Portuguesa de coração, devoção e papel passado, assim é Auriol Dongmo, a recordista nacional do peso que nasceu nos Camarões e que ontem foi autorizada a competir por Portugal a partir do dia 26 de julho de 2020. O que quer dizer que pode representar as cores portuguesas em Tóquio 2021. Está a 13 centímetros do apuramento direto e tanto ela como o treinador acreditam que pode "fazer história" na modalidade..Chegou a Portugal em 2017 para representar o Sporting, fruto de uma arrojada iniciativa pessoal. Apesar de não gosta de redes sociais, a atleta criou um perfil no Facebook só para contactar os leões e o treinador (Paulo Reis) que lhe tinha sido recomendado. "Eu tinha um convite para ir para França treinar, mas não queria ir, queria vir para Portugal, o país de Fátima. Contactei o Sporting por Facebook. Já tinha ouvido falar que era um bom clube, que apostava no atletismo e cuidava bem dos atletas e perguntei se estavam a precisar de lançadoras do peso. Foi muito bom quando tive resposta", contou atleta ao DN, "feliz" pelo desfecho positivo do "atrevimento". Mas tudo começou na devoção a Nossa Senhora de Fátima. "Sou muito católica e a religião é muito importante para mim. Sempre adorei Portugal por causa de Nossa Senhora de Fátima. Depois, quando o Sporting me contactou, vi a oportunidade de conhecer Portugal e Fátima", confessou Auriol, sem palavras para descrever o que sentiu quando pisou pela primeira vez o Santuário: "O meu sonho era chegar a Portugal e ir a Fátima, e quando isso aconteceu foi incrível e maravilhoso. Um sentimento que vai ficar para a vida toda. Foi um momento muito importante para mim. A fé é a coisa mais importante na minha vida. Não sei se era capaz de treinar sem o apoio de Fátima." Quando chegou ao Sporting decidiu ir viver para Leiria. Nessa altura ainda não sabia que a Cidade do Lis ficava a alguns minutos de Fátima. Queria ser treinada por Paulo Reis, treinador a quem também tinha contactado por Facebook e que vivia em Leiria. O Sporting providenciou-lhe residência e deu-lhe condições para treinar lá. Ela não demorou a mostrar que aposta tinha sido ganha. Os primeiros tempos "foram de sonho" e as marcas promissoras, bem acima dos 17 metros..Em 2018 ficou grávida e teve de interromper a competição. Apesar disso, o Sporting manteve a aposta na atleta: "Nunca um clube tinha cuidado de mim como o Sporting o fez. O Sporting foi muito, muito, muito atencioso comigo. Sempre me ajudou e muito preocupado a ver se eu estava bem. Mesmo quando eu fiquei grávida o Sporting não me abandonou, mesmo sem saber se eu iria voltar. Jamais vou esquecer isso. Eu ainda não tinha retribuído na pista toda a atenção e carinho e mesmo assim eles fizeram tudo por mim e deram-me condições para voltar. Acreditaram no meu valor e agora sim, tenho conseguido retribuir.".Retomou em 2019, mas os problemas associados à maternidade atrapalharam-lhe os planos de novo. Teve de arranjar uma pessoa de confiança para ficar com o filho enquanto treinava e os resultados ficaram aquém do desejado e esperado por ela e pelo treinador. Já neste ano voltou com tudo e bateu o recorde nacional, que durava há 22 anos, por três vezes. Em janeiro, em Pombal, bateu a marca de Jéssica Inchude ao ar livre (17,54 metros) e o recorde de Teresa Machado (17, 28 metros), ao conseguir 18,02 na sua primeira prova. Em fevereiro, na Alemanha, lançou o peso a 18,31 metros, e novamente em Pombal lançou a 18,37. Uma marca que lhe valeu o primeiro título nacional e estabeleceu novo recorde de Portugal: "Um sonho, fiquei muito feliz.".O início no andebol e a naturalização.Com braço forte e lançamento longo, começou no andebol e no basquetebol até um professor de Educação Física a desafiar a lançar o peso: "Nunca na minha vida pensei fazer lançamento do peso. Era um desporto de homens. Quando o professor me disse que não tinha ninguém para lançar o peso nos jogos escolares e me desafiou para lançar eu não queria, mas fui e consegui a medalha de bronze. Foi fantástico, logo na minha primeira prova. O treinador nacional dos Camarões estava a ver a prova e veio perguntar-me onde treinava e eu