O debate sobre a nova lei orgânica da Proteção Civil (PC) tem sido dominado pelo conflito com os bombeiros, mas nos bastidores houve outra questão que também levantou polémica e suscitou a oposição frontal das Forças Armadas a pelo menos um dos artigos propostos. Em causa está a colocação do presidente da nova Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) protocolarmente acima dos chefes militares da Marinha, Exército e Força Aérea..Tudo isto gerou, não só "grande mal-estar" como uma sensação de déjà vu nas Forças Armadas. Porquê? Porque o presidente da PC é Mourato Nunes, um tenente-general reformado que exerce as funções como civil e que há década e meia esteve no centro da crise criada com a proposta de equiparar o comandante-geral da GNR - ele próprio - aos chefes militares e com direito a ostentar uma quarta estrela..Esse conflito envolveu o então ministro da Administração Interna António Costa, o Presidente da República Cavaco Silva e teve a sua expressão pública máxima numa cerimónia militar em Santa Margarida. O texto final do decreto-lei que cria a ANEPC - sucessora da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) e pensada na sequência dos trágicos incêndios de 2017 - ainda não é conhecido e nem Belém ou o governo quiseram, interpelados pelo DN, divulgá-lo. Porém, numa versão inicial da proposta de decreto-lei datada de novembro e acessível na página digital da Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP), pode ler-se o seguinte: "O cargo de presidente é equiparado a subsecretário de Estado, dispondo de gabinete próprio, nos termos da legislação aplicável aos gabinetes dos membros do governo.".A história parece assim repetir-se por envolver o mesmo militar e, nas palavras irónicas de uma alta patente ao DN, a sua alegada "busca das estrelas perdidas". Curiosamente, quase todas as restantes autoridades nacionais do Estado - como a Tributária, de Segurança Alimentar, da Pesca, de Imersão de Resíduos, Medicamento, do Transporte e do Tráfego Marítimo, Ambiente, Floresta, Saúde ou Proibição das Armas Químicas - ficariam também protocolarmente (bem) abaixo da "autoridade nacional em matéria de emergência e proteção civil"..Defesa ou Administração Interna: quem é mais importante?.As exceções seriam a Autoridade Marítima Nacional e a Autoridade Aeronáutica Nacional, por serem cargos (de diretor-geral) desempenhados pelos chefes militares da Marinha e da Força Aérea - uma situação basicamente inversa à proposta de colocar a autoridade da Proteção Civil acima dos chefes dos ramos, embora abaixo do chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA)..Esquecendo quem preside à Proteção Civil, fontes parlamentares admitem ao DN que essa proposta poderia traduzir a nova importância dada pelo poder político - a ter sido validada pelo Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas - à área da Proteção Civil depois dos trágicos incêndios de 2017. Contudo, a informação divulgada pela Presidência só fala no executivo: "Sendo pelo governo considerada prioritária e urgente, para retirar lições do passado e enfrentar o futuro, a reforma constante do presente diploma, o Presidente da República promulgou o diploma do governo que aprova a orgânica" da ANEPC..Subjacente a esta posição das chefias militares, que terão considerado inaceitável aquela solução, terá estado ainda "uma coisa clássica de há muitos anos" relacionada com as "dificuldades na interligação entre a Administração Interna e a Defesa, observa um deputado da Comissão de Defesa. A verdade é que, a confirmar-se o novo estatuto protocolar do presidente da ANEPC, isso "coloca-o numa posição completamente diferente" face às outras áreas de atuação do Estado na área da PC - onde se incluem as Forças Armadas, em que ao longo dos anos tem havido responsáveis a não aceitar o que a Constituição e a conjugação das leis ordinárias determinam: até à declaração do estado de sítio, os militares apoiam e atuam sob a autoridade das forças e serviços de segurança em todo o território nacional (mar, terra e ar)..Precedências protocolares.Segundo várias fontes militares e na PC, o ponto cinco do artigo 11.º da proposta de lei orgânica da ANEPC mantinha-se na versão do diploma que circulava no final de fevereiro. Consultando a Lei das precedências do Protocolo do Estado Português, a proposta do governo colocaria o presidente da ANEPC na 20.ª posição - acima dos chefes militares dos ramos (21.ª), dos deputados à Assembleia da República (22.ª) e das "altas autoridades, altos-comissários, entidades reguladoras [e outros titulares]" (em 45.º lugar)..Os ministérios da Defesa e da Administração Interna não responderam às questões colocadas na segunda-feira pelo DN sobre o assunto. Belém disse que "não distribui diplomas do governo". O Estado-Maior-General das Forças Armadas respondeu de forma lacónica sobre um assunto melindroso e que até agora não tinha vindo a público: "No âmbito dos trabalhos preliminares à aprovação do referido diploma, o Conselho de Chefes de Estado-Maior pronunciou-se sobre várias matérias. O teor do referido parecer foi entregue às entidades competentes.".Desta formulação e para quem conhece os bastidores da instituição militar, aquela resposta revela que as chefias militares qualificaram aquele ponto como inaceitável..Diferentes fontes militares dos ramos disseram ao DN desconhecer se o artigo em causa acabou expurgado da versão final da lei orgânica da ANEPC. Mas assumiram o grande mal-estar com que a generalidade dos militares - "mesmo pessoal na reserva e na reforma", segundo um dos oficias - conhecedoras do processo recebeu a proposta..Outra fonte castrense, observando que o referido artigo permitia ao tenente-general Mourato Nunes "ir simbolicamente buscar a quarta estrela que não conseguiu quando esteve na GNR", argumentou que um diploma "não deve ser feito à medida das pessoas mas da instituição"..Agentes de proteção civil.As Forças Armadas, que a Lei de Bases da Proteção Civil reconhece como agentes de proteção civil, viram a sua colaboração reforçada nesse domínio e especificamente em matéria de fogos florestais após 2017..Apoio militar de emergência e logístico, patrulhamento ou atuação nas áreas de prevenção, rescaldo e vigilância foram áreas especificamente identificadas pela tutela, como aprovado pela tutela - sendo a mudança mais relevante ao nível dos meios aéreos: "À Força Aérea serão confiados o comando e a gestão centralizados dos meios aéreos de combate a incêndios florestais, por meios próprios do Estado ou outros que sejam sazonalmente necessários.".Um dos pontos em aberto entre a PC e a Força Aérea, pelo menos até muito recentemente, dizia respeito ao significado das palavras e dos conceitos quando usados por civis e militares - a fim de evitar dúvidas de interpretação durante as operações..Outro ponto de discordância, segundo fontes parlamentares, dizia respeito ao papel do ministro da Defesa em matéria de planeamento civil de emergência - uma área que transitou para a PC, na reforma feita pelo governo anterior, mas cujo órgão de cúpula continua a ser coordenado pelo ministro da Defesa..Note-se que a referida lei de bases da proteção civil já definia os termos em que se inicia essa colaboração. "Compete à ANPC, a pedido do comandante operacional nacional, solicitar ao Estado-Maior-General das Forças Armadas a participação das Forças Armadas em funções de proteção civil." A lei foi promulgada no domingo pelo Presidente da República mas ainda permanece desconhecida (não foi publicada no Diário da República).