A "semana terrível" dos militares

Os casos abalam as Forças Armadas: do inexplicado roubo de material militar em Tancos a suspeitas de corrupção. Os militares que defendem mudanças estruturais. E o esclarecimento das coisas.
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Com o julgamento de 19 instrutores dos Comandos acusados pelo Ministério Público de colocarem "em risco a vida e a saúde" dos recrutas - previsto começar na passada quinta-feira - admitia-se que esta fosse uma semana pouco agradável para as Forças Armadas. Foi pior: começou com o aparente suicídio de um soldado dos Comandos, a que se seguiu a detenção de vários oficiais do Exército da PJ Militar (PJM) por causa de Tancos, uma oficial superior da Marinha ficou com termo de identidade e residência por suspeitas de corrupção e houve, ainda, o desaparecimento de uma caixa de munições dos fuzileiros. No final, a prisão preventiva do diretor da Polícia Judiciária Militar.

O incómodo face à sucessão de casos leva a que algumas altas patentes manifestem relutância em falar sobre a situação. O almirante Silva Ribeiro, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), "não comenta esses acontecimentos", explicou o seu porta-voz ao DN. Para o comandante Coelho Dias, porta-voz do CEMGFA, "nada perturbará a competência, a disciplina, o brio e o sentido de serviço das FA".

Mas há quem fale ou, antes, desabafe. "Nunca vi pior", exclama com irritação o general Chito Rodrigues, que se escusa a mais comentários, para não pôr "em causa a instituição", justifica o presidente da Liga dos Combatentes (oficial do Exército desde os anos 50). "Os traços mais característicos do perfil militar, seriedade, rigor, frugalidade, apresentam mácula... As linhas de comando parecem esbatidas e questionadas", diz um responsável do setor. António Mota, tenente-coronel que preside a Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA), reconhece que esta "é uma semana grotesca, terrível". Bateu no fundo? "Esperamos que sim e que a tendência seja para melhorar e rápido."

"Severamente punidos"

O almirante Melo Gomes, antigo chefe da Marinha, considera ser essencial "perceber o que se passou" e só depois "emitir juízos", até porque os militares se "regem por padrões de ética muito estritos". A grande maioria das fontes ouvidas pelo DN defende a atuação rápida da Justiça para que os presumíveis crimes cometidos "não possam ser associados" à instituição e à generalidade dos seus membros, como alerta um militar. O coronel Nuno Pereira da Silva (Exército) a defender a "expulsão direta" dos autores de qualquer crime, seja ele qual for. "Precisam de ser severamente punidos e afastados" das Forças Armadas.

Internamente, uma alta patente diz haver "indignação relativamente a estas coisas em todos os escalões da hierarquia". Dando como certo que os chefes militares terão falado entre si sobre o sucedido e o respetivo "efeito destrutivo" na imagem das Forças Armadas, será o Exército quem mais tem a perder. "Não sei qual a estratégia dos chefes militares para lidar com estas situações", diz Miguel Machado, oficial ligado durante anos à área das relações públicas no Exército e no EMGFA.

"É revoltante para nós próprios porque não conseguimos perceber", observa Nuno Pereira da Silva. Mais uma vez, regressa-se às explicações históricas, até à Guerra Colonial, para explicar como se chegou aqui. "Adaptações a novas realidades e exigências." Por exemplo? "Que os procuradores e a Justiça entrem nos quartéis" - recorde-se a questão da dificuldade da PJM em lidar com a entrega do processo à PJ. Para outra fonte, "a mudança da cultura militar tem um tempo próprio" porque "não se faz por simples decreto, quanto mais a força, maior a resistência." E acrescenta: que "a mudança tenha, no limite, de se registar na sequência de um enorme sobres salto social" como o resultante do furto de material de guerra em Tancos.

Mudanças orgânicas

E como mudar? Com a já falada extinção da PJM, uma nova alteração orgânica com impacto na relação de poder entre o CEMGFA e os restantes chefes face ao poder político? Um dos responsáveis pela Reforma 2020 aprovada em 2015, major-general Carlos Chaves, escusou-se a fazer comentários sobre isso ou a propósito dos últimos acontecimentos.

Miguel Machado admite que o reforço dos poderes do chefe do Estado-Maior, alargando o que tem na área operacional às áreas da logística e do pessoal e transformando-o num chefe do Estado-Maior de Defesa (como é o caso britânico, entre outros), "melhoraria seguramente muita coisa" nas FA. No entanto, considera que alguns dos casos desta semana não seriam evitados. "São falhas humanas" - embora "possam estar ligadas" a aspetos como o desinvestimento e a redução de efetivos.

Nuno Pereira da Silva entende que o CEMGFA "já devia ter o comando completo", evitando que os ramos estivessem sob a tutela - que não é poder de comando - do ministro da Defesa para efeitos logísticos e de pessoal. Sabendo-se que os ramos resistem à centralização de muitas coisas no Ministério da Defesa, impedindo objetivamente a tutela de conhecer a realidade das FA, essa alteração imporia uma liderança e uma cadeia de comando únicas.

Fica por saber quem, com esse modelo em vigor, assumiria a responsabilidade pelo que ocorreu nos paióis de Tancos: o chefe do Exército, que entendeu não se demitir, ou o CEMGFA - que, com a orgânica atual, não tem qualquer competência e até foi deixado sem informação por parte do ramo após o furto.

Esta semana teve efeitos políticos, também. O CDS anunciou uma comissão parlamentar de inquérito sobre o roubo de material em Tancos. Mesmo que o primeiro-ministro, António Costa, garanta que "mantém" o ministro da Defesa em funções - "não é responsabilidade do ministro estar à porta do paiol a guardar as armas" -, Azeredo Lopes tem um papel frágil na história.

E Marcelo?

O Presidente tem neste momento uma preocupação acrescida. Está a decorrer uma das mais significativas mudanças na história da UE: a criação de uma política comum de defesa. Essa era já uma tendência visível (dada a política de fronteiras posta em prática para lidar com o afluxo de imigrantes) e que apenas se tornou mais urgente pela mudança na administração americana. Trump encara a NATO como um desperdício de dinheiro de Washington e já o fez saber em vários encontros com líderes europeus.

Por isso, além de um fundo europeu de defesa, e da criação de uma diretoria-geral para assuntos militares, Bruxelas está a investir como nunca em investigação relacionada com o setor da defesa - atualmente são cinco mil milhões, entre 2021 e 2027 serão 43,6 mil milhões. O Presidente francês, Emmanuel Macron, anunciou o objetivo: "No início da próxima década a Europa precisa de ter uma força de intervenção comum, um orçamento para a Defesa."

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