Imagine ver manipulado o ADN do seu bebé, para que este se torne imune a determinadas doenças. É tudo uma questão de genética e disso He Jiankui não tem dúvidas. Nesta segunda-feira, foi avançada a notícia de que o cientista chinês da Southern University of Science and Technology (SUSTech) garantia ter criado os primeiros bebés geneticamente modificados. O fenómeno está a gerar polémica, mas o bastonário da Ordem dos Biólogos de Portugal, José António Matos, acredita que esta experiência vem trazer "uma nova linguagem" e "um marco" à ciência, apesar dos riscos. Mas quanto de ético cabe aqui? E de legal?.Para o biólogo, na genética, é preciso "não confundir 'evolução da espécie humana' com 'evolução tecnológica'". E esta última é já uma realidade corrente "há milénios". Há muito que o "homem manipula o 'património genético' dos animais que vai domesticando. Cruza os melhores cavalos para obter uma raça pura com determinadas características que lhe são convenientes, da mesma forma que cruza artificialmente bovinos, caprinos, ovinos, cães, gatos, patos, entre outros, com o único objetivo de obter uma variedade que ainda não existia, com aquelas características, na natureza", explica..E depois dos cruzamentos entre animais, aqui sim, o ADN. José António Matos revive a revolução que o ADN trouxe ao panorama científico, quando se passa a ter conhecimento da sua função, da sua estrutura e de mecanismos que permitem a sua manipulação. Daqui para a experiência do cientista He Jiankui seguir-se-ia cerca de meio século, como conta..Rapidamente foram abertas portas à alteração de informação genética transmissível entre pais e filhos. Cientificamente falando, "tornou-se possível construir vetores - porções de ADN, normalmente circular, fechado, de pequena dimensão -, em que podemos inserir nesses vetores (in vitro, ou seja, em tubo de ensaio) genes da mesma ou de outra espécie, reintroduzir o vetor numa célula ou organismo para que essa célula ou organismo passe a expressar a informação genética daquela inserção de ADN desconhecido". Nasceria assim aquilo que o bastonário considerou "a era da engenharia genética e dos organismos geneticamente modificados"..Agora, a ciência parece ter ido mais além. A notícia, avançada em exclusivo pela agência de notícias Associated Press (AP), conta que duas gémeas, Lulu e Nana, tiveram o seu ADN manipulado para que estas ganhassem resistência inata à infeção pelo vírus VIH. São os primeiros bebés resultantes da experiência, em que estiveram em análise embriões de sete casais que procuraram tratamentos de fertilidade..Não é, contudo, a primeira vez que é testada uma edição genética, nem tão-pouco uma estreia da eficácia de um processo genético. José António Matos adianta como exemplo "casos em que foi, por exemplo, possível curar uma distrofia muscular de origem genética". A grande novidade está no facto de se tratar de embriões e não adultos, em que esta tecnologia, designada CRISPR-cas9, era utilizada como ferramenta experimental para combater doenças terminais e incapacitantes. O bastonário da Ordem dos Biólogos não tem dúvidas dos bons resultados: "Não é o primeiro passo na investigação, não é uma prioridade da investigação atual, mas acredito que seja eficaz.".Nos anos 1990, pela primeira vez, o norte-americano Stephen Crohn - conhecido pela notável mutação genética que o tornou imune à sida, e sobrinho-neto de Burrill Bernard Crohn, quem deu nome à doença de Crohn - dava conta da mutação do gene CCR5, correcetor do VIH, que quando transformado criava uma resistência ao vírus. Ficaria conhecida como Delta 32 e Jiankui revelou que a sua experiência partiu exatamente deste mesmo processo, que replicou em laboratório através de uma nova ferramenta, a CRISPR-cas9..O biólogo José Matos insiste em alertar para a boa aplicação de conceitos neste tema: não se trata de modificação genética, mas sim edição genética. "Não estamos a dotar aquele animal de algo substancialmente novo, mas sim a conferir-lhe uma característica útil que a maioria da população tem." Tenta uma explicação trocada por miúdos: "Imaginemos que um animal (humano ou não humano) possui uma doença genética que se manifesta pela alteração de uma única base do seu ADN. Imagine-se que a versão 'normal' (mais comum) é ATTGCATGCTA e a versão mutada (mais rara) é ATTGCAGGCTA. Ocorreu a troca de uma única base (um T por um G, ou seja, uma timina por uma guanina) e isso é suficiente para que ocorra uma doença.".E as possibilidades podem ir muito além das transformações em humanos e animais. José Matos descreve esta como uma técnica "extraordinariamente inovadora, promissora e que potencia inúmeras possibilidades na agricultura, em saúde e basicamente em todas as áreas das ciências biológicas"..Uma faca de dois gumes.O bom e o mau. Da ciência, ambos fazem parte e José Matos diz ser importante medir tudo..Começa por sublinhar as vantagens revolucionárias desta experiência, apontando como principal a precisão da zona do genoma que será modificado. Além disso, "se uma criança foi diagnosticada com uma doença genética, em particular uma doença genética provocada por uma mutação simples, é agora possível curar essa doença alterando a base do ADN responsável pela doença". Uma linha de investigação "a ser desenvolvida em inúmeros países, com resultados promissores"..Esta técnica pode até curar plantas. "Se uma planta é devastada normalmente por um vírus ou um fungo, podemos introduzir nessa planta um gene de resistência ou tolerância ao fungo ou ao vírus, gene esse que exista na mesma espécie, mas numa variedade que não seja tão produtiva do ponto de vista agronómico"..Mas uma grande vantagem pode também constituir um grande perigo. E esta técnica pode ser uma faca de dois gumes. O especialista aponta o custo como um dos riscos desta operação. De acordo com o biólogo, "é muito mais barata de realizar, não necessita de equipamento muito sofisticado e embora não possa ser feita na nossa cozinha, pode ser feita num laboratório sem grande sofisticação e a custos pouco significativos". O que pode "abrir o processo a pessoas com objetivos menos humanitários ou até terroristas". E aqui José Matos compreende bem por que razão a experiência é polémica. "Imagine-se que alguém possa tentar modificar uma bactéria patogénica por forma a ela ficar resistente a todos os antibióticos conhecidos.".Acima de tudo, o verdadeiro perigo, na sua ótica, está na possibilidade de "alguém começar a pensar em selecionar genes 'favoráveis' que artificialmente desejasse introduzir em todos os embriões de uma população". Apesar de ser "um enorme avanço tecnológico que permitirá no futuro aliviar o sofrimento de muitas pessoas com patologias de origem genética - e isso é de celebrar e apoiar -, a mesma técnica levanta problemas éticos de enorme preocupação"..Por isso diz ser fulcral que a sociedade civil "tome conhecimento dos aspetos técnicos e participe na discussão pública, juntamente com os especialistas". Preocupa-o que esta experiência em particular não se destine "a aliviar um sofrimento estabelecido, mas tão-somente a prevenir o surgimento de uma infeção, cuja prevenção pode facilmente ser realizada sem qualquer intervenção genética". "Embora a técnica seja promissora, não deverá ser este o caminho para a sua utilização", esclarece..O trabalho do investigador chinês não está ainda validado pela comunidade científica e já a surtir reações. Foi já elaborada uma carta aberta, assinada por 120 cientistas chineses, que declararam a "insanidade" da experiência. Também a Comissão Nacional de Saúde da China disse que iria "investigar seriamente" as declarações do cientista..No mesmo dia em que o cientista dava a notícia da sua experiência genética, o jornal chinês South Chine Morning Post alertava para o facto de muitos especialistas na China, incluindo funcionários da Comissão Nacional de Saúde e a equipa hospitalar do local onde as gémeas utilizadas na iniciativa terão nascido. Até agora, ainda não é claro que o que He Jiankui diz ter conseguido seja verdade..Primeiro a ciência, depois a lei.Está a lei do lado da ciência e desta experiência em específico? Neste tema, o biólogo José Matos não hesita em deixar o seu manifesto: "O conhecimento científico não deve ser temido, mas sim compreendido." A verdade, como conta, é que "a parte legal surge sempre com alguma distância no tempo. Primeiro vem a ciência, depois a legislação"..Cabe aos cientistas fazer o trabalho de investigação, testar as suas possibilidades e deixar alternativas para o bem da humanidade, mas é preciso "estar alerta para a má utilização dessas descobertas, que não são da responsabilidade dos cientistas". "E cabe à sociedade civil informada e aos governos decidirem sobre os limites das aplicações. A ciência produz automóveis que dão 300 km/h. Mas o Estado impõe o limite de 120 e cabe ao cidadão cumprir.".Pesando tudo na balança, o bastonário não tem dúvidas em classificar os avanços tecnológicos na área da genética "essenciais". "Só quem não tem na família ou amigos pessoas com doenças genéticas graves, letais, gravemente limitantes, é que pode achar que já não é necessário avançar com o conhecimento e descobrir novos processos de cura", remata..No site noticioso Quartz, escreve-se que a alegada invenção do cientista chinês "vai contra as diretrizes de 2015 da Cúpula Internacional sobre Edição de Genes Humanos, que concluiu que 'se, no processo de pesquisa, embriões humanos precoces forem submetidos à edição genética, as células modificadas não devem ser usadas para estabelecer uma gravidez'"..Ainda assim, em entrevista à agência AP, He Jiankui disse ter a ética do seu lado. "Se pudermos ajudar as famílias a proteger os seus filhos, é desumano para nós não o fazer."