Mariana Reis mudou o horário do supermercado. Fechava sempre aos sábados e domingos à tarde mas, de há seis anos para cá, o estabelecimento está aberto todo o fim de semana e, à semana, só fecha quando sai o último cliente - em regra um imigrante. Começou a colocar nas prateleiras produtos desconhecidos em Alfundão (Ferreira do Alentejo), como arroz basmati, limas, gengibre e picantes fortes. E reforçou as encomendas de manga, abacaxi, whiskey, cerveja e tabaco. É que a população da vila mudou. Um terço são estrangeiros que atravessaram continentes para ali chegar e chegam a ser metade dos habitantes nos picos das colheitas agrícolas, sobretudo a vindima. Quem lá vive, muitos idosos, "acha bem". "Se não fosse essa gente que vem de fora, quem é que apanhava as frutas?".José Santos, 79 anos, toda a vida pastor, faz a pergunta aos amigos, sentados num banco de pedra, à espera de que o dia termine. António Francisco, 60 anos, motorista, encolhe os ombros perante a importância, ou não, dos estrangeiros que têm povoado a terra, na maioria naturais do subcontinente indiano e Sudeste Asiático: Nepal, Bangladesh, Paquistão, Índia e Tailândia. Da Europa, chegam os romenos..Alfundão tinha uma população de 863 pessoas nos censos de 2011, 25% dos quais com 65 e mais anos. Apenas 8% tinham 10 anos ou menos. Situação idêntica à freguesia de Peroguarda, então com 364 habitantes..Carlos Raposo era presidente de Alfundão quando uniram as duas freguesias, na reforma de 2013. Autarca há 14 anos, explica que desde a inauguração da barragem de Alqueva, em 2004, viu chegar gente de outras paragens, o que também coincidiu com a expansão da Herdade de Vale de Rosa, onde os estrangeiros procuram trabalhar. Produz uva de mesa, com e sem grainha, em 250 hectares de vinha que a empresa espera duplicar - e onde são cultivadas 13 variedades de uva. É o maior empregador privado da região, diz Bruno Cruz, diretor de recursos humanos da empresa..Colheitas ditam a mão-de-obra."Além da vinha, temos citrinos, olivais, e a mão-de-obra nacional é escassa. Temos mais trabalhadores imigrantes do que portugueses, é o que nos vale. Algumas zonas do interior do Alentejo eram um deserto e o Alqueva trouxe-nos população", congratula-se Carlos Raposo. Chegaram tailandeses, romenos, paquistaneses, nepaleses, bangladechianos, indianos e, recentemente, venezuelanos, existindo até um programa na herdade de apoio a esta comunidade..O autarca conta que há nascimentos de pais imigrantes, já têm filhos destas comunidades na escola, o que é uma esperança para a localidade. É que o kit de 200 euros que a junta de freguesia dá a cada bebé ali nascido tem uma contribuição pequena para o aumento da natalidade local (entregaram nove no ano passado). Uniões mistas não se conhecem, a não ser um namoro entre uma portuguesa e um romeno. Mas o que está a ajudar mais, garante o autarca, são as unidades agrícolas, que não só atraem estrangeiros como contribuem para o regresso dos que nasceram na aldeia, que vêm desenvolver novos projetos..Os estrangeiros são a mão-de-obra que o Alentejo não tem e enchem as ruas de Alfundão, habitualmente vazias ou com idosos sentados às soleiras das portas ou nos largos da vila. José Santos questiona os mais céticos à movimentação: "Na terra, há meia dúzia de pessoas para trabalhar, se não fosse esta gente como é que as empresas faziam? Então os portugueses também não foram para fora?" Ao lado, Manuel Augusto, 67 anos, serralheiro, e José Paulino, 74, tratorista, concordam: "É bom virem para cá, fazem falta para fazer os serviços que há por aí." Habituaram-se. Já não viram a cabeça para ver "os homens que vestem saias". Nem se espantam com os turbantes - como o de Lakhvir Singh, um indiano de 38 anos que chegou em 2018. Os homens das saias usam na verdade um lungi em redor da cintura, indumentária dos países do subcontinente indiano..Os trabalhadores entram às 08.00 na Herdade Vale da Rosa e saem às 17.00 - durante as vindimas há dois turnos - e os que vivem longe são transportados por camionetas da empresa..É dia de semana, passa das 17.20, três tailandeses com mochilas percorrem um caminho de terra até chegar à casa, no Moinho do Azinhal, a meia dúzia de quilómetros de Alfundão. São tailandeses, dois vivem no Alentejo há cerca de um ano. Só o terceiro, Nong bau Lampho, 48 anos, há oito anos em Portugal, fala português, mas responde por monossílabos..No Monte do Azinhal vivem 17 tailandeses, numa casa antiga. Foram dos primeiros a chegar. Alguns metros em frente, em contentores delimitado por cercas, que dificultam a visão a quem passa ao largo, estão cerca de outros cem, oriundos do Nepal, Índia, Paquistão e Bangladesh. Há budistas, hindus e muçulmanos. E, dizem, as religiões convivem naturalmente..Diferenças culturais."Estamos bem organizados, temos três cozinhas e, enquanto uns fazem o comer, outros limpam ou vão à aldeia comprar comida e bebida", conta Saroj, indiano, 48 anos. O que é confirmado por Wichai Jandom, 32 anos, há cinco em Portugal e há quatro na herdade. Em geral, mal chegam a "casa", pegam nos telemóveis para ligar à família, procurando os sítios com melhor sina. Alguns trocam de roupa e enrolam um pano à cintura..O responsável pelos recursos humanos da Herdade Vale da Rosa assegura que as diferenças culturais e religiosas não causam constrangimentos na organização laboral. "A nacionalidade é pouco relevante para a empregabilidade, o que interessa são pessoas válidas e que correspondam aos nossos critérios", defende. Trabalham com uva de mesa, um produto sensível e cuja colheita tem de ser feita à mão. Quanto à habitação dos trabalhadores, Bruno Cruz justifica: "Infelizmente, não conseguimos encontrar alojamentos e temos de alojar as pessoas em unidades móveis [contentores]. Têm recuperado uma ou outra casa antiga na vila.".Na Herdade do Vale da Rosa há atualmente cerca de 300 trabalhadores permanentes, para um total de 450 funcionários. No pico da atividade atingem os mil. É o período das vindimas, entre finais de julho e início de setembro. É uma mão-de-obra em constante rotatividade, não só devido à atividade agrícola ser sazonal, mas também porque os imigrantes procuram outras áreas à medida que se vão integrando..Hotelaria concorre com a agricultura.Bruno Cruz defende que não se trata de um problema de salário - cerca de 650 euros mensais, mais as horas extra - ou de falta de condições laborais, mas do tipo de trabalho e do envelhecimento da região. "O nosso maior concorrente é a indústria hoteleira, não há mão-de-obra e as pessoas estão a mudar da agricultura para a hotelaria. O trabalho na hotelaria até pode ser mais duro, por causa dos turnos, mas fazem mais horas e juntam mais dinheiro", lamenta o gestor. Contratam imigrantes que se encontram na região e recorrem a empresas de trabalho temporário. O diretor de recursos humanos assegura que só trabalham com prestadores de serviços "certificadas e sérios", como a Multitempo..Carlos Mira trabalha na Multitempo, é o gestor de cliente da Herdade Vale da Rosa, onde tem 160 trabalhadores. Contratam os estrangeiros em Portugal. Na delegação do Barreiro, a que pertence, tem uma lista de 1500 pessoas - da Índia, do Bangladesh, do Paquistão e do Nepal -, que vai colocando nas explorações consoante o calendário agrícola: as vindimas a partir de julho e de agosto, as flores e o olival começam em setembro/outubro, o mirtilo e os frutos vermelhos iniciam-se em fevereiro/março, os citrinos são nos meses seguintes, voltando-se ao início do ciclo..O gestor de cliente garante que esses imigrantes acabam por ficar no país vários anos, em geral, até obterem a nacionalidade portuguesa. Podem obter o CC português após seis anos de permanência legal. Garante que a regularização destas pessoas é, agora, mais fácil e rápido. É também esta a justificação destes cidadãos para a escolha de Portugal. "Durante o processo de legalização, não podem sair de Portugal. Tenho pessoas que estiveram seis anos à espera dos papéis e tenho pessoas que esperaram quatro meses.".Quanto à integração das comunidades, Carlos Mira responde: "Integram-se melhor do que se fôssemos nós nos países deles. São extremamente inteligentes e estão bem informados. Obviamente que fazem o papel deles, no fundo, à semelhança do que os portugueses fazem no Luxemburgo e na Suíça." E já tem relacionamentos mistos na empresa. "Tenho um supervisor, que é indiano, e namora com uma portuguesa.".Justifica o trabalho temporário com a especificidade da agricultura. "Nas fábricas há imigrantes permanentes. São temporários nos primeiros dois anos e, depois, as empresas contratam-nos diretamente.".O presidente da União de Freguesias de Alfundão e Peroguarda tem a mesma perspetiva em relação às novas línguas, culturas e religiões que estão a povoar o Alentejo. "Não trazem problemas de qualquer nível. Alguns, como os romenos, começam a fixar-se, e os que vêm para o trabalho sazonal vão-se embora felizes. Mas, enquanto cá estão, integram-se, participam nas iniciativas e nas festas locais. Aliás, atribui o nome de "Uma freguesia dinâmica", para pôr a população em movimento e demonstrar todo o nosso dinamismo..Carlos Raposo diz que que não são um problema para os poucos serviços públicos existentes, nomeadamente para a extensão de saúde local, com um só médico e quatro vezes por semana. Justifica que os imigrantes são jovens, que têm médico na empresa e, quando precisam de medicamentos, vão à farmácia..É notório o movimento nas horas livres do trabalho agrícola, mas não se notam grande relacionamento dos estrangeiros com os locais, mas os comerciantes agradecem. Mariana Reis, 56 anos, vende duas a três vezes mais no seu supermercado, o que depende da altura do ano. David Maldonado, 40 anos, e Ana Martinho, 45, abriram o Nova Era há quatro anos e não se queixam do negócio, mesmo com sete cafés na aldeia. "Já havia esta imigração quando abrimos. São bons clientes e não trazem problemas", diz David. Os romenos bebem mais cerveja e bebidas brancas, já os indianos, nepaleses, paquistaneses e bangladechianos pedem mais café, galão e refrigerantes. "Todos bebem e todos fumam, cerveja e tabaco é com eles, foi muito bom para o negócio", diz Manuel Chacoto, 60 anos, dono da Tasquinha Chacoto, que exibe com orgulho o alvará de utilização, de 1942..Quem não frequenta os cafés faz como os irmãos Shreshan, Nabir, 32 anos, e Suman, 37. Despacham uma cerveja de litro e meio e um pacote de batatas fritas sentados numa mesa no largo da vila. "Estávamos na Polónia, disseram-me que havia trabalho em Portugal e viemos há um ano."