da AIMA [Agência para a Integração, Migrações e Asilo] como na discussão política à volta do ‘problema’ da imigração (dando lastro à associação entre imigração e criminalidade providenciada pelo Chega), e muito pouco destaque às notícias que normalmente acontecem uma vez por ano sobre as contribuições fundamentais dos imigrantes para a Segurança Social, entre outras coisas positivas”.

O Barómetro revela aliás, em relação a esse aspeto positivo da imigração, que a maioria dos inquiridos não acredita que os imigrantes contribuam muito mais para a Segurança Social do que dela beneficiam. E, como outros inquéritos, nomeadamente o ESS, tinham já revelado, indica que a estimativa de muitos dos respondentes quanto ao número de imigrantes em Portugal é de 30% da população, ou seja três vezes os números reais.
“Há uma junção de realidade, instrumentalização e mediatização que resulta numa perceção enviesada e exagerada do fenómeno”, conclui o investigador. “Como é possível que um em cada quatro inquiridos do Barómetro acredite que há três milhões de imigrantes em Portugal?”

Podem 9% dos imigrantes fazer mudar assim a opinião?

Interessante constatar no entanto, como frisa Alice Ramos, também investigadora do ICS e coordenadora nacional do ESS, que mesmo acreditando que os imigrantes são 25% (como foi maioritariamente respondido no ESS de 2014) ou 30% da população do país, a maioria dos inquiridos continua a dizer que podem vir mais.

Sendo a atitude face aos imigrantes pontuada, no ESS, em quatro valores - 1, “não deve vir ninguém”; 2 “podem vir poucos”; 3 “podem vir alguns”; 4 “podem vir muitos” – nas inquirições correspondentes ao ESS 2024 (resultados preliminares, o relatório ainda não foi publicado), que tiveram lugar entre setembro de 2023 e fevereiro de 2024, existe uma subida, face a 2022, no número de respondentes que não querem que venham imigrantes, ou consideram que devem vir poucos.

Mas ainda assim a maioria continua a admitir que possam entrar mais, entre “poucos”, “alguns” e “muitos”: no que respeita a imigrantes de “raça/etnia diferente da maioria”, 47,6% dos inquiridos acham que podem “vir alguns”, e 8,2% que “podem vir muitos”. Que não devem vir nenhuns responderam 11,7%; 31% que apenas poucos. Já para imigrantes da “mesma raça/etnia que a maioria”, 50% acham que “podem vir alguns”, e 10,3% “muitos”; 8,7% recusam um que seja e 29,6% admitem poucos.  

“A média de Portugal é 2,5, na escala de 1 a 4”, informa a investigadora. “Ora se as pessoas acham que há 25 ou 30% de imigrantes e que ainda podem vir mais, é muito bom.” O comentário é irónico: logo de seguida, Alice Ramos lembra que em 2019 o ESS mediu o racismo biológico, perguntando se há raças ou grupos étnicos mais inteligentes e trabalhadores, e “Portugal foi o país com mais respostas afirmativas”.
As pessoas, conclui, “não gostam de dizer que são racistas. Mas há uma coisa que podem dizer: que ‘eles’ roubam empregos, fazem baixar os salários, cometem crimes”.  

Como já referido, quer no Barómetro quer no ESS a rejeição face à imigração é sobretudo dirigida aos imigrantes de grupos étnicos que são vistos como “diferentes da maioria dos portugueses”. E, como nota o Barómetro, especialmente aos que constituem apenas 9% do contingente: os que são geralmente designados nos media e nas redes sociais como “indostânicos”.

Com presença em Portugal muito recente, estes entraram diretamente, como sublinha o relatório do Barómetro, para o top dos menos queridos: “As atitudes em relação aos imigrantes do subcontinente indiano foram medidas pela primeira vez em 2024, já que anteriormente este grupo não tinha presença significativa no país, não fazendo parte dos principais grupos-tipo de imigrantes. Nesta primeira avaliação, observou-se uma oposição extremamente elevada, superior à de todos so outro grupos e atingindo níveis não registados nas décadas anteriores”.

Mas, como frisa Rui Costa Lopes, existe também uma alta rejeição em relação aos imigrantes brasileiros: “É a origem com mais oposição (51%) logo a seguir ao Subcontinente Indiano”. Quanto aos PALOP, 45% dos inquiridos acham que a imigração dali oriunda deve diminuir ou diminuir muito. Só em relação aos imigrantes de “países ocidentais” a perspetiva é a contrária: são 25% a querer que venham menos, quando, sublinha o investigador, eram 47% em 2010.

Altos e baixos de uma relação complexa

Interesse constatar, no entanto, que a atitude dos portugueses face à imigração em geral  tinha vindo a melhorar nas últimas duas décadas.
Olhando para o Eurobarómetro, entre 2004 e 2023, a percentagem mais alta de respondentes portugueses a indicar a imigração como um problema do país ocorrera em 2015: 5%. É o ano em que se dão dois ataques terroristas, reivindicados pelo Daesh/Estado Islâmico, em Paris – primeiro em janeiro, com o massacre no semanário satírico Charlie Hebdo, e depois em novembro, em vários locais do centro da cidade, incluindo numa sala de espectáculos, o Bataclan, durante um concerto, perfazendo 123 vítimas mortais. É igualmente em 2015 que a tragédia da Síria e dos seus refugiados, demandando a Europa por barco através do Mediterrâneo, encontra um símbolo pungente no cadáver de Aylan Kurdi, o menino sírio de três anos fotografado de borco numa praia turca, após o naufrágio, no Mediterrâneo, do barco onde seguia com a família (a mãe e um irmão de cinco anos, que também morreram, e o pai, que sobreviveu), e faz erguer um coro de opiniões favoráveis ao acolhimento.

No Eurobarómetro de outono, 31% dos inquiridos em Portugal apontam a imigração como prioridade da UE, numa subida de 29 pontos percentuais face ao outono de 2014 e à primavera de 2015 (quando a percentagem fora de 2%). A associação da preocupação com a imigração ao receio do terrorismo é aliás bem notória no “pulo” que se nota entre a primavera de 2015 e o outono desse ano - os inquéritos tiveram lugar três ou quatro dias após os ataques do Daesh em Paris – nas preocupações dos cidadãos da UE.

Se em maio de 2015, já após o massacre no Charlie Hebdo, a média dos inquiridos europeus que indicaram o terrorismo como um dos dois principais problemas do seu país e como uma das duas principais questões da UE não ultrapassara, respetivamente, 7% e 6%, no outono foram 36% a considerá-lo assim quanto ao seu país e 25% no que respeitava à UE. Quanto à imigração, o salto é ainda mais notável: se na primavera só 6% dos inquiridos europeus a viam como um problema na UE, no outono são 58%.

Este movimento coincide, no ESS, com aquilo que Alice Ramos refere como uma “descida abrupta na rejeição” da vinda de imigrantes para o país. Essa descida, que se inicia em 2014, explica a investigadora, prossegue até 2019. Em 2020/2021, anos pandémicos,  a rejeição começa a subir, acelerando em 2023/2024.

Ainda assim, quando se olha para as tendências europeias ao longo de duas décadas, como se faz em Portugal no ESS: Atitudes Sociais nos últimos 20 anos , comparando as respostas de 2002 com as 2022, verifica-se que na maioria dos países a rejeição da imigração diminuiu, sendo Portugal, com a Espanha, Noruega e Reino Unido, um dos países onde tal diminuição foi mais notória.

Ou seja, a diminuição da rejeição coincidiu com o aumento do número de  imigrantes. Tal como no medo declarado no Eurobarómetro de 2002 pelos portugueses em relação a realidades com as quais não tinham qualquer contacto nem risco especial, o receio e a rejeição face à imigração podem ser construções sem bases concretas.

Na análise citada sobre as duas décadas de ESS, é efetuada uma associação entre a maior abertura à imigração de pessoas oriundas de países pobres fora da Europa e percebidas como pertencendo a grupos étnicos diferentes da maioria e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH, índice composto por esperança de vida, anos médios de escolaridade e rendimento interno bruto) dos países “hospedeiros”; a mesma relação positiva se verificou com o Produto interno Bruto (PIB).

“Estes resultados”, lê-se na mesma fonte, “indicam que os países mais desenvolvidos do ponto de vista socioeconómico são, tendencialmente, aqueles em que as pessoas se opõem menos à imigração. Outros estudos realizados na Europa mostraram já que o aumento do fluxo de imigrantes não tem impacto significativo nas atitudes perante a imigração”. 

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