Na aldeia de Santiago do Cacém, os produtos agrícolas são produzidos na floresta, com base nos princípios da permacultura.
Na aldeia de Santiago do Cacém, os produtos agrícolas são produzidos na floresta, com base nos princípios da permacultura. D.R.

Alentejo vê nascer primeira aldeia regenerativa da Europa financiada com 'tokens'

A Tradicional Dream Factory já angariou 400 mil euros e precisa de mais um milhão para concluir a eco-aldeia. A tecnologia é um dos motores fundamentais deste projeto.
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É em Abela, no concelho de Santiago do Cacém, que está a nascer a primeira aldeia regenerativa da Europa a usar a tecnologia para obter financiamento, gerir o acesso e administrar a terra. Chama-se Traditional Dream Factory (TDF) e está a transformar a propriedade de uma antiga fábrica de aves num local de vida comunitária, sustentável e tecnológica, de portas abertas a todos os que valorizam a natureza. O projeto da eco-aldeia, que arrancou em 2021, está a ser financiado por tokens e já garantiu 400 mil euros com a venda de $TDF - cada unidade deste ativo digital custou 242 euros. Agora, precisa de angariar cerca de um milhão de euros para desenvolver a segunda fase.

De acordo com Samuel Delesque, empreendedor francês com carreira no setor tecnológico e o rosto da TDF, o trabalho está em curso e, de momento, focado na construção de 14 suites, uma piscina natural e um restaurante farm-to-table, cuja conclusão está prevista para o próximo ano. O passo seguinte será a construção de 23 casas. Estes equipamentos de hospitalidade vêm juntar-se às tendas glamping já instaladas na aldeia, às áreas para caravanas, à cozinha industrial, sauna e espaços para coworking e eventos. Foram também criadas áreas de retenção de água, instalado um reservatório com capacidade para 1,2 milhões de litros para aproveitamento das chuvas e implementado um sistema de filtragem de águas cinzentas para regar as mais de duas mil árvores plantadas.

Até ao momento, o projeto absorveu o capital angariado pela venda dos token (400 mil euros), mais 200 mil da aquisição do terreno e outros 400 mil obtidos em empréstimos, explica. Pela aldeia, já passaram cerca de três mil pessoas desde 2021, “principalmente para ajudar na construção, aprender agricultura regenerativa, cultivo de cogumelos e criação de aldeias regenerativas”, conta o empreendedor.

Os detentores de $TDF podem usufruir do espaço de forma quase gratuita. Apenas lhes são cobrado “os custos operacionais - utilidades, alimentação e manutenção”, diz. Para outros hóspedes, os preços variam entre os 15 e os 90 euros por noite, consoante o tipo de alojamento. Segundo Delesque, a TDF atrai sobretudo pessoas do “setor cripto, interessadas em saber como a blockchain pode ser usada como mecanismo de coordenação para um impacto positivo, incluindo no movimento ReFi (finanças regenerativas)”.

Nómadas digitais e famílias

Mas a sua esfera de atração é mais lata. A aldeia está a ser construída para “pessoas e organizações que procuram viver, trabalhar e criar num contexto regenerativo”. O público-alvo inclui profissionais remotos, empreendedores, artistas, investigadores e famílias que valorizam a natureza, a comunidade e a inovação, e também interessados em agricultura regenerativa, ecoturismo e novas formas de gestão comunitária. Como sublinha Samuel Delesque, a TDF permite “aceder a ecossistemas saudáveis e a lugares inspiradores para viver e trabalhar” e a contribuir “para a sua regeneração e proteção a longo prazo”.

Para já, a aldeia tem tendas glamping e áreas para caravanas. Vai ter suites e casas.
Para já, a aldeia tem tendas glamping e áreas para caravanas. Vai ter suites e casas. D.R.

