Boeing: a crise do 737 Max ainda causa turbulência
10 de março de 2019. Um Boeing 737 Max da Ethiopian Airlines despenha-se poucos minutos depois de levantar voo do aeroporto de Adis Abeba e mata 157 pessoas. Cinco meses antes, em outubro de 2018, o mesmo modelo de avião da Lion Air tinha caído 13 minutos depois de descolar do aeroporto de Jacarta, provocando 189 mortos. Os dois acidentes com aviões da gigante aeronáutica norte-americana mataram 346 pessoas e desferiram um duro golpe na empresa e num modelo emblemático que sobrevoa o mundo há cerca de meio século. Como irá recuperar a empresa da falta de confiança da opinião pública e das reguladoras da aviação internacional? Que impactos têm a proibição dos 737 Max voarem e de centenas de aviões estarem estacionados sem serem entregues a quem os encomendou?
Nesta quarta-feira, 29 de janeiro, a empresa anuncia os resultados anuais e as respostas a estas questões deverão ser todas conhecidas. Já se sabe, pelos estilhaços no PIB norte-americano e contas dos primeiros nove meses de 2019, que as finanças da Boeing foram estrondosamente afetadas pela perda de confiança na segurança das aeronaves decorrentes deste dois acidentes aéreos - o que levou à proibição de voarem em 58 países e à suspensão do fabrico daquele modelo.
Os reflexos desta crise sem precedentes foram, de facto, conhecidos nos primeiros nove meses do ano passado - de janeiro a setembro - quando a empresa anunciou lucros de 374 milhões de dólares (cerca de 340 milhões de euros), uma queda de 95% face ao período homólogo de 2018. Contas com um impacto negativo de, pelo menos, 0,5 pontos percentuais no PIB norte-americano.
"A economia norte-americana poderá ter crescido 2,5% e não 3% por causa da prestação desta gigante da aeronáutica. Não há dúvida de que a situação na Boeing vai abrandar o PIB. A Boeing é uma das maiores exportadoras", disse Steven Mnuchin, secretário de Estado norte-americano do Tesouro no dia 12 de janeiro à Fox News.
Na semana passada, o presidente dos Estados Unidos teceu duras críticas à construtora aeroespacial, afirmando que se trata de uma "empresa muito dececionante", referindo-se à quebra no PIB dos Estados Unidos decorrente da crise gerada pelo 737 Max.
"A Boeing é uma das grandes empresas do mundo, mas desde há um ano que as coisas começaram a acontecer de repente", disse Donald Trump em entrevista à CNBC, à margem do Fórum Mundial Económico de Davos, na Suíça.
Como se não bastassem as duas tragédias aéreas, separadas apenas por cinco meses, a Boeing tem sofrido diversos reveses. Também o avião ucraniano abatido com dois mísseis já neste mês de janeiro pelas forças militares do Irão era fabricado pela empresa norte-americana - o abate "por engano", conforme vieram afirmar os líderes políticos e religiosos iranianos, fez 176 vítimas mortais.
Mas a malapata não se fica por aqui: a cápsula espacial não tripulada Starliner falhou, em dezembro, a acoplagem com a Estação Espacial Internacional, indo aterrar num deserto da região oeste norte-americana. Foi a primeira vez que a Boeing testou a cápsula espacial.
Todos estes acontecimentos, toda esta pressão, foram demasiado para que Dennis A. Muilenburg se mantivesse como presidente executivo (CEO) da empresa - demitiu-se, na véspera de Natal, dois dias depois do falhanço espacial e de a empresa anunciar a suspensão do fabrico do 737-M.
"O conselho de administração decidiu que era necessária uma mudança de liderança para restabelecer a confiança na capacidade da empresa de seguir em frente, numa altura em que trabalha para reparar o relacionamento com reguladores, clientes e todos os restantes stakeholders", afirmou a empresa aeroespacial em comunicado, acrescentando que Muilenburg será substituído por David L. Calhoun, que desempenhou as funções de chairman até 13 de janeiro.
Muitos casos que têm provocado estrondos na empresa, embora o verdadeiro impacto venha a ser conhecido com o encerramento das contas de 2019. Depois de acidentes mortais, de se ver obrigada a parar a produção e do rolar de cabeças - a que se juntam as críticas do presidente norte-americano pela descida do PIB -, a Boeing sofreu outras estocadas: documentos internos saíram cá para fora e denunciam que a empresa estava a dar prioridade à redução de custos na fabricação de aeronaves em detrimento da segurança e da realização de testes consecutivos antes de o 737 Max começar a ser comercializado.
Foram ditas coisas tão graves, pelos próprios funcionários, como os 737 Max terem sido "projetados por palhaços e supervisionados por macacos" - a alusão aos macacos é vista como uma aparente referência à Administração Federal de Aviação (FAA, na sigla inglesa), a supervisora norte-americana da aviação civil.
Das mensagens trocadas entre funcionários, nomeadamente engenheiros, encontram-se outras bastante preocupantes: "Punhas a tua família numa aeronave treinada no simulador Max? Eu não punha." A resposta do colega: "Não."
Outra mensagem, que faz parte do dossiê entregue no Comité dos Transportes do Congresso norte-americano, onde os congressistas estão a investigar o processo de certificação do 737 Max: "Ainda não fui perdoado por Deus pelo que escondi no ano passado", escreveu outro funcionário em 2018.
A Boeing não tardou a vir a público fazer a sua defesa: "Estas comunicações não refletem a empresa que somos e que precisamos de ser, e são completamente inaceitáveis."
Além dos Estados Unidos, país natal da empresa, 53 estados fecharam os seus espaços aéreos a estas aeronaves da Boeing: Portugal está, como os restantes membros da União Europeia, entre esses países que suspenderam temporariamente o uso de aviões 737 Max, depois da queda dos aviões da Ethiopian Airlines e da Lion Air. E muitas companhias optaram por imobilizar os novos Boeing 737-8 Max e 337-9 Max no solo.
A empresa tomou uma decisão sem precedentes de suspender a produção deste modelo emblemático a partir de janeiro de 2020 - ainda esteve nove meses a fabricar o 737 Max, mesmo depois das proibições de vários países em resultado dos problemas de fabrico.
A Boeing emitiu mesmo um comunicado a informar que não ia demitir os funcionários ligados ao fabrico deste modelo, mas mostrou estar consciente de que esta paralisação pode afetar a cadeia produtiva e toda a economia mundial.
Em novembro do ano passado, um alto executivo da gigante aeronáutica disse que a empresa estava empenhada em reconquistar a confiança dos clientes. Stan Deal fez estas afirmações no Dubai, já depois de serem conhecidos documentos internos em que os funcionários da empresa revelavam preocupações sobre o design do sistema de voo que terá estado na origem dos acidentes, bem como com o ritmo acelerado da produção de aviões.
Só que a origem dos acidentes do 737 Max não se deve apenas a questões de fabrico e aponta para um problema que combina questões técnicas com o fator humano, já que as caixas negras dos aviões acidentados revelaram semelhanças. Ou seja, falhas entre o sistema automático de estabilização MCAS - maneuvering characteristics augmentation system (sistema de aumento de características de manobra) e a capacidade de controlo dos pilotos.
O Boeing 737 - que entrou ao serviço há cerca de meio século - é tão popular que se estima que aterrasse ou levantasse voo um destes aviões a cada 1,5 segundos em todo o planeta. A reputação da aeronave ficou, contudo, gravemente ferida depois da queda dos dois aviões que provocaram a morte de 346 pessoas. Agora, para a empresa, não é só de dinheiro que se trata, mas também de recuperar a credibilidade e a confiança dos passageiros de todo o mundo.
A empresa começou por dizer que iria "fazer tudo" para evitar acidentes aéreos e para restabelecer a confiança no 737 Max, apresentando em março do ano passado várias alterações ao sistema deste modelo. "Iremos fazer o nosso melhor para garantir que este tipo de acidente não volte a acontecer", afirmou Mike Sinnett, chefe de desenvolvimento de novos produtos da divisão de aviação civil da Boeing.
Apesar de ter anunciado a mudança e a atualização do MCAS, o software que pretende evitar que o avião perca sustentação, o ano de 2019 fechou da pior maneira: as encomendas caíram para o mínimo de várias décadas e as entregas de aviões desceram para valores de 2008, em contraste com a concorrente europeia Airbus.
A fabricante norte-americana, que viu muitas encomendas canceladas ou modificadas depois de aberta a crise do 737 Max, recebeu 246 encomendas, mas, depois de 192 alterações contratuais, restaram apenas 54.
As entregas derraparam para metade, face a 2018 - foram fabricados 380 aviões. Sendo que tem em atraso mais de 5400 pedidos de aeronaves de longa e curta distância. A Ryanair, por exemplo, cuja frota é constituída por Boeings, já foi obrigada a rever os planos de crescimento devido ao atraso nas entregas - veio dizer que se não chegarem pelo menos dez aviões, que já deviam ter chegado no ano passado, terá de fazer mais cortes em aeroportos.
A TAP não tem este problema, porque a frota da companhia aérea nacional é constituída por aviões Airbus.
"Se as entregas do B-Max se reduzirem a zero, podem surgir novos encerramentos de bases em Espanha e outros países europeus", bem como "mudanças nos calendários" de voos, alertou ainda Kenny Jacobs, diretor de marketing da Ryanair.
Após decidir deixar a base aérea em Faro, a Ryanair acabou por se manter no Algarve, depois de chegar a acordo com a ANA - Aeroportos de Portugal quanto a taxas aeroportuárias mais vantajosas.
O primeiro voo do Boeing 737 aconteceu em 1967 e desde então transformou-se no avião mais vendido do planeta - quase dez mil aeronaves entregues -, fabricado por uma das maiores empresas do mundo. Entrou ao serviço um ano depois, na companhia aérea alemã, a Lufthansa.
Uma das curiosidades é que já transportou o equivalente à população do mundo, cