Marta Bobichon Loja Neves. Conhece este nome? Provavelmente não. Marta tinha 16 anos quando em abril de 1999 falou perante a então Comissão de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, na Suíça, a representar Timor-Leste. Na altura não havia Facebook, Twitter nem Instagram nem telemóveis com câmaras - incrível, não é? Houve um tempo assim - e apesar de Timor ser nesse ano um dos principais assuntos na atualidade portuguesa o feito não foi uma sensação mediática. 20 anos depois, muito poucos saberão dele..Como é que aconteceu ver-se nessa situação? Também nisso a história de Marta tem coincidências com a de Greta. Tinha 9 ou 10 anos a 12 de novembro de 1991, quando como tantas vezes sucedia chegou a casa antes dos pais, vinda da escola, e ligou a TV. Quando estes abriram a porta lá estava ela, a absorver as imagens do massacre de Santa Cruz..O pai, o jornalista António Loja Neves, já desaparecido, teve de decidir se desligava o aparelho e poupava a filha àquela atrocidade ou a deixava assistir, ajudando-a a perceber. Optou pela segunda hipótese. Marta, que na altura escrevia poesia, escreveu um poema sobre o massacre. O poema foi parar às mãos de Ramos-Horta e depois às de Xanana, que lhe ligou a agradecer. Iniciou-se com esse contacto uma amizade por correspondência entre o resistente timorense e a menina pré-adolescente, que se foi por essa via entrosando nos meios da resistência timorense..É assim que a Marta de 16 anos faz parte do grupo de representantes de Timor-Leste que em 1999 viaja para Genebra. Não sendo Timor-Leste um país mas um território ocupado, Ramos-Horta tinha conseguido uma acreditação para falar ante aquela comissão da ONU em nome de uma ONG, a Asian Buddhist Conference for Peace, enquanto na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, se iniciavam as negociações com a Indonésia para o referendo..Foi precisamente essa coincidência a determinar que Marta falasse perante a comissão: havia muito pouca gente fora de Timor para representar os interesses dos timorenses e todas as outras pessoas que deveriam estar em Genebra, incluindo Ramos-Horta, acabaram por ir para Nova Iorque, deixando-a sozinha na Suíça, onde escreveu, pelo seu punho, vários discursos para apresentar na comissão. Discursos esses que lia ao telefone a Xanana Gusmão, então preso em Jacarta, para que ele fizesse as correções que entendesse necessárias..E Malala, também é uma marioneta?.Marta está, obviamente, longe de ser uma pioneira. Sete anos antes de ela se ter dirigido a uma comissão da ONU, a canadiana Severn Cullis-Suzuki, com apenas 12 anos, discursava para os líderes mundiais na Rio-92, a cimeira das Nações Unidas sobre desenvolvimento sustentável, em nome da Environmental Children"s Organization, e com palavras que parecem saídas da boca de Greta Thunberg. "Estou aqui para falar em nome das gerações vindouras. (...) Estou aqui para falar em nome dos inúmeros animais que estão a morrer em todo o planeta porque não têm mais para onde ir.". Já Nkosi Johnson, de 11 anos, quando, vestido com um fato que parecia grande de mais para ele, falou na primeira conferência internacional sobre VIH-sida a ter lugar em África, em 2000, e perante mais de dez mil pessoas contou a sua história e pediu ao governo (cujo presidente tinha um discurso de negação da existência do vírus HIV) para dar AZT às grávidas infetadas para que não passassem a infeção aos filhos - o que, precisamente, tinha acontecido com ele -, estava a meses de morrer.. Não faltam pois na história, recente e menos recente, adolescentes ou até crianças capazes de lutar por aquilo em que acreditam. De falar apaixonada e eloquentemente em palcos mundiais e de ter atividade política. E até de arriscar a vida. Como sucedeu com Malala Youzafzai: começou a escrever um blogue sobre a sua vida no Paquistão, numa zona sob ocupação talibã, quando tinha 11/12 anos, em 2009, defendendo o direito das meninas à educação. Por via da notoriedade mediática que ganhou tornou-se um alvo: aos 15 anos foi atingida com uma bala na cabeça quando entrava para um transporte escolar. Sobreviveu para se tornar, em 2013, a mais jovem recipiente de sempre do Nobel da Paz - para o qual Greta Thunberg foi agora nomeada. Também nesse ano Malala foi considerada uma das cem pessoas mais influentes do mundo.."Lutem pelas vossas vidas".Se não foi difícil acreditar que a paquistanesa Malala é genuína - isto, claro, se não perguntarmos a um talibã - porque será que a sueca Greta cria tantos anticorpos e suscita tantas teorias de conspiração?.Será o objeto da sua luta que faz a diferença? Certo é que os jovens em quem se inspirou para a sua greve climática, que lutam pelo controlo de armas de fogo nos EUA, foram alvo do mesmo tipo de acusações e desconfianças. Trata-se do movimento criado por 20 estudantes do liceu de Parkland, Florida, onde a 14 de fevereiro de 2018 um ex-aluno de 19 anos, Nikolas Cruz, matou 17 pessoas..Intitulado Never Again (Nunca Mais), o movimento, que surgiu quatro dias após o tiroteio, convocou a "Marcha pelas Nossas Vidas", que a 24 de março mobilizou milhões de pessoas em 800 cidades dos EUA e noutros países. Terá sido a primeira vez que, na era das redes sociais, adolescentes usaram, com tanto sucesso, a sua capacidade de mobilização para exercer pressão política..O mundo espantou-se com a sua eloquência, coragem e paixão. Nomeadamente com Emma Gonzalez, de 18 anos, que com o seu cabelo rapado e blusão militar leu, entre lágrimas, um discurso poderoso em que repetiu "seis minutos e 20 segundos" (o tempo que o tiroteio durou) e recitou o nome de todos os colegas mortos, para depois obrigar a multidão a seis minutos e 20 segundos de silêncio. Terminou dizendo: "Lutem pelas vossas vidas, antes que seja preciso outros fazerem-no.".A mesma fogueira, 600 anos depois.A ideia de exigir mudança em nome de um direito ao futuro e a greve às aulas dos estudantes de Parkland a seguir ao tiroteio foram inspiração para Greta, à procura de uma forma eficaz de agir em relação à emergência climática, que a atormentava desde os 11 anos: "Foi de onde veio a ideia. Porque talvez não faça muito sentido estudar se não vamos ter um futuro.".Contou-o num post no Facebook: em maio de 2018, depois de um jornal sueco publicar um texto seu no âmbito de um concurso sobre o tema ambiente, um ativista ligado a um grupo de jovens que procuravam formas de agir para chamar a atenção para a crise contactou-a. Houve reuniões e a greve dos jovens de Parkland foi mencionada. Greta gostou da ideia, mas como mais ninguém estava interessado, desenvolveu-a sozinha, até contra a opinião dos pais. A 20 de agosto de 2018, uma sexta-feira, começou-a, à frente do Parlamento sueco. "Estava frio e estava sozinha", diz. "Ninguém me ligava nenhuma.".Foi assim, com frio, sozinha e perante a indiferença dos passantes, que esta menina de 15 anos começou o movimento Fridays for Future (Sextas-Feiras pelo Futuro). Parece mentira que um ano depois seja capa de tudo e mais alguma coisa, diga aos líderes mundiais "como se atrevem". E alvo de uma cruel campanha de ódio..À imagem dos jovens de Parkland, sujeitos a escárnio e a uma onda de descredibilização que os acusou de serem "atores" e "marionetas" de interesses políticos - por sua vez à imagem, como lembraram vários articulistas americanos, dos estudantes negros que nos anos 1960 lutaram pela integração nas escolas do sul -, esta miúda de 16 anos é acusada de constituir uma "fachada", de receber financiamentos obscuros (a última a correr é que é neta do multimilionário George Soros) e de a sua luta ser uma forma de a sua família ganhar dinheiro - isto por mais que ela e os pais garantam que tudo o que ganham com livros, por exemplo, é doado. Houve até quem já a apelidasse (comentaristas da Fox News) de "doente mental" e "criança do milho" - em referência ao livro de Stephen King sobre uma seita de crianças que adoram um milheiral; um colaborador de uma rádio brasileira chegou ao ponto de dizer que o problema dela é falta de sexo (já pediu desculpa).."Um dia vou ter de parar com isto e voltar para a escola", disse Greta numa entrevista recente. Esperemos que possa fazê-lo em paz. E que algum dia sejamos capazes de refletir sobre o facto de acreditarmos que há quase 600 anos, quando as mulheres eram seres de segunda, uma miúda chamada Joana d'Arc se vestiu de homem e combateu à frente de um exército para salvar o seu país, ardendo na fogueira por isso, e termos tanta dificuldade em aceitar que uma menina sueca pode querer ajudar a salvar o mundo com palavras, despertando consciências. E de ter a coragem necessária para enfrentar toda a raiva e ódio que a sua luta, incrivelmente, suscita.