O conceito de regeneração que está a ser posto em marcha na TDF passa por desenvolver a terra para que esta possa sustentar mais vida, explica. “Trabalhamos com funções essenciais: retenção de água, biodiversidade, captura de carbono, redução de resíduos e minimização de recursos externos. Criámos áreas de retenção de água com valas e lagoas, aplicamos princípios de permacultura e sistemas agroflorestais para produzir alimentos a partir de florestas em vez de campos, capturando carbono e criando habitats ricos. Já plantámos mais de 100 espécies de árvores, garantindo um ecossistema resiliente que restaura o solo, infiltra mais água e atrai vida selvagem”, descreve Samuel Delesque.

Segundo explica, “estamos a restaurar o ciclo hidrológico local, retendo toda a água da chuva no terreno para recarregar aquíferos e, este ano, pela primeira vez, não extraímos água de poços, elevando a água subterrânea de 20 metros (ano passado) para cerca de três metros de profundidade”. Foi criada um agrofloresta, que produz alimentos, abriga a fauna e é resiliente à seca e ao fogo. Por último, foi desenvolvida uma horta no-till, método que evita revolver o solo, de forma a preservar e melhorar a sua estrutura, e vai arrancar uma produção de 200/300 quilos de cogumelos por semana.

A eco-tecnologia

Todo este processo de ligação à natureza e recuperação de habitats naturais tem na tecnologia a origem do financiamento. A TDF é um espaço de experiência na interseção entre natureza, tecnologia e comunidade, diz. Na eco-aldeia, são usadas ferramentas como o Open Forest Protocol e a biodiversidade é monitorizada por eDNA (SimplexDNA), de forma a medir os benefícios ecológicos e a ter uma abordagem de regeneração baseada em dados. “A tecnologia também rastreia mudanças no ecossistema, como retenção de água e biodiversidade, e estamos a testar modelos de IA para difundir informação, facilitar o uso das infraestruturas e, no futuro, apoiar funções ecológicas do local”, aponta. Há também colaborações “com startups do setor agro-inovador em projetos como agricultura vertical, hidroponia de baixo impacto e design agroflorestal assistido por computador”.

A ligação à tecnologia vai ainda mais longe. Ao berço do projeto. A TDF é uma Organização Autónoma Descentralizada (modelo de gestão digital, governado pelos membros através de blockchain), que está integrada na associação OASA. A entidade foi fundada em 2022, na Suíça, como associação sem fins lucrativos, com o objetivo de promover a gestão regenerativa da terra e criar sistemas vivos prósperos em áreas de conservação em todo o mundo, afirma Samuel Delesque. A escolha da Suíça para sede da OASA deveu-se ao reconhecimento legal do país da tecnologia blockchain e das Organizações Autónomas Descentralizadas (DAO), o que permite “estruturar um ativo digital que gere benefícios ecológicos, ao mesmo tempo que cria novas formas de governança da participação na terra num modelo cooperativo que coloca a natureza no centro”, esclarece.

A OASA conta com membros da Dinamarca, Suíça e Reino Unido, que se juntaram ao movimento porque “procuram uma nova forma de viver - ao serviço da vida, e com uma mentalidade regenerativa em vez de extrativa”, sublinha. No cerne, está a vontade de “criar um mecanismo para trancar terras sob um novo modelo de commons [licenças de utilização] regenerativo - protegendo-as para as gerações futuras, enquanto as disponibiliza a cidadãos contemporâneos que precisam de espaços inspiradores para viver, trabalhar e conectar-se”. Segundo Samuel Delesque, a TDF é “a primeira DAO organizada no contexto de uma eco-aldeia” e foi constituída no objetivo de não extrair valor nem lucro.

Este conceito inovador instalou-se em Portugal por duas ordens de razão: o país “combina beleza natural, riqueza cultural e oportunidade. Tem paisagens deslumbrantes, costa preservada e fortes estruturas comunitárias locais. Ao mesmo tempo, as zonas rurais necessitam de revitalização, e tem ativos subvalorizados que podem ser restaurados para trazer de volta vida e biodiversidade; o território é também um polo para nómadas digitais, a comunidade cripto e redes de eco-aldeias, o que o torna ideal para lançar um protótipo europeu que una regeneração e inovação”.

A OASA está ainda a apoiar outros projetos em Portugal, Egito e Suécia.

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