Os protestos face às regras do concurso não impressionaram Amadeu Guerra, que a 18 de junho propôs no Conselho Superior do Ministério Público, a que preside, que estas se mantivessem tal qual tinham sido aprovadas.
Os protestos face às regras do concurso não impressionaram Amadeu Guerra, que a 18 de junho propôs no Conselho Superior do Ministério Público, a que preside, que estas se mantivessem tal qual tinham sido aprovadas.Gustavo Bom / Global Imagens

Comissão para a Igualdade acusa PGR de discriminar mulheres

Regras de concurso de magistrados são “coercivas e juridicamente inaceitáveis”, colidindo com “direito à igualdade e não discriminação” e à “proteção na parentalidade”, diz CIG, que enviou o caso para a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego. Sindicato prepara providência cautelar.
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O concurso de magistrados de Ministério Público cujas regras foram exaradas a 4 de junho, por deliberação do Conselho Superior do Ministério Público (presidido pelo procurador-geral da República, Amadeu Guerra), exclui candidatos que, “previsivelmente, se encontrarão em situação de redução de serviço ativa ou situação de ausência prolongada superior a 60 dias, durante o período compreendido entre 1 de setembro de 2025 e 31 de agosto de 2026” e exige uma declaração “sob compromisso de honra” de que tal não ocorrerá. Normas que para a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) são “coercivas e juridicamente inaceitáveis face aos princípios constitucionais de igualdade e proteção na parentalidade”. 

Estas qualificações fazem parte de uma queixa, à qual o DN teve acesso, enviada pela CIG à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE). 

Não se pode admitir que as magistradas e os magistrados sejam excluídas/os, com base em cenários potenciais e decisões pessoais futuras, especialmente ligadas à parentalidade, ou coagidas/os a adiar a maternidade e a paternidade, que constituem valores sociais eminentes nos termos do n.º 2 do artigo 68.º [Paternidade e maternidade] da Constituição da República Portuguesa/CRP”, lê-se na queixa da CIG.

Em causa também, considera esta entidade, está a observância do princípio da igualdade e não discriminação (artigo 13.º da CRP). A CIG imputa ainda às normas ditadas para o concurso “indeterminação semântica, omissão de distinções relevantes (doença, gravidez, licenças de parentalidade), e insuficiente densidade normativa”, o que, afirma, “contraria princípios básicos de boa legística — como clareza, precisão, previsibilidade, coerência, e a necessária conformidade com o sistema jurídico.”

Por todos esses motivos, a CIG requer, em missiva enviada à CITE na passada sexta-feira 4 de junho, que esta analise as normas do referido concurso e emita parecer. 

Os pareceres da CITE são em regra vinculativos, só podendo ser contrariados pelos tribunais. Porém, como explica ao DN a presidente deste organismo, Carla Tavares, “tem sido entendido que os pareceres da CITE apenas se aplicam às relações de emprego em que haja uma relação de dependência. Ora, as magistradas e os magistrados judiciais, por terem um estatuto próprio, não se enquadram nesta relação, que não é de emprego, pois a PGR não é entidade empregadora das procuradoras e procuradores do MP. Ou seja, emitindo a CITE um qualquer parecer, coloca-se uma questão, efetiva, de eficácia.”

Apesar de, informa, não ter ainda conhecimento da queixa contra a PGR, Carla Tavares considera que “ainda que um eventual parecer — sendo a  CITE um órgão colegial, qualquer proposta de parecer terá que ser sempre sujeita a discussão e votação de todos os seus membros — possa não ser vinculativo, a situação não deve ter, apenas, o silêncio da CITE.”

Compromisso de não engravidar

A queixa da CIG à CITE surge na sequência de uma carta, datada de 16 de junho, da Associação Portuguesa das Mulheres Juristas (APMJ) para Amadeu Guerra, na qual se adverte, “com profundo espanto, indignação e repúdio”, ser o “Aviso de Abertura de Movimento da Magistratura do Ministério Público, constante da Deliberação n.º 724-A/2025, de 4 de junho, publicada no D.R. n.º 107/2025” (que estabelece as normas do mencionado concurso), “suscetível de discriminar em razão do sexo, de forma indireta, as mulheres magistradas”.

O dito aviso, prossegue a APMJ, “viola, de forma notória, clara e ostensiva, as normas relativas à proteção na maternidade, doença, assistência a terceiros, igualdade no acesso a cargos e conciliação da vida profissional com a pessoal e familiar”. 

E explica porquê: “Com esta deliberação impedem-se de concorrer (…) as Magistradas grávidas, as Magistradas que se encontrem a realizar tratamentos de fertilidade, as Magistradas de baixa médica por gravidez de risco, as Magistradas em uso de licença de maternidade, as Magistradas com baixa médica por doença, as Magistradas que pretendem engravidar, as Magistradas puérperas e lactantes”.

Sendo que, aponta ainda a APMJ, “as Magistradas não abrangidas nos segmentos descritos, caso pretendam concorrer a esses lugares, terão de assumir o compromisso, válido por doze meses, de que não engravidarão, não adoecerão, não assumirão funções de cuidadores informais de familiar(es), e de que se não se submeterão a tratamentos de fertilidade!!!

Chamando a atenção para o facto de competir ao MP “promover a defesa da legalidade democrática”, a APMJ afirma que, “para além de todos os instrumentos internacionais a que o Estado Português está vinculado [como será o caso da Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de 1979], a Constituição da República Portuguesa, o Estatuto do Ministério Público e o Regulamento dos Quadros Complementares de Magistrados do Ministério Público não permitem tais disposições”. 

“Deliberação é completamente ilegal”, diz sindicato

Também o sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) tomou já posição sobre a matéria. Começou por apresentar uma carta aberta, subscrita por 1200 procuradores, a exortar o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) a anular as normas do aviso. Mas tal, lamenta ao DN a procuradora Alexandra Chicharo das Neves, da direção do sindicato, não surtiu efeito.

Como foi noticiado, Amadeu Guerra anunciou que levaria a questão à reunião seguinte do CSMP, que teve lugar a 18 de junho mas, de acordo com o boletim informativo do órgão, na dita reunião foi deliberado, “por maioria, aprovar a proposta do Senhor Procurador-Geral da República em manter o movimento tal como aprovado no Plenário de 4 de junho”.

Pelo que, diz ao DN a representante sindical, a 20 de junho o SMMP submeteu uma reclamação ao CSMP na qual pede a revogação das ditas normas. Está igualmente convocada uma greve de dois dias a partir de 9 de julho (data em que está marcada a reunião do CSMP que deverá aprovar as listas de colocações dos candidatos). 

Antecipando o provável resultado da reclamação, o sindicato está também, revela a procuradora, a preparar uma providência cautelar para dar entrada nos tribunais administrativos, de forma a impedir as normas em causa (e outras que fazem parte do concurso) de entrarem em vigor.

Como a assinatura do dito “compromisso de honra” só terá de ter lugar, explica Alexandra Chicharo das Neves, em setembro, quando os candidatos colocados assumirem as suas posições, a providência cautelar, por ser uma ação urgente, poderá ainda ter o efeito de sanar o que o sindicato reputa de “uma deliberação completamente ilegal”.

A argumentação da providência cautelar e da correspondente ação judicial deverá seguir a da reclamação que o SMMP apresentou, e à qual o DN teve acesso. Nesta, lembra-se que entre os alvos das normas citadas estão, desde logo, magistrados aos quais tenha sido diagnosticada uma doença — o que o SMMP considera “uma discriminação do CSMP aos magistrados com doença diagnosticada, violadora do artigo 13.º, n.º 1, da CRP, e uma exigência de que o magistrado ou o [seu] médico façam futurologia [ou seja, que saibam prever se no período de um ano vai ocorrer impossibilidade de trabalhar superior a 60 dias]”.

Por outro lado, e seguindo a argumentação da APMJ (da qual Alexandra Chicharo das Neves é associada), acusa-se a deliberação de constituir  “um ataque direto a todas as mulheres em idade fértil que pretendam engravidar e constituir família” e “aos magistrados homens que sejam previsivelmente pais naquele período de tempo e que ou renunciam à licença por paternidade partilhada ou concorrem (gozar a licença e concorrer é que não é possível)”, tratando-se assim de uma “liminar discriminação das magistradas, mas também dos magistrados do Ministério Público ‘previsivelmente’ futuros pais.”

Lembrando que “os artigos 13.º, 59.º, n.º 1, e n.º 2, alínea c), e 68.º, n.º 3, todos da CRP, proíbem a discriminação em razão do género e impõem uma especial proteção do trabalho das mulheres durante a gravidez – sendo uma tarefa fundamental do Estado a promoção da igualdade entre homens e mulheres (artigo 9.º, alínea h), também da CRP)”, o SMMP conclui que as normas em causa violam, “de forma flagrante”, a Constituição, o que, nos termos do Código de Procedimento Administrativo, “acarreta a sua nulidade”.

Efeito discriminatório já surtiu efeito 

Malgrado os protestos e as normas reputadas de ilegais e inconstitucionais, assim como a esmagadora proporção de mulheres face ao número de homens nesta magistratura (serão, segundo os números citados pela APMJ na carta a Amadeu Guerra, 1183 mulheres para 539 homens), este movimento de magistrados terá tido cerca de mil candidatos.

Como admite Alexandra Chicharo das Neves, mesmo que a exigência do “compromisso de honra” seja anulada, à partida terá já existido discriminação nas candidaturas, uma vez que muitas pessoas se poderão ter auto-excluído por considerarem que ou não podiam ou não queriam assinar o dito compromisso.

É que, lembra, “em rigor, numa interpretação legal e fundamentalista, se se assina aquele compromisso de honra e depois se tem de faltar mais de 60 dias, a consequência pode ser um processo disciplinar.” Afinal, frisa a prcuradora, o autor das normas em causa é, precisamente, o órgão que detém o poder disciplinar: o Conselho Superior de Magistratura.

Que o órgão disciplinador do organismo que tem por missão promover a defesa da legalidade democrática exare normas que, a serem impostas numa qualquer empresa privada, seriam com grande probabilidade objeto de um parecer vinculativo da CITE no sentido da sua anulação merece de Alexandra Chicharo das Neves um comentário amargo. “Cria-se uma situação, pela interpretação de que os pareceres da CITE não têm caráter vinculativo no caso do MP, que deixa um vazio que permite que outras entidades públicas façam impunemente o mesmo. É um vazio que perpetua  a discriminação e a pode consolidar de facto.” 

Os protestos face às regras do concurso não impressionaram Amadeu Guerra, que a 18 de junho propôs no Conselho Superior do Ministério Público, a que preside, que estas se mantivessem tal qual tinham sido aprovadas.
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Os protestos face às regras do concurso não impressionaram Amadeu Guerra, que a 18 de junho propôs no Conselho Superior do Ministério Público, a que preside, que estas se mantivessem tal qual tinham sido aprovadas.
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