Marrocos. No flutuante "Rick's Café"
Mala de viagem (113). Um retrato muito pessoal de Marrocos.

Cheguei a Casablanca no meu primeiro cruzeiro. Partira de Lisboa num navio de 110 metros deslizante no oceano desde 1982, mas que, entretanto, deixou de navegar e está convertido num casino flutuante em Singapura. Este foi o primeiro dos grandes projetos comemorativos dos Descobrimentos Portugueses, que foi lançado pela Comissão Nacional, desafiando as autarquias a realizarem um concurso literário entre os jovens até aos 25 anos. O objetivo foi juntar um representante de cada concelho, através do concurso subordinado ao tema "Descobre a Tua Terra", também a propósito do Ano Europeu do Turismo. Tive o grato prazer de ter sido escolhido como representante das Caldas da Rainha, enquanto, por exemplo, Gonçalo Cadilhe foi o vencedor na Figueira da Foz. Partimos para uma memorável viagem de partilha dos aspetos que uniam os jovens portugueses nesse tempo. De 22 a 28 de agosto de 1990, a viagem decorreu a bordo do paquete soviético Dmitriy Shostakovich, cuja tripulação era originária daquele país, num mundo estranho e desafiante no meio do mar, entre Lisboa, Casablanca, Las Palmas e Funchal. O nome do navio provém do compositor russo que, apesar de trabalhar para o Governo estalinista, sofreu deste a opressão e diversas tentativas de censura, continuando a lutar pela independência artística até ao fim da sua vida. Sem dúvida, um bom tónico para nós que tínhamos alcançado, por via da arte da escrita, esta viagem de cruzeiro. No cais da Rocha do Conde de Óbidos, à partida, as famílias juntaram-se. Vinham de todos os pontos do país para se despedirem daqueles para os quais, certamente uma grande parte, era a sua primeira grande viagem, a viagem inaugural e iniciática de umas quantas coisas. A primeira imagem, logo após a entrada no navio, era a que nos juntava nos varandins, acenando, quais tropas viajando para as ex-colónias, mas com diferenças: em vez da guerra, a folia, e, no "adeus até ao meu regresso", o regresso era daí a uma semana. Logo que o navio descolou, outro ritmo de vida começou. Difícil era estar em todo o lado: a discoteca, o salão de dança, os debates, o cinema, os jogos, o exterior a ver o mar e as estrelas ou a dar um mergulho na piscina. Tudo menos dormir, porque o tempo convidava a muito do novo que esta experiência permitia. As noites eram sempre longas. Havia o perigo de os painéis de reflexão e debate poderem vir a ser pouco frequentados. Os temas para os jovens, oriundos de um país, todo ele ali representado, eram suficientemente interessantes: os Descobrimentos, a Europa, a Política e o Futuro de Portugal. Lembro que foram colocadas questões que revelaram preocupações, depois concretizadas: "O que é que nos vai acontecer em termos profissionais quando, em 1993, se abolirem as fronteiras europeias? Precisaremos depois de emigrar para arranjar emprego? Será que os jovens vão ser ouvidos? O que é, afinal, a política?" O mundo, hoje em dia, é diferente, mais global, e os interesses mudaram, o que só por si faz perigar os níveis de participação cidadã e pública. Esta mudança acaba até por fazer esquecer os problemas da época, por exemplo as manifestações de jovens contra as políticas governamentais, nomeadamente na área da educação. Consta que havia um padre a bordo, mas não dei por ele, ou pelo menos já dele me não lembro. Reza noutras crónicas que ele afirmou que, passada uma década, a humanidade estaria muito mais equilibrada. Acho que não. As escalas deste cruzeiro serviram para conhecer ou reconhecer as cidades do itinerário, como o porto e os cheiros de Casablanca. Este cruzeiro foi essencialmente virado para dentro, para as pessoas que se conheceram e conviveram durante uma semana, como se não mais a vivêssemos assim, ou jamais nos pudéssemos voltar a ver. Foi, por assim dizer, uma conquista através do talento de jovens portugueses rondando os vinte anos. E de África ficou o poema: "Casablanca/ Casa branca flutuante,/ um navio viajante/ e uma paragem escassa./ Um olhar que - no porto desembarca/ mas que de novo nesse dia embarca -/ leva a saudade de quem abraça/ e a promessa de voltar à história/ daquele verso que vem à memória:/ "as time goes by" - como o tempo passa." Surpreendentemente, na reportagem do "DN Jovem", sou referido pela jornalista Isabela Figueiredo como um jovem muito procurado, pensando ela talvez nas "Ingrid Bergman" presentes e num "Rick"s Café" flutuante. Tal-qualmente, o drama romântico do filme!
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Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.