O presidente francês, Emmanuel Macron, defendeu que "o islão está em crise em todo o mundo", prometendo medidas contra o separatismo islamita em França. Depois, insistiu no direito à publicação das caricaturas do profeta Maomé, consideradas uma blasfémia pelos muçulmanos, numa reação à decapitação de um professor que mostrou as imagens nas suas aulas..As declarações não caíram bem no mundo muçulmano, com protestos desde Marrocos ao Bangladesh e apelos a um boicote à compra de produtos franceses. O próprio Macron, que alguns acusam de radicalizar o discurso com interesses eleitorais face à pressão da extrema-direita, foi apresentado como um "demónio" na primeira página de um jornal no Irão..Twittertwitter1320795242413596676.Entre os principais críticos de Macron encontra-se o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, que está envolvido numa guerra com várias frentes contra o líder francês. Além de questionar a sua sanidade mental após as últimas declarações sobre o islão, comparou a forma como a Europa trata os muçulmanos à forma como os judeus foram tratados pelos nazis durante o Holocausto. Outros líderes muçulmanos acusaram o presidente francês de "semear as sementes do ódio" e da violência..Erdogan foi precisamente o último alvo da revista satírica Charlie Hebdo. Na primeira página da edição desta semana, surge transformado em caricatura vestindo apenas uma T-shirt e cuecas. Numa mão segura uma cerveja e, com a outra, levanta a saia a uma mulher que usa o véu islâmico, expondo o seu traseiro nu. A caricatura, intitulada "Erdogan: em privado ele é muito engraçado", inclui ainda a frase "ohhh, o profeta"..Twittertwitter1321134572105572352.Em França vivem cerca de 5,7 milhões de muçulmanos, segundo um estudo do Pew Research Institute de 2017, representando menos de 9% da população. A maioria nasceu no país, sendo descendente de imigrantes de primeira geração vindos das antigas colónias francesas no norte de África..A animosidade contra Macron começou com o discurso que fez no dia 2 de outubro, na apresentação da nova Lei da Laicidade em França, que visa reforçar o secularismo do Estado francês e será discutida na Assembleia Nacional em dezembro.."O islão é uma religião que está em crise em todo o mundo, não estamos a ver isto apenas no nosso país", disse Macron, apresentando o seu plano para combater o separatismo islamita e apostar num "islão do Iluminismo".."O secularismo é o cimento de uma França unida", defendeu o presidente, falando do islão radical como uma "ideologia" e como um "projeto" para doutrinar uma nova geração através da negação dos princípios e valores franceses - nomeadamente a igualdade de género - e criar uma "contrassociedade"..Para Macron, trata-se de uma tentativa de criar "uma ordem paralela, defender outros valores, desenvolver outra organização de sociedade, separatista em princípio, mas cujo objetivo final é assumir o controlo". Uma sociedade que rejeita a liberdade de expressão, de consciência, ou o direito à blasfémia..O presidente defendeu a necessidade de "libertar o islão em França das influências estrangeiras", pondo fim à entrada de imãs formados no exterior e apostando na formação de uma geração de imãs que defendem um islão "plenamente compatível com os valores da República", exigindo que as associações religiosas assinem um contrato dizendo respeitar esses mesmos valores se quiserem receber subsídios..Da mesma forma, para evitar a existência de "escolas ilegais" lideradas por "extremistas religiosos", a educação em casa será limitada apenas às crianças que têm razões médicas válidas para ter de recorrer a este método..Macron reconheceu que a França ainda não lidou com o legado da guerra na Argélia e admitiu que o Governo tem culpa no isolamento das comunidades muçulmanas no país, abrindo o caminho a uma espécie de guetos e criando condições para a radicalização. A França foi o país europeu que mais contribuiu com combatentes estrangeiros para as forças do Estado Islâmico no Iraque e na Síria em 2014-2015..As respostas não tardaram em chegar do mundo muçulmano, com uma das principais instituições do islão sunita, a academia Al-Azhar no Egito, a falar em racismo e num discurso de ódio nas palavras de Macron..Na Turquia, o AKP (partido de Erdogan) acusou o presidente francês de dar munições a grupos terroristas como o Estado Islâmico. E o próprio líder turco defendeu que a ideia de que "o islão está em crise" era uma "provocação aberta e uma total falta de respeito"..Depois, houve quem falasse das incongruências do presidente. "A definição de islão radical de Macron para nós muçulmanos franceses, que falam árabe ou outras línguas, ou no uso de véus e outras roupas religiosas. Não se estende aos regimes no Médio Oriente que cometem massacres, assassinam jornalistas ou prendem dissidentes por causa de mensagens no Twitter", lê-se num artigo no site da estação pública turca internacional TRT World, falando nas alianças com os Emirados Árabes Unidos, o Egito ou a Arábia Saudita..Outros analistas olham para o discurso de Macron como uma tentativa de conquistar votos. "O presidente francês, depois de três desastrosos anos no cargo, está-se a preparar para a reeleição a mobilizar o mais antigo truque do livro da direita: perseguir os muçulmanos", escreveu Malia Bouattia, que foi a primeira árabe à frente de uma união de estudantes numa universidade britânica e escreve para vários meios de comunicação..Tanto a extrema-direita liderada por Marine Le Pen como a direita conservadora acusam Macron de ser demasiado brando com o islão radical, uma imagem que o presidente procura apagar antes das presidenciais de 2022, onde procurará a reeleição..Dias depois do discurso, um professor francês que mostrou as caricaturas do profeta Maomé nas aulas para discutir liberdade de expressão foi decapitado na rua por um refugiado checheno de 18 anos..(R) Monsieur Paty, professor, 47 anos, "mártir da República" executado na via pública .A França ficou em choque com a morte de Samuel Paty, a 16 de outubro, com milhares a prestarem-lhe homenagem e a dizer "não temos medo". Dezenas de pessoas foram detidas por envolvimento no crime, desde os familiares do responsável (abatido pela polícia) a adolescentes que ajudaram a identificar o professor, e pelo menos uma mesquita foi fechada..O presidente francês não recuou e voltou a insistir: "Vamos continuar... Vamos defender a liberdade que ensinaste tão bem e vamos ter o secularismo", indicando ainda que o país não iria "desistir dos cartoons, dos desenhos, mesmo se outros recuarem"..Na resposta, Erdogan disse a Macron para ir fazer uma avaliação mental. "O que posso dizer de um chefe de Estado que trata milhões de membros de diferentes fés desta forma: antes de mais, faça uma avaliação mental", disse o presidente turco na televisão..França reagiu chamando o seu embaixador na Turquia a Paris, mas Erdogan insistiu dizendo que Macron estava obcecado por ele e, nesse caso, devia mesmo fazer a avaliação mental..As declarações do líder turco foram também condenadas pelos europeus, como a chanceler alemã, Angela Merkel, ou o primeiro-ministro holandês, Mark Rutte. Erdogan comparou entretanto o tratamento dos muçulmanos na Europa ao dos judeus antes da II Guerra Mundial, alegando que são alvo de uma "campanha de linchamento" e apelando à Europa que acabe com a sua campanha de ódio liderada por Macron..As declarações de Macron sobre o islão são apenas a última frente de batalha entre o presidente francês e o homólogo turco, numa guerra que tem vindo a deteriorar as relações entre os dois aliados da NATO..Paris e Ancara estão de lados opostos em temas como os direitos marítimos no Mediterrâneo, com a França ao lado da Grécia e de Chipre contra a exploração de recursos petrolíferos que os turcos têm feito em águas que os europeus não consideram suas..Mas Macron e Erdogan estão também em lados opostos da barricada nas guerras na Líbia e na Síria e, mais recentemente, na escalada do conflito entre Arménia e Azerbaijão por causa de Nagorno-Karabakh..Nesta segunda-feira, Erdogan juntou-se ao apelo ao boicote de produtos franceses, que já tinha começado alguns dias antes em países como o Qatar ou o Koweit. Da mesma forma, multiplicam-se as manifestações contra Macron, com dezenas de milhares de pessoas a protestar, por exemplo, no Bangladesh, queimando uma efígie do presidente francês..Irão, onde Macron foi transformado em demónio na primeira página de um jornal, já chamou o seu embaixador em Paris para consultas, tal como o Paquistão. O presidente iraniano, Hassan Rohani, lembrou nesta quarta-feira que insultar Maomé pode alimentar a violência. "Insultar o profeta não é um feito. É imoral. Encoraja a violência", disse na televisão..França alertou entretanto os seus cidadãos para que evitem os locais dos protestos nos países que declararam o boicote aos produtos franceses, por questão de segurança..A última munição nesta guerra foi a caricatura de Erdogan publicada na Charlie Hebdo, que já é alvo de uma investigação por parte das autoridades turcas..(R) 'Charlie Hebdo' desafia Erdogan com cartoon "muito divertido"."Garantimos ao nosso povo que as ações legais e diplomáticas necessárias serão tomadas contra esta caricatura", indicou a presidência turca em comunicado..O próprio Erdogan falou num "ataque vil" perpetrado por "canalhas" contra si, mas principalmente contra o profeta Maomé. "O alvo não sou eu, são os nossos valores", referiu..Diante das várias ameaças, o porta-voz do Governo francês deixou claro nesta quarta-feira que a França vai continuar a lutar contra o extremismo e não cederá a "tentativas de intimidação e desestabilização". Além disso, Paris vai pedir sanções a nível europeu contra a Turquia.