Cerca de 60 mil alunos das universidades e politécnicos ainda estão à espera para saber se têm direito a bolsas de estudo neste ano letivo. Um problema informático provocou um atraso na análise dos processos, como noticiou o Público na edição desta segunda-feira. O problema já estará resolvido, mas cerca de 40 mil candidaturas de alunos com menos rendimentos ainda estão nos serviços de ação social, mais 11 511 do que no ano passado..Ainda segundo o Público, outros 18 mil processos estão paradas por falta de informação, mais dois mil do que em igual período de 2017, e só 27 mil alunos já têm a garantia de que terão apoio, menos 11 mil (30%) em comparação com há um ano. Mas que casos escondem estas frias estatísticas? O de alunos de famílias carenciadas que têm de cortar nos gastos à espera de um apoio que pode chegar só em 2019. Há relatos ao DN de cortes nos transportes, na alimentação, nos livros. E de quem receie, no final da espera, perder a bolsa, essencial para o orçamento familiar..Só fotocópias por capítulo e corte no passe. Beatriz Rosa, aluna do 4.º ano de Direito na Universidade de Lisboa e vice-presidente da associação de estudantes, conhece como poucos os atrasos nas bolsas na sua faculdade: além de ter sido até há bem pouco tempo a responsável pela ação social na Associação de Estudantes da Faculdade de Direito, é ela própria uma das estudantes a precisar de apoio do Estado para estudar. No ano passado recebia 315 euros por mês, que iam quase todos com a torrente de despesas com o quarto que aluga em Marvila: paga 260 euros só pelo alojamento, que sobem para bem perto dos 300 com os gastos de água, net e luz. Isto sem contar com alimentação, despesa sempre variável mas que não fica abaixo dos 200/250 euros. Juntem-se ainda os 17 euros de passe e entretanto os 315 euros da bolsa já foram há muito..Mas, quando a reta final do primeiro semestre do ano letivo já se adivinha, nem esse valor tem entrado na conta. "Só conto começar a receber, na melhor das hipóteses, daqui a um mês." No início, achou que o atraso podia estar relacionado com a alteração no seu agregado familiar, o avô passou a viver com a sua família, em Montemor-o-Novo, o que deve fazer que a bolsa que lhe é atribuída desça. "É complicado viver sem este dinheiro. Porque se tenho bolsa é porque obviamente a minha família não tem muito dinheiro para sustentar a minha vida em Lisboa." Beatriz admite mesmo que muitos alunos do 1.º ano sejam pressionados pelas famílias a abandonar os cursos, por não terem capacidade para pagar os estudos. "Isso aconteceu-me no 1.º ano de curso, a minha família não pediu para eu deixar Lisboa, mas fui pressionada para apertar muito o cinto. No ano passado já tive de trabalhar durante o verão para pagar as despesas enquanto não vinha a bolsa.". Agora já não tem esse recurso, portanto o apertar de cinto voltou a tornar-se obrigatório, e vai da alimentação aos livros. "Os manuais do 4.º ano são caríssimos, podem custar 75 euros, e até as fotocópias podem ficar por 15/20 euros. Portanto, não posso comprar os livros e vou tirando fotocópias apenas dos capítulos de que vou precisando. Na alimentação, como mais no bar social da universidade, embora prefira o outro, e fico mais em casa do meu namorado, em Alfragide, o que também me ajuda a poupar. Além disso, evito gastar dinheiro em passe, que já não carrego desde setembro.".É possível tirar o curso sem bolsa? "Vamos ver...".Bárbara Borges tem 21 anos mas está apenas no 1.º ano de Direito em Coimbra. A razão é simples, já esteve inscrita em três anos do curso de Antropologia, que não acabou porque queria fazer uma segunda licenciatura. Mas se se inscrevesse depois de se licenciar perdia o direito à bolsa. Um apoio muito importante para que consiga estudar na cidade. Apesar de vir dos arredores de Coimbra, Bárbara recebe 73 euros mensais para pagar a residência universitária na Alta, que junta aos 1060 euros para pagar a propina anual. "Se me atrasar mais de três dias no pagamento da residência, perco direito ao complemento de alojamento. Já os cem euros mensais para a propina, podia usar noutros gastos, mas uso apenas nesse.".Apesar de não pagar do seu bolso a residência, os "outros gastos" não ficam por menos de cem euros por mês. Porque se só na conta do supermercado gasta pelo menos 60 euros, sobretudo em alimentação, "os horários atribulados, por causa do curso e por ser dirigente associativa, obrigam-me a comer fora da residência muitas vezes"..O maior medo de Bárbara é mesmo que, neste ano, a espera pela bolsa seja em vão. A um último ano "muito complicado", em que a mãe deixou de trabalhar depois de um acidente, pode agora juntar-se a perda de apoio se os serviços considerarem que já não tem direito à bolsa de estudo por ter mudado de curso e ir já na quarta matrícula (os candidatos a apoio têm de concluir o curso com um número total de inscrições anuais não superior a n + 1 ano, se a duração normal do curso [n] for igual ou inferior a três anos, ou a n + 2 anos, se a duração normal do curso for superior a três anos). E se isso acontecer, tudo muda na sua vida: "Tenho de sair da residência, tenho de pagar mais transporte, vou ter mais custos de alimentação, não posso ficar na faculdade até mais tarde, por exemplo a estudar na biblioteca, vai ter um enorme impacto na minha família." E isso põe em causa a conclusão do curso de Direito? "Para já, não põe", responde Bárbara sem muita convicção. "Mas depois vamos ver...".Dinheiro chegaria só para ir a casa.Ao fim de cinco anos no curso de Arquitetura, em Coimbra, Cláudia Ribeiro, 23 anos, não sabe o que é receber mais do que o apoio para pagar as propinas. Os 1060 euros anuais equivalem a 106 euros repartidos por dez meses. "Imaginemos que eu precisava de ir a casa, em Guimarães, todos os fins de semana. Uma viagem de ida e volta fica por 25 euros, portanto o dinheiro que recebo daria apenas para isso, não sobrava para todas as outras coisas."."Todas as outras coisas" são as já tradicionais habitação - a despesa com o quarto e os gastos a ele associado vão até aos 230 euros -, a alimentação - "pelo menos outro tanto, na casa dos 200 euros" - e o muito material que tem de usar no curso. Para se ter a noção, cada cadeira do curso de Arquitetura "fica no final a rondar os cem euros". "E é a minha família que tem de pagar tudo, porque a carga de trabalho inerente a um curso destes não me deixa tempo livre para trabalhar. É óbvio que pesa muito no orçamento familiar, porque se tenho direito a bolsa é porque não temos assim tantos recursos.".O maior lamento de Cláudia é mesmo esse, o valor que lhe é atribuído e que conta voltar a receber outra vez neste ano. Ainda assim diz que o atraso no processamento do apoio, que ainda está em análise nos serviços da universidade, não a prejudicou muito. "Como o valor é o mesmo da propina, estou isenta do pagamento até receber o resultado da bolsa. Só não posso usar esse dinheiro para outras despesas."