respondei que nunca tinha treinado o lançamento do peso, que era jogadora de andebol. E ele respondeu 'fogo como fizeste para lançar tão longe sem treino, tens de começar a treinar'." Mas Auriol estava reticente. Não tinha gostado da experiência. Mas tanto a "chatearam" de que "tinha talento para lançar" que a convenceram. E em 2007 ela dedicou-se ao lançamento do peso e do disco, para depois e se fixar apenas no peso. Os resultados foram surpreendentes e rapidamente começou a ganhar títulos nacionais e a ser chamada para representar o país nas competições internacionais. Além de títulos nacionais, a lançadora, agora com 29 anos, sagrou-se duas vezes campeã africana (2014 e 2016) e conquistou as medalhas de ouro nos Jogos Africanos de 2011 e 2015. Foi ainda finalista olímpica no Rio 2016. A vida nos Camarões "foi normal" e sem grandes dificuldades, não lhe faltava nada... além do reconhecimento desportivo. O país africano não tem cultura desportiva vincada e ela sentiu necessidade de procurar um sítio onde pudesse ser atleta e viver do desporto. Em Portugal, além de encontrar condições de treino, encontrou também "pessoas de coração grande". Auriol é "muito agradecida" ao país que a acolheu: "As pessoas gostam de mim, sempre me ajudarão, os portugueses são muito simpáticos e eu consegui construir uma outra família cá. Não me sinto cá sozinha, apesar de estar cá sozinha com o meu filho, mas tenho muitos amigos e gente com quem posso contar e ajudar. Não me falta nada e é disso que eu gosto em Portugal, o lado cuidador das pessoas." Naturalizada portuguesa desde outubro de 2019, recebeu ontem a boa notícia de que pode representar Portugal nas provas internacionais. O processo demorou algum tempo porque a federação internacional é agora mais cuidadosa a permitir naturalizações, uma vez que houve países a abusar desse tipo de processos. A Federação Portuguesa de Atletismo teve de explicar à World Athletics que ela queria representar Portugal e porquê. Uma posição fundamentada com a ligação forte ao país e o facto de ela já ter um filho português e querer ficar a viver a Portugal depois de terminar a carreira. Habituada a lutar pela bandeira do país que a viu nascer, Auriol confessa que foi "difícil" optar por representar Portugal, mas afinal de contas ela já se sentia portuguesa e não pensava voltar aos Camarões.."Uma presença em Tóquio 2021 é pouco para aquilo que é a ambição e valor dela".A atleta ambiciona agora elevar a bandeira verde rubro bem alto e "fazer história no peso português nos Jogos". Auriol está a 13 centímetros da marca de apuramento direto e tem mais um ano para se preparar para Tóquio 2021. O treinador acredita que se não fosse a pandemia do coronavírus ter cancelado as provas que ela já tinha garantido a presença olímpica, mas avisa que a intenção não é ir aos Jogos por ir. "Uma presença no caso dela é pouco para aquilo que é a ambição e o seu valor. Eu nunca gostei de pensar pequenino e ela muito menos, portanto, para nós, a qualificação é algo que vai concretizar-se mais cedo ou mais tarde. O grande desafio é chegar lá bem preparada. O objetivo não é ir aos Jogos para marcar presença ou ganhar experiência, é mesmo ir para tentar fazer a diferença e fazer algo de positivo para ela e para o nosso país", avisou Paulo Reis. O treinador ia recebendo alguns vídeos da lançadora para ter conhecimento do nível de treino que ela tinha e estabelecer um plano para quando começasse a trabalhar com ela, mas não tinha total conhecimento do seu valor como atleta: "A Auriol é uma atleta muito talentosa, fisicamente muito forte e muito dotada, é uma força da natureza e uma atleta que é dedicada ao trabalho. É ambiciosa e tem uma característica muito importante, gosta da grande competição e tem uma grande capacidade de superação nos momentos mais importantes. Quando é colocada perante um desafio importante, dá uma boa resposta, por isso é uma atleta de excelência." Segundo Paulo Reis, "Portugal tem tido um boom no lançamento do peso" e Auriol veio "fundamentar ainda mais o valor da disciplina do atletismo português que mais evoluiu na última década".