Tempos agitados na vida pública do cinema francês. Escrevo a quente, sob o efeito de um comunicado (divulgado ao fim da tarde de quinta-feira) em que os jornalistas da redação dos Cahiers du Cinéma, chefiados por Stéphane Delorme, anunciam a sua saída da revista. Motivo: a aquisição da histórica publicação por um conjunto de acionistas que inclui oito produtores do cinema francês..Aplicando o direito decorrente da chamada "cláusula de cessão", os jornalistas reivindicam também a "cláusula de consciência que protege o direito do jornalista quando há uma mudança de proprietário de uma publicação." A composição dos novos acionistas suscita-lhes "um problema imediato de conflito de interesses numa revista de crítica". Consideram também que "a carta de independência anunciada pelos acionistas" tem sido contraditada por vários "anúncios brutais", incluindo a nomeação de Julie Lethiphu, delegada-geral da Sociedade de Realizadores de Filmes, para o cargo de diretora-geral da revista; para os jornalistas, tal nomeação reforça uma vontade de controlo que, segundo eles, se tem condensado na ideia segundo a qual a revista precisa de se "recentrar no cinema francês"..Convenhamos que o contexto português não será o mais favorável para termos a perceção exata do terramoto editorial e cinéfilo que estes factos podem representar. Conheço há décadas o obsceno poder do lugar-comum segundo o qual os "críticos" limitam-se a "imitar" os Cahiers du Cinéma, tornando inoperante qualquer tentativa de explicar que, mesmo quando podemos divergir de opções inerentes à sua dinâmica editorial (é o meu caso), nada disso invalida o reconhecimento da revista como uma referência modelar, por vezes fascinante, na história do pensamento crítico sobre cinema..O comunicado da redação refere que foi dito aos jornalistas que a revista deve passar a ser "convivial" e "chique". Tanto basta para que se tenha instalado uma profunda inquietação entre os profissionais dos Cahiers du Cinéma: o primarismo dos adjetivos ilustra valores (ou a falta deles) que reduzem a prática jornalística a uma acumulação de futilidades sem pensamento e o pensamento a um luxo que importa evitar..Não por acaso, o comunicado recorda ainda que os Cahiers du Cinéma sempre se definiram por uma atitude de reflexão em torno da pluralidade da produção francesa. Há mesmo uma referência a um lendário artigo de François Truffaut ("Uma certa tendência do cinema francês"), publicado em 1954, criticando o conformismo temático e estético da produção francesa tradicional e, em boa verdade, lançando as bases ideológicas e simbólicas da nouvelle vague, por certo o movimento mais influente de toda a história do cinema e da cinefilia..Tendo André Bazin (1918-1958) como figura tutelar, o primeiro número dos Cahiers du Cinéma foi publicado em abril de 1951. Na capa (com o célebre fundo amarelo, que persistiria até outubro de 1964), surgia uma imagem de William Holden e Gloria Swanson no filme Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder..E há qualquer coisa de inquietante e perverso na ponte simbólica que podemos estabelecer entre esse momento inicial e o rosto de Martin Scorsese na capa mais recente dos Cahiers du Cinéma (com data de fevereiro de 2020). Com o génio dos visionários, Wilder encenava a personagem trágica de Norma Desmond (Swanson), estrela fúnebre de uma paisagem primitiva de Hollywood em lenta decomposição. Agora, Scorsese é reconhecido como intransigente defensor de um cinema que não esvazie os valores clássicos da narrativa e, mais especificamente, não se perca nos artifícios pueris de super-heróis e respetivos efeitos especiais..Nesta perspetiva, a crise editorial nos Cahiers du Cinéma é sintomática de uma crise mais global. Está em jogo a sobrevivência do cinema como matéria específica de expressão e pensamento, espetáculo e fruição. No limite, importa defender a dimensão universal da geografia do cinema, há dias menorizada por Donald Trump quando se insurgiu contra o facto de o Óscar de melhor filme do ano ter sido dado a uma produção da Coreia do Sul (Parasitas). Citou mesmo dois títulos que, segundo ele, valeria a pena voltar a ver: E Tudo o Vento Levou (1939) e, ironicamente, Crepúsculo dos Deuses... A sugestão é interessante mas, decididamente, não estamos a falar do mesmo.