Desde que McCullouch e Pitts propuseram os neurónios artificiais em 1943 e a inteligência artificial (IA) se concretizou como disciplina em 1956, os discursos sobre ela são regularmente de dois tipos: promessas de soluções fáceis para problemas complexos, ou o medo de vermos o ser humano subjugado às máquinas. As aplicações da IA na saúde não escapam a esta dicotomia, adensando-a ainda pela importância emocional que damos às decisões críticas nesta área. A realidade é, como esperado, mais complexa e, do ponto de vista do doente, está ainda muito distante das promessas..Do ponto de vista conceptual, a inteligência artificial é a demonstração, por uma máquina, de algum tipo de inteligência. A vasta amplitude de avanços científicos nas áreas da ciência de computadores (com o desenvolvimento de novas técnicas e algoritmos), bem como da engenharia (informática, mecânica ou biomédica, que a implementa), levou a que rapidamente se começasse a chamar IA a qualquer solução dedicada a resolver uma tarefa que requeira inteligência, independentemente de serem soluções puramente analíticas ou que contenham alguma componente de inteligência emocional ou social..Apesar das diversas correntes de desenvolvimento, os avanços mais recentes têm surgido num subtipo de algoritmos com IA, que criam modelos inteligentes, explicativos e/ou de decisão, a partir de aprendizagem automática de grandes quantidades de dados. Nestes computadores que aprendem com a experiência, são usados modelos analíticos para criar representações de conceitos a partir de dados em bruto, que são posteriormente aplicados para classificar ou prever novos casos. A grande vantagem deste tipo de IA é a sua capacidade de processar quantidades de informação que levariam vidas inteiras a estudar, compilar e aplicar por um humano, em particular, um profissional de saúde..Devido a essa mesma capacidade, a IA tem o potencial de ver, nos dados, aquilo que os humanos não foram capazes (ou não tiveram tempo) de detetar. Esta propriedade dá origem aos títulos, frequentes na imprensa, que proclamam haver já algoritmos mais capazes do que clínicos experientes a diagnosticar certas patologias. No entanto, quando olhamos para os pormenores, depressa surgem problemas. Esses resultados são conseguidos em ambientes controlados, com os dados que alimentam os algoritmos já tratados e "limpos" do ruído que normalmente os acompanha..A distância entre os resultados conseguidos na investigação e a capacidade de aplicar a tecnologia no dia-a-dia são referidas por Panch et al. num artigo recentemente publicado na revista Digital Medicine. Os autores falam em duas grandes barreiras. Uma delas é a natureza das rotinas de trabalho dos profissionais de saúde, integradas num sistema de incentivos que não é alterado pela introdução de novas ferramentas. A outra prende-se com as lacunas da infraestrutura para colheita e tratamento de dados, que impossibilitam a partilha ágil de informação entre diferentes detentores dos dados, para treinar os algoritmos, devido à inexistência de standards que reúnam consenso alargado para recolha de dados em saúde. Se forem gerados muitos dados, mas estiverem todos codificados de forma diferente, torna-se quase impossível fazer uso da quantidade para tornar mais "inteligente" o algoritmo..As soluções de IA são atualmente limitadas na função e no espaço. Se alguém pretender usar o mesmo algoritmo para diagnosticar uma outra patologia, ainda que parecida (mesmo processo de diagnóstico, mesmo órgão afetado, mesma especialidade clínica), será incapaz de obter resultados igualmente bons, já que o algoritmo não possui a capacidade de generalizar o conceito aprendido. Além disso, estão otimizadas para populações particulares, dificultando o seu uso em vários locais simultaneamente, pelo menos sem se proceder a nova validação dos resultados e avaliação dos impactos..Outra vantagem apontada à inteligência artificial, que também deixa dúvidas, é a sua "imparcialidade". Apesar de ser uma ferramenta tendencialmente despida de intenções, não é verdade que esteja livre de vieses. Para perceber isso, basta recordar que a IA aprende com base nos nossos registos sobre o mundo. Se um profissional de saúde cometeu erros a recolher dados, ou foi influenciado por vieses, conscientes ou inconscientes, que depois transportou para os dados que recolheu, a inteligência artificial irá propor respostas igualmente enviesadas..