Banalização da guerra

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Comecei como jornalista no ano em que se iniciou a guerra da Bósnia, 1992. Foi uma das várias guerras que provocaram a desintegração da Jugoslávia, mas, por causa da diversidade étnica da população e da mistura entre comunidades, ganhou dimensões especialmente trágicas, com envolvimento militar de vizinhos e de potências mais longínquas, num dado momento mesmo da NATO. Talvez a memória de a I Guerra Mundial ter começado com um assassínio em Sarajevo contribuísse para a enorme atração mediática que o cerco da capital bósnia causou naquele final de século XX, mobilizando repórteres a lá irem, mesmo com risco de serem alvo dos snipers. Um deles foi Carlos Santos Pereira. Também ao serviço do DN lá esteve Ana Glória Lucas. Em teoria, a guerra da Bósnia terminou em 1995, com os Acordos de Dayton, mas a unidade da antiga república jugoslava é mantida até hoje, a grande custo, pela comunidade internacional, e não faltam episódios de tensão entre os muçulmanos da Bósnia (ou os bosníacos, palavra tardiamente cunhada para designar os eslavos islamizados), os croatas da Bósnia e os sérvios da Bósnia, todos sentindo ter direito àquela terra, por isso esta minha repetição de palavras.

Falei aqui da Bósnia porque foi o primeiro conflito que acompanhei como jornalista na secção de internacional do DN, mesmo que à distância (já depois de Dayton, cheguei a visitar Sarajevo), e a certo momento, apesar de combates diários e de mortes constantes, percebi que aquela guerra começava a não abrir telejornais, depois, por vezes, nem sequer tinha já direito a constar do alinhamento dos noticiários televisivos (lá fora, como cá), e se nos jornais, sobretudo os grandes jornais de referência, o tema não desaparecia, o certo é que o tamanho dos artigos ia minguando. Em datas de grande atualidade internacional alternativa, por exemplo umas eleições ou um atentado terrorista, a Bósnia podia ser remetida a uma breve. Claro que havia dias excecionais, em que, por uma chacina de civis ou pela visita de uma individualidade política estrangeira, a visibilidade do conflito nos Balcãs ressurgia, até nas TV.

Falo da Bósnia mas podia falar do Iraque, entre as duas intervenções militares lideradas pelos Estados Unidos e também depois. Podia também falar de Timor-Leste, que dava títulos de primeira página quando se massacravam jovens num cemitério de Díli ou quando dois resistentes à ocupação indonésia recebiam o Nobel da Paz, mas nos intervalos era, quando muito, uma breve no Le Monde ou no The New York Times. Por razões óbvias, na imprensa portuguesa a luta timorense conseguia ser presença permanente ou quase, o que muito ajudou à mobilização da população e do governo para arrancar, por via da diplomacia e com apoio da ONU, em 1999, à Indonésia, o referendo que trouxe a independência tão desejada à ex-colónia.

Podia também falar do Iémen, da República Democrática do Congo, da Síria, da Líbia, até do conflito israelo-árabe. Com graus muito diferentes de violência, é certo, cada um deles dura há anos ou há décadas. Só momentos mais chocantes os trazem de volta à atualidade noticiosa, mesmo que não haja verdadeira pacificação.

Existe, pois, um risco tradicional de banalização da guerra, de qualquer guerra. Não se culpe disso os media. Aqueles mais fortes, com mais meios, tentarão manter repórteres no terreno ou enviá-los quando possível. Também não desistirão de publicar análises e opiniões. É forte o sentido de missão, mesmo quando muitos leitores desmobilizam.

Acontecerá isso também com a guerra da Ucrânia? Quase seis meses depois da invasão russa, a banalização e certo esquecimento? O argumento de que se trata de um conflito na Europa para dizer que não há esse risco esbarra no exemplo bósnio. Mais forte será o argumento que envolve uma grande potência como a Rússia, mas, mesmo assim, lembremo-nos de que há muito que o separatismo pró-russo de abkazes e ossetas na Geórgia deixou de ser notícia internacional. Talvez a existir um argumento novo, é que o futuro da Europa e até dos Estados Unidos está em jogo, mas mesmo assim acredito isso ser muito mais evidente para os europeus do que para os americanos.

Como o sofrimento das pessoas que vivem onde há guerra não desaparecerá por milagre por as notícias sobre ele desaparecerem, compete ao jornalismo insistir em reportar o que se passa, em fornecer elementos que possam ajudar a entender o contexto de violência. Só assim se manterão as opiniões públicas atentas, obrigando os políticos a não desistir de formas de acabar com o tal sofrimento, por mais perto ou longe que seja. É uma tarefa exigente, que deveria relembrar a todos, sociedade e governantes, como é importante uma imprensa de qualidade.

Para já, façamos um esforço para continuar a seguir o que se passa na Ucrânia, não pensando só nos danos colaterais a ocidente chamados inflação ou crise energética.

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