A vitória confortável do MPD, o partido que ajudou a fundar, nas recentes legislativas cabo-verdianas faz de si, automaticamente, um claro favorito nas presidenciais? Eu acho que a vitória do MPD é boa para a minha candidatura. Os votantes do MPD acabam naturalmente por fazer a ligação com a circunstância de eu ter sido dirigente do partido. Há, portanto, um entusiasmo maior para que se complete este ciclo, mas eu diria que, aparte esse aspeto, há sempre uma luta que vai exigir muito trabalho, muita dedicação, muita explicação e muita proximidade aos cabo-verdianos em geral..Se tivesse de explicar o que é que o distingue politicamente de José Maria Neves, candidato do PAICV, diria que não é só a diferença dos partidos de origem, que também há óbvias diferenças pessoais entre si e o seu adversário, que, tal como o senhor, foi primeiro-ministro? E quais seriam? Penso que divergimos em alguns aspetos de fundo. Poderia dizer que isso acontece num conjunto de ideias-chave que marcaram sempre os partidos de que fizemos parte. Tendo sido líderes desses partidos, de alguma forma as nossas ideias também influenciaram as ideias do partido. Sou uma pessoa que apostou e quis sempre que Cabo Verde fosse uma democracia e tenho fé na consolidação dessa democracia. Acredito que é preciso que os cabo-verdianos trabalhem muito em conjunto para que o país avance; acredito no setor privado e que a economia de Cabo Verde só se desenvolverá mesmo quando for puxada pelo setor privado. Portanto, acredito que isso acontece quando há uma abertura do Estado para ser mais parceiro do que interveniente direto. Acredito fortemente numa democracia que seja cada vez mais aprimorada, no sentido de que há lugar para todos em Cabo Verde, por isso não propugno uma crispação política entre os partidos, não propugno as ideias de terra queimada para que se comece de novo. Acredito que há um conjunto de valores e um conjunto de questões em Cabo Verde que merecem um consenso. A minha visão é mais de juntar as pessoas para trabalharmos para o bem comum de Cabo Verde do que estar a dividir pelo partido A e partido B. Acho que há uma excessiva partidarização em Cabo Verde e penso que eu estaria em melhores condições de contribuir para que essa excessiva partidarização amainasse, para que as pessoas pudessem juntar-se à mesa e, em diálogo, fazer avançar o país..O senhor teve um papel importante no final dos anos 80 e início dos 90 na transformação de Cabo Verde do sistema de partido único para o multipartidarismo. Dá-lhe uma satisfação pessoal quando vê Cabo Verde ser elogiado como uma democracia? Acha que essa democracia nestes 30 anos - desde a sua vitória para a chefia do governo em 1991 - se foi consolidando? Foi-se consolidando e dá-me muito orgulho e muita satisfação ver que isso aconteceu. Cabo Verde é uma democracia reconhecida hoje internacionalmente, mas, ao mesmo tempo, sabemos que as democracias não são perfeitas e precisam de ser aprimoradas permanentemente. Temos de analisar com objetividade como é que as coisas funcionam, ver onde não correram bem e onde é possível fazer uma alteração e avançar num sentido mais forte. Nós precisamos de consolidar as nossas instituições, precisamos de promover e consolidar uma cultura democrática em Cabo Verde para que o aspeto formal dê lugar a uma consciência democrática muito forte na sociedade cabo-verdiana..Para haver democracia é preciso haver desenvolvimento e crescimento económico. Cabo Verde depende muito, por exemplo, do turismo. Esta situação da covid está a afetar o país não só do ponto de vista do turismo e, portanto, da economia, mas em geral? Sem dúvida nenhuma. Aliás, de 2016 em diante a economia cabo-verdiana retomou o ritmo de crescimento - estava a crescer, em 2019, à taxa média de cerca de 6% ou 7%. O que a covid fez foi afetar muito isso, portanto hoje fala-se da necessidade de recuperar. A pandemia teve consequências económicas muito fortes, e algumas consequências sociais, mas o Governo tomou medidas assertivas e o país aguentou-se, tem estado a aguentar-se bem. Agora é preciso recuperar a economia e fazê-la entrar outra vez no caminho do desenvolvimento..Neste combate à covid, Cabo Verde ainda conta muito com a solidariedade internacional - há dias vi uma notícia de que a Hungria tinha oferecido 100 mil vacinas e Portugal também tem sido ativo nesse campo -, nomeadamente dos países da União Europeia, e em especial de Portugal? Sim, conta. Cabo Verde tem excelentes relações com praticamente todos os países do mundo. E Portugal é um dos que está na dianteira dessa relação. Cabo Verde tem beneficiado muito da solidariedade internacional, especialmente por ser uma democracia que se consolida, que ano após ano, digamos assim, se vai tentando aperfeiçoar, que, por exemplo, nos rankings africanos está sempre em primeiro ou segundo lugar. No mínimo em terceiro. Mesmo a nível mundial, está muito bem classificado. Portanto, esse é o caminho: desenvolvimento só se faz com democracia. Claro que não há democracia consolidada sem desenvolvimento, mas eu diria que em Cabo Verde os sinais são claros de que só há crescimento económico e desenvolvimento social em democracia. A visão ideológica de base de quem ainda tem o poder em Cabo Verde também se reflete na economia. Quando se aposta numa economia de mercado, regulado naturalmente, no setor privado, vê-se a economia do país a crescer; quando se aposta no Estado como ator económico principal, vê-se a economia de Cabo Verde a estabilizar-se a um nível muito baixo ou a regredir. Em 2000, nós estávamos com uma taxa de crescimento médio de 8% e 15 anos depois estamos a 0% - houve muita opção estatizante. A opção por uma economia de mercado é, de facto, aquela que serve Cabo Verde, isso é claro..É essa a grande diferença entre o MPD e o PAICV e também entre si e José Maria Neves: o papel do Estado na economia? Penso que é claro. Eu perspetivo o futuro de Cabo Verde com confiança. Tenho muita confiança no futuro do desenvolvimento e em que a democracia se consolide, que o setor privado assuma, de facto, o seu papel, com a iniciativa privada nacional e estrangeira. Nós não podemos pensar que só com os recursos internos teremos desenvolvimento, teremos de nos abrir à economia mundial e tirar benefício disso mesmo, sobretudo com as novas tecnologias que hoje existem e para as quais nós temos um capital humano absolutamente bem preparado. Temos de aproveitar essa circunstância da economia digital, das novas tecnologias, para darmos passos mais largos e sermos capazes de ombrear, não digo com as grandes economias desenvolvidas, mas, à nossa medida, sermos uma economia desenvolvida onde as pessoas possam viver razoavelmente, em paz dentro da comunidade e com qualidade..Pegando na sua ideia de ser "à vossa medida" por Cabo Verde ser um pequeno país, o senhor acredita nesta ideia da lusofonia, da CPLP, ou seja, que esta comunidade baseada na língua portuguesa pode trazer vantagens para os países membros? Sem dúvida nenhuma. Se for uma comunidade de povos, e penso que é essencial que seja e fico satisfeito de ver que evolui nesse sentido - vai haver em breve a assinatura de um acordo de livre circulação bem conseguido, muito flexível, para atender às diversas perspetivas e especificidades que existem -, acho que a lusofonia, nessa perspetiva de nós termos uma comunidade de povos, é importante para todos nós. É importante para Cabo Verde, não tenho dúvidas nenhumas, e acho que é uma perspetiva que deve ser consolidada cada vez mais..A sua experiência de cabo-verdiano que estudou e se formou em Lisboa e por ter trabalhado em Angola reforça essa convicção de que esta língua tem elementos unificadores? Sem dúvida nenhuma. Acho que todos nós nos sentimos um pouco em casa uns dos outros quando estamos nos países lusófonos. Falamos a mesma língua e isso ajuda a aproximar, ajuda a compreender, ajuda a cooperar, e, portanto, não tenho dúvidas de que é uma mais-valia..Tem tido contactos com os cabo-verdianos em Portugal, com a diáspora em geral? Tenho tido, sim. Já quando fui primeiro-ministro sempre me preocupei muito em manter essa ligação. Nos últimos quatro anos, três deles fui embaixador nos Estados Unidos, onde também estive muito ligado à comunidade cabo-verdiana de lá, que é a maior..Essa comunidade está muito em Nova Inglaterra, tal como os luso-americanos, não é? Já não está só em Nova Inglaterra, onde tem alguma concentração, mas já a encontramos na Florida e noutros estados americanos, até na costa oeste há várias comunidades cabo-verdianas. Portanto, tive oportunidade de estar com elas. Por isso mesmo, por termos gente que se sente ligada de alma e coração a Cabo Verde - mais no estrangeiro do que no próprio país - temos de ter isso em consideração. É um aspeto específico do país, que para mim é uma mais-valia. Podemos dizer que temos um ativo estratégico, pois as comunidades emigradas constituem, de facto, um recurso estratégico para o país. Podemos encontrar recursos humanos qualificados para as necessidades de desenvolvimento que temos não só em Cabo Verde, mas também nas nossas comunidades emigradas. Portanto, para além da participação financeira, da participação cultural, da ligação à cultura cabo-verdiana, temos esses recursos humanos qualificados nas nossas comunidades que podem ser uma mais-valia para o desenvolvimento de Cabo Verde..Foi embaixador nos Estados Unidos, como referiu. Como ex-governante e possível futuro governante, como é que olha para este interesse da China em África e, de certa forma, por causa da China também os Estados Unidos e os europeus voltarem a ter interesse por África? Essa competição das grandes potências por África é vantajosa? Eu penso que é. Não é por acaso que muitos nos EUA dizem que África é o continente do futuro. As perspetivas que existem em termos da juventude da população africana, em termos de haver uma reserva enorme de terras aráveis, as riquezas naturais, os recursos humanos que também já existem em África, se forem efetivamente adotadas as políticas adequadas na própria África em primeiro lugar, mas também o nível do estabelecimento das relações diplomáticas baseadas nessa perspetiva da África como futuro, não tenho dúvidas nenhumas de que isso será importante para o desenvolvimento do continente africano..No entanto, há uma coisa que África tem de mudar - se Cabo Verde, por ser uma democracia, é tão elogiado, é também um pouco pela excecionalidade. Sente-se otimista em relação a África estar a caminhar de alguma forma para a democracia, mesmo sabendo que as condições, muitas vezes, não são iguais às de Cabo Verde, onde não há as diferenças étnicas? Quando olha para o resto do continente, não vê nenhum impeditivo para que a democracia também se vá afirmando? Há outros países africanos que aparecem no topo das classificações de democracia, se bem que, por acaso, ou talvez não, a maioria desses países são insulares - as Maurícias, as Seychelles -, mas há países continentais também com bom registo a nível do desenvolvimento da democracia, como o Botswana e o Senegal. Portanto, penso que se olharmos para documentos que têm sido produzidos pelas instâncias africanas nos últimos anos, vemos que há claramente a assunção de que o caminho de África também é o caminho da democracia. É essa a solução por parte dos líderes africanos. E a convicção de que tem de se caminhar para uma democracia ou democracias adaptadas às circunstâncias de cada país. África é muito diversificada, não existe uma só África, mas a consciência dos líderes africanos é que África tem de se desenvolver nesse caminho da democracia. A democracia será também essencial para o desenvolvimento porque este vai exigir a participação das pessoas, e ela só se consegue, de facto, de forma voluntária em democracia. Por isso há uma consciência muito grande a esse respeito e eu acredito que será possível para a nova geração de líderes africanos contribuir positivamente para essa consolidação..Fala-se muito também da emigração sistemática de africanos para a Europa. Por um lado, a Europa precisa de mão de obra, mas, por outro lado, África perde muita massa cinzenta. Como é que vê aqui um possível equilíbrio? É preciso que os países africanos, optando pela democracia, adotem as políticas adequadas ao desenvolvimento dos seus próprios territórios e que estas sejam inclusivas, que não deixem pessoas para trás. Recursos naturais Cabo Verde não tem muitos, embora tenha recursos que, se nos tempos anteriores não eram muito importantes, hoje são importantes e decisivos. Nós temos o mar, temos a economia marítima toda à disposição de Cabo Verde e de África; temos energias renováveis - o sol, o vento, o mar; temos as novas tecnologias, que acabam por fazer com que as distâncias diminuam, as diferenças se esbatam e com que seja possível a um pequeno país, como a qualquer país, atingir um patamar de desenvolvimento maior. Portanto, África, por outro lado, tem riquezas que hoje são raras na maior parte dos países do mundo. Eu penso que o que importa é definir as políticas adequadas para o desenvolvimento. Acredito no futuro de África..É um otimista? Sou um otimista em relação ao futuro de África e acho que as condições estão reunidas..Vou fazer-lhe uma última pergunta, que tem muito a ver com a sua candidatura presidencial em 2001, com Pedro Pires como adversário l. Perdeu por uma margem muito pequena... Doze votos..... houve contestação dos resultados, mas há um momento em que o senhor decide deixar essa contestação por causa das consequências que poderia ter para a democracia. Continua convicto de que tomou a decisão certa e acha que a sua eventual eleição nas presidenciais de ouro seria uma espécie de "prémio" por esse serviço que também fez a Cabo Verde ao não alimentar uma contestação eleitoral que poderia ter dividido o país? Eu faria outra vez a mesma coisa. Sempre defendi que Cabo Verde não necessita de instabilidade, precisa é de estabilidade. Concorrer agora tem muito a ver com essa minha visão de que Cabo Verde precisa de estabilidade governativa, política, social, económica. Portanto, precisa de viver num ambiente de maior consenso, colaboração e cooperação entre as pessoas. Agora, eu diria que o país não tem uma dívida para comigo, estamos absolutamente quites com aquilo que Cabo Verde me deu ao longo de toda a minha vida. Eu preciso é de retribuir e é por isso que concorro agora às presidenciais, num momento que eu considero chave para consolidar a democracia, para ajudar a influenciar no sentido de as políticas adotadas serem para um desenvolvimento seguro, digamos assim, para Cabo Verde. Portanto, o meu país não tem uma dívida para comigo, não tem de me dar um "prémio", eu é que tenho de retribuir ao meu país. Acho que aprendi bastante com o que o meu país me proporcionou durante toda a minha vida, e é lá que eu quero estar, é lá que eu quero viver, e acho que essa experiência, esses conhecimentos, essa visão que eu ganhei, posso partilhar e pôr ao serviço do meu país. Não há pagamento nenhum..leonidio.ferreira@dn.pt