É sobretudo sobre vieses que falam Cahan et al., também na revista Digital Medicine. Os autores destacam dois tipos: viés de amostragem e viés de observação. O viés de amostragem, que parece ser particularmente importante, diz respeito às populações incluídas e excluídas da recolha de dados. Tipicamente, quem está mais excluído dos cuidados de saúde não estará representado; o mesmo acontece a quem tem menor acesso a ferramentas digitais complexas, como wearables ou dispositivos médicos. Da mesma forma, será difícil para a IA lidar com situações clínicas mais invulgares, como doenças raras ou a junção de múltiplas patologias comuns, devido à escassez de dados e de oportunidade de estudo..Se a inteligência artificial promete muito, está ainda longe de servir aos doentes. Quando alguém recorre a um serviço de saúde, não chega com sintomas e sinais bem definidos, prontos a alimentar um algoritmo capaz de fazer um diagnóstico ou sugerir um tratamento. Os sintomas estão muitas vezes mascarados por outros fatores, ou apresentam-se com nuances que dificultam a sua tradução por palavras ao doente e, consequentemente, ao clínico. Não surpreende, por isso, que a IA esteja a ter maior sucesso sobretudo em problemas de análise de sinal: exames de imagem, sinais biométricos ou análises genómicas..O software Face2Gene já permite, perante uma fotografia da face de um doente, apresentar propostas de genes potencialmente causadores de doença. Este é um problema ideal para o estado atual da IA no setor da saúde: problemas que consistem na análise rápida de milhares de possibilidades registadas na literatura, patologias graves que um profissional de saúde provavelmente nunca experienciou..Apesar de todos os problemas apontados, o potencial que a ferramenta traz ao setor da saúde é inegável. Ao contrário dos profissionais de saúde humanos, por muitas noites de urgência ou tardes de consultas sem intervalos, a IA não se cansa, não tem sono e não se irrita com os doentes. Um outro uso, que pode ser igualmente transformador, é a aplicação de ferramentas de IA aos milhares de artigos científicos que todos os anos são produzidos em cada área. Só sobre cancro, estima-se que existam mais de 160 mil novos artigos por ano. Será natural haver muito conhecimento por descobrir nos resultados da investigação, e a IA pode ajudar a sistematizar essa busca..Como escreve Eric Topol, no seu recente Deep Medicine (ed. Ingram Publisher Services), um livro sobre o potencial da inteligência artificial na saúde, "muito do que está errado com a prestação de cuidados de saúde não será resolvido por tecnologia avançada, algoritmos ou máquinas". A escassez de recursos humanos, o pendor que nos leva a afastar a prevenção e preferir o tratamento, e o ecossistema de desenvolvimento e produção de medicamentos, para dar apenas três exemplos, continuarão a fazer-se sentir. Resolvendo problemas de infraestrutura tecnológica e de qualidade dos dados, será possível expandir o alcance desta tecnologia. Juntando a isso garantias de equidade, ética e transparência no tratamento dos dados, torna-se desejável que a IA venha a cumprir as suas enormes promessas de melhoria da qualidade da prestação de cuidados. Até lá, estaremos ainda no domínio da promessa..OPINIÃOO papel dos médicos e da inteligência artificial na saúde.Para Diana Portela, médica de saúde pública e doutoranda em Ciência de Dados em Saúde na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, o potencial da IA na saúde é grande, mas há ainda muito a trabalhar. .O discurso sobre a inteligência artificial (IA) nem sempre é claro e a incompreensão dos conceitos leva a que se distorça o seu real impacto, fruto de excelentes manobras de marketing e da tendência humana para antropomorfizar esta tecnologia. Trata-se, na verdade, de uma ferramenta cujo atual enquadramento na saúde merece reflexão..São vários os potenciais benefícios da IA na saúde. Como a diminuição crescente da sobrecarga burocrática, a identificação de fenótipos de pacientes associando-os a padrões genéticos, a melhoria do diagnóstico ou ainda a uniformização na tomada de decisões clínicas..É, portanto, provável que a IA melhore a qualidade dos cuidados reduzindo o erro humano e diminuindo a fadiga do médico resultante de tarefas clínicas de rotina, cuja eficácia após sete horas de trabalho vai, naturalmente, diminuindo, enquanto a da máquina será sempre a que o algoritmo ditou. Aplicações práticas da IA expandem-se desde áreas de diagnóstico de imagem à investigação epidemiológica em saúde pública. A prevenção, a monitorização e a deteção precoce de infeções, a identificação ou a previsão de casos índex de doença e padrões de infeção, usando dados de surtos anteriores, possibilitarão uma resposta rápida e direcionada..Devemos lembrar-nos de que a única fonte de conhecimento das máquinas são os dados com que as alimentamos. Se não lhe damos dados de qualidade e representativos da população em estudo, ela vai basear-se em dados enviesados. Os médicos, como integradores de informação, detêm um papel vital no registo da informação disponível, incluindo na garantia de qualidade da mesma. No entanto, o ambiente do sistema de saúde não fornece incentivos para a partilha de informação e a gestão de tempos de consulta não potencializa o bom desempenho nesta tarefa..Apesar das limitações inerentes à própria IA, as forças de mercado, as regulações de proteção e os médicos, enquanto integradores e intérpretes de informação, devem atingir um equilíbrio para garantir que o benefício dos doentes seja "o" objetivo de maior prioridade.. *Jorge Félix Cardoso e Pedro Pereira Rodrigues são investigadores na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e membros do grupo AI4Health, do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS).