Durante três meses, Filipa Reis e João Miller Guerra filmaram no arquipélago de Cabo Verde a odisseia de Djon África, a quem Miguel Moreira, ator de vários documentários dos realizadores, emprestou corpo e muita da sua história. Djon percorre o arquipélago à procura do pai, que nunca conheceu. Todavia, é Cabo Verde que ele, nascido e criado na periferia de Lisboa, apesar do passaporte cabo-verdiano, descobre. E com isso, descobre-se a ele próprio e a maturidade que daí advém..Com produção e argumento de Pedro Pinho, realizador de A Fábrica do Nada, e direção de fotografia de Vasco Viana, a primeira longa-metragem de ficção de Reis e Miller Guerra, Djon África, com Miguel Moreira e Isabel Cardoso, chega amanhã às salas portuguesas..Os realizadores, autores de Fora da Vida ou Li Ké Terra, viajaram quatro vezes ao arquipélago, onde haveriam de filmar no Tarrafal das ilhas Santiago, São Nicolau, Santo Antão e São Vicente. O espanto com que filmam a terra diz já muito daquele que conheceram em Miguel, quando pela primeira vez a pisou, e do que também foi deles, que passaram tantas horas a ouvir as histórias contadas por cabo-verdianos a viver em Portugal..Filipa Reis e João Miller Guerra apresentam o filme amanhã às 21.30 no Cinema Ideal, em Lisboa..Já trabalham há muitos anos com o Miguel Moreira, neste filme a personagem principal. A vontade de fazer com ele esta primeira ficção vem dessa relação, de algo que queriam explorar naquela pessoa/personagem?.João Miller Guerra (JMG): O ponto inicial é: o meu pai morreu há cinco anos e nós estávamos no momento de começar a pensar que primeira longa de ficção haveria de ser a nossa, uma vez que tínhamos chegado à altura de a escrever e realizar. De repente eu apercebo-me de que ao nosso lado está uma pessoa, com quem já tínhamos feito várias coisas, que não conhecia o seu pai. Porque não fazer uma tentativa de procura do Miguel, que sabia que o pai estava vivo e em Cabo Verde, mas não sabia onde? É um clássico, uma história universal: o herói que vai à procura do pai, um bocado à procura dele mesmo, à procura das suas origens também. Convidámos o Pedro Pinho [realizador de A Fábrica do Nada], que estava a viver em Cabo Verde, para escrever este filme connosco. Fomos lá fazer a viagem que o Pedro propunha, ainda sem o Miguel. Da quarta vez já fomos com o Miguel para filmar com a equipa e por lá ficámos três meses. Foi uma aventura inesquecível..Às vezes estavam à procura que o Miguel fosse ele mesmo? A chegar a Cabo Verde? A reagir ao país?.JMG: Sim, nós queríamos muita coisa do Miguel..Filipa Reis (FR): Estamos muito nesse equilíbrio, ou nesse jogo, entre o que ele consegue dar em cenas de improvisação que nós não escrevemos, e que nos surpreendem, e por outro lado garantir que há uma estrutura narrativa que está pensada e um conjunto de cenas que não podem falhar, porque senão não conseguimos seguir com o filme ou neste caso com a viagem..Vocês conheciam o Cabo Verde de quem nunca o viu, como a geração dos filhos daqueles que vêm de África e que já cresceram em Portugal - ou aqui nasceram, como o Miguel - a ouvir histórias de Cabo Verde..JMG: Exatamente. Essas histórias também nos foram contadas a nós. De alguma maneira nós também já transportávamos este fascínio que o Miguel tinha com Cabo Verde. Para nós foi uma viagem absolutamente incrível..Como é que encontraram as pessoas para estas personagens? Sobretudo a Maria Antónia....FR: A personagem estava completamente definida antes. EIa aparece em São Nicolau. Fomos fazer uma viagem e andávamos a perguntar se alguém conhecia uma senhora com aquelas características. Já sabíamos que gostávamos que fosse franzina, que fumasse cachimbo, velha mas ainda com genica... Uma das pessoas com quem falámos, um rapaz que trabalhava no banco do Tarrafal, disse: "Eu conheço essa senhora. Ela não fuma é cachimbo, fuma tabaco, e não vive sozinha mas tem um marido." Nós omitimos o marido. Fomos ver a casa dela, onde acabámos por filmar, porque era deslumbrante. O sítio era incrível e quando vamos a chegar sai uma pessoa vestida de festa, tinha havido um batizado, toda contente. Começámos a falar com ela e realmente era muito semelhante àquilo que estava escrito. Tivemos a certeza: é ela..JMG: É uma força da natureza.FR: Era arrebatadora. Havia nas frases que ela nos dizia uma consciência do que estava a fazer deslumbrante..Embora tudo lhe fosse completamente estranho?.FR: Tudo. Ela vinha de um meio tão distante do nosso e daquilo que estávamos a propor... Nem televisão tem. Mas ao mesmo tempo tinha uma intuição, uma sensibilidade de perceber o que estávamos a pedir dela... Acho que pensou: "Também vou gozar este prato.".O que é que teve mais força no espanto ou na reação do próprio Miguel a Cabo Verde? O país é quase uma personagem do vosso filme, vocês demoram-se na paisagem..FR: Acho que tive a plena consciência de que o Miguel é um tipo urbano. Enquanto estivemos num Cabo Verde urbano ele esteve como um peixe na água..JMG: É uma espécie de um regresso quase aos antepassados que depois se esgota muito rapidamente porque ele está mais habituado a estar do outro lado. Eu acho que o mais impressionante de tudo - e de certa forma isso também está no filme - é uma grande tomada de consciência da parte do Miguel, embora se calhar nem seja uma coisa muito falada, que de facto ele é um cidadão europeu a olhar para África, e não um africano trancado na Europa..FR: Não sei se ele ia aceitar se te ouvisse dizer isso....JMG: Talvez ainda vá digerir. Embora africano, ele foi sempre tratado como um turista. Por mais cabo-verdiano que seja, tem o passaporte cabo-verdiano e aqui na Europa explicam-lhe que não é português... Portanto, ele tem todos os motivos para estar chateado com Portugal e para ter esta confusão na sua identidade que é mais do que legítima..Chegou a haver um contacto real dele com família de lá?.JMG: Sim. Nós tentámos que isso acontecesse..FR: Tanto como o pai, penso que ele queria muito conhecer o resto da família, a avó, os tios....Descobriram o pai?.JMG: Descobrimos. Ele esteve com o pai e até passou o Natal com a família..Escolheram o Aleluia, Aleluia do Pedrinho, que tem tido um grande redescobrimento, para fechar o filme..FR: Um de nós comprou no Tarrafal da Praia vários CD. Um deles era de Pedrinho. Passámos a rodagem inteira a ouvir..JMG: Eu gosto de achar que nós também somos responsáveis por isso. O nosso filme está pelos festivais desde janeiro do ano passado. E toda a gente fala da música.