Foi mais ou menos a meio do quarto episódio da série The Boys (Amazon Prime) que o ecrã de televisão mostrou uma combinação muito específica de ingredientes raros: algo simultaneamente divertido, inesperado e cretino, na proporção exacta daquilo a que podemos chamar, sem qualquer sentido pejorativo, estupidez adolescente. Um super-herói chamado Deep (cujo superpoder consiste em ter bíceps hipertróficos, guelras no abdómen e a capaci dade para comunicar com espécies marinhas), está em fuga, ao volante de uma carrinha. No banco traseiro há um golfinho, que o herói acabou de raptar de um parque aquático. O golfinho implora-lhe, através de guinchos, alguns favores sexuais. O herói promete aceder ao pedido, caso ele faça pouco barulho. A polícia persegue-os. Um obstáculo obriga o herói a travar. O golfinho é arremessado através do pára-brisas e estatela-se no asfalto, alguns metros à frente, onde é prontamente esmigalhado por um camião pesado. Tudo isto acontece ao som de uma canção das Spice Girls..Uma das objecções habituais (e anacronicamente imprecisas) ao filme de super-heróis enquanto categoria cultual é que se trata de um produto que parece feito por adolescentes e para adolescentes. Isto terá sido verdade, pelo menos em parte, nas décadas que precederam a grande migração das páginas para os ecrãs, mas a práxis criativo-demográfica é hoje um pouco mais complicada. A história de origem do filme de super-heróis contemporâneo é que, em 2008, os Estúdios Disney e a Marvel foram mordidos por uma campanha de marketing radioactiva que lhes conferiu os seus galácticos superpoderes: a capacidade para transformar powerpoints em eventos globais, e para acumular lucros equivalentes ao PIB de Andorra. As consequências fizeram-se sentir no ciclo biológico do resto da humanidade, que agora mede a passagem do tempo pelo intervalo entre as iterações de múltiplas franchises comerciais. Nascemos, crescemos, alimentamo-nos, reproduzimo-nos, assistimos pela 18.ª vez à demolição de vários arranha-céus em Nova Iorque, e depois morremos (ao contrário dos super-heróis, que vão sendo, de uma maneira ou de outra, ressuscitados)..Os filmes de super-heróis parecem feitos alternadamente por crianças muito novas a brincar aos adultos (postura visível na lúgubre solenidade, filosofia de algibeira e triunfante falta de humor da trilogia de Nolan ou nos seus sucedâneos espirituais como Justice League), ou então por adultos a brincar às crianças muito novas: a franchise Avengers é essencialmente a resposta blockbuster ao instinto para recombinar brinquedos (e se estes bonecos fossem amigos daqueles bonecos? Quem ganharia se o boneco desta caixa andasse à porrada com o boneco daquela caixa?).À excepção de anomalias como Deadpool ou Thor: Ragnarok, a adolescência tem muito pouco que ver com isto, a não ser no sentido estrito em que as circunstâncias próprias do filme de super-heróis são emocionalmente análogas à adolescência: um melodrama repetitivo em que cada problema é ao mesmo tempo uma catástrofe apocalíptica e inteiramente desprovido de consequências. Nos últimos 15 anos, a maneira que Marvel e DC encontraram para (com diferentes graus de sucesso) temperar estas circunstâncias foi injectá-las com uma solução homeopática de realismo político: como integrar uma aristocracia genética funcionalmente omnipotente num contexto preexistente de leis, governos, instituições públicas e soberania popular? Daí que os arraiais de porrada e actos violentos de renovação urbana são intercalados com inúmeras cenas em que super-heróis são arrastados para depor perante comissões de inquérito ou participar em taciturnas videoconferências com sua excelência, o Sr. Secretário de Estado..The Boys aborda o realismo por um atalho menos percorrido, que deixa a arena política como uma curiosidade decorativa e mais ou menos manipulável. No mundo que nos apresenta, o super-heroísmo foi privatizado. Centenas de criaturas com poderes especiais aparecem todos os dias para impedir assaltos - seguidos por equipas de filmagem, assessores de imprensa e um esquadrão de advogados. Os super-heróis de The Boys são todos funcionários de uma multinacional chamada Vought - uma mistura de Lockheed Martin, Estúdios Disney e Gestifute - que os vai alugando por valores exorbitantes a cidades com taxas de criminalidade elevadas (uma cena do primeiro episódio mostra o mayor de Baltimore a regatear os direitos de utilização de um super-herói no qual a cidade de Atlanta também está interessada), e a gerir meticulosamente as suas presenças públicas. Nas reuniões do núcleo duro de super-heróis, a ordem de trabalhos não é sobre supervilões nem sobre planos para salvar o mundo, mas sim uma sucessão de queixas sobre direitos de imagem, merchandising e pirataria online (que reduz as suas margens de lucro)..Neste contexto (imaginado com brio e humor), o mais importante para um super-herói não é a eficácia dos seus superpoderes, mas o apelo da sua marca. Quando Deep, o Aquaman de segunda categoria responsável pelo rapto do golfinho, é despromovido na hierarquia, tal não acontece por diluição dos seus poderes, mas porque alguns actos recentes o transformaram numa hashtag nociva. Exilado para Sanduski (o equivalente americano a Moimenta da Beira), é alojado num T1 com uma diária de 75 dólares para se abastecer no mercado local, e reduzido a sexo ocasional com groupies que insistem em penetrar-lhe as guelras com as mãos..Nem que seja por comparação, este parece imediatamente o nível de realismo adequado. O que torna The Boys um entretenimento eficaz - e provoca no espectador a sensação constante de que é uma série ultrajantemente menos má do que deveria ser - não é qualquer esforço sério para reflectir satiricamente sobre a ecologia comercial de que faz parte, mas uma noção exacta (e talvez acidental) de que a solenidade e o absurdo são parte integrante dessa ecologia. Super-heroicamente despreocupada com o seu próprio tom, consegue não se deixar absorver pelo impacto emocional que a espaços tenta causar, nem pelas piadas imbecis que a espaços tenta contar..Perseguições tensas são interrompidas para dissertações wikipédicas sobre a carreira a solo das Spice Girls. Um bebé é extraído de uma incubadora e usado como arma para decapitar inimigos. Criaturas aparentemente invulneráveis são estilhaçadas por um supositório. É o triunfo da imaginação adolescente e funciona às mil maravilhas até ao último episódio, no qual os adultos entram em cena para lembrar criadores e público que esta descomplexada sátira sobre uma multinacional omnipotente cuja principal função é criar um produto duradouro e lucrativo se encontra apenas na sua primeira fase; a segunda estreia daqui a poucos meses, e pode ser encontrada nessa humilde e pitoresca mercearia de bairro chamada Amazon..Escreve de acordo com a antiga ortografia