Presidente e peritos em choque. Mudar ou não a matriz de risco

Presidente da República quer mudanças na matriz de risco mas os peritos presentes na reunião de ontem do Infarmed manifestaram-se contra. Governo equidistante.
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Mudar ou não mudar a matriz de risco - eis a questão. O Presidente da República e os peritos ontem presentes em mais uma reunião no Infarmed revelaram-se em posições opostas quanto a este assunto. O Presidente quer mudanças, os peritos desaconselharam. A matriz de risco é o índice composto por dois valores - índice de transmissibilidade e incidência pandémica - que norteia as decisões do Governo sobre medidas de confinamento/desconfinamento.

Na reunião de ontem - a 21ª desde que a pandemia chegou a Portugal -o Presidente da República, que participou por vídeo conferência a partir do Palácio de Belém, alertou hoje que há outros direitos fundamentais a defender, devido à pobreza e falências resultantes da gestão da crise sanitária, num momento em que os riscos da covid-19 para a saúde parecem descer.

O chefe de Estado, que há dois dias propôs uma mudança na matriz de risco face à crescente taxa de imunidade da população portuguesa contra a covid-19, realçou uma vez mais "a percepção de que os riscos estão a descer" e colocou a questão da "legitimação pública dos indicadores e dos critérios sanitários adotados". Segundo exemplificou, "não desce a incidência" de novos casos de infeção, "mas desce a incidência no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e nos números de mortalidade" e isso, "em termos de legitimação pública, é muito importante e em termos de ponderação de valores também".

"Desde o início o senhor primeiro-ministro e eu próprio em reuniões do Infarmed chamámos à atenção para o problema enfrentado pelos decisores políticos, e sobretudo pelo Governo", disse o PR, salientando que quem decide tem de "ter presente a salvaguarda da vida e da saúde", por um lado, e os "custos económicos e sociais", por outro. "É a pobreza, é a insolvência, é a falência: são situações económicas e sociais que atingem direitos fundamentais das pessoas. Parece evidente a primazia do direito à vida e do direito à saúde quando se trata realmente de riscos elevados de mortalidade e de riscos graves de stress sobre o SNS. Mas já não é tão evidente, e obriga a uma ponderação mais cuidadosa, quando a perceção é de que esses riscos estão a descer", sustentou.

Marcelo Rebelo de Sousa ressalvou que "a vida tendencialmente é um valor absoluto, e o direito à saúde é um direito que deve ter primazia sobre outros direitos, nomeadamente económicos e sociais, em casos em que isso é evidente em termos de risco de vida e de risco de stress nas estruturas de saúde". Mas quando esses riscos diminuem, "começa a ser menos evidente".

Segundo afirmou, "deve haver uma unidade total do poder político" na resposta à covid-19, mas é "crescentemente necessário explicar à perceção pública aquilo que não é uma evidência, é cada vez menos uma evidência, em termos de indicadores para efeitos de ponderação no dia a dia de decisões". No seu entender, terão de ser "decisões cada vez mais equilibradas" enquanto durar a atual conjuntura de pandemia e depois quando a doença se tornar mais localizada.

Marcelo falou no final das explicações iniciais dos peritos que abriram a reunião. E estes tinham afirmado claramente o contrário do que o Presidente depois diria.

"O grupo de peritos propõe manter a atual matriz de risco", afirmou a especialista Andreia Leite, da Escola de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa.

Segundo explicou, a incidência "traduz menor probabilidade de transmissão e menor probabilidade de aparecimento de variantes" e é "o indicador precoce que permite atuar adequadamente e atempadamente". E permite também perceber se ao levantar medidas de restrição há "recrudescimento da transmissão e identificar se existe alguma alteração das características do vírus ou da resposta das vacinas a novas variantes".

Falando em nome de uma equipa que inclui investigadores de várias instituições, como o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, Direção-Geral da Saúde e faculdades de ciências de Lisboa e Porto, Andreia Leite defendeu ainda que se deve "adicionar a monitorização da efetividade das vacinas" aos indicadores a ter em conta. "A vacinação deverá contribuir para manter valores controlados de infeção, logo não se justifica [a modificação da matriz de risco]", considerou a equipa. Ou seja: "A matriz permite dar o alerta e os outros indicadores [mortalidade, variantes de preocupação ou proporção de vacinados] devem ser considerados numa avaliação de risco mais detalhada" para decidir medidas, mas numa fase subsequente.

No meio disto, o Governo, através da ministra da Saúde, colocou-se numa posição aparentemente equidistante. A matriz - disse Marta Temido - é um sistema de alerta que não põe em causa o caminho para a reposição da normalidade. Quer dizer: "Não significa que o regresso à desejada normalidade não se vá fazendo, utilizando sempre a matriz de risco como alerta."

Na reunião, Carla Nunes, da Escola Nacional de Saúde Pública, informou que o concelho de Lisboa teve nas últimas três semanas 3,28 vezes mais casos de infeção covid-19 do que o esperado. A epidemiologista salientou que, como em Lisboa, se registaram na última semana sete "clusters" de casos no território nacional, quatro deles com alguma dimensão na diferença entre o que foi observado e o que era esperado tendo em conta a tendência nacional.A Golegã teve 9,14 vezes mais casos observados do que o esperado e Salvaterra de Magos 3,58 vezes mais casos

Carla Nunes apontou também uma "franca recuperação" nos indicadores de confiança dos portugueses na saúde. A falta total ou quase total de confiança na resposta do sistema à pandemia desceu de 32,7 por cento em meados de fevereiro para 14,1 atualmente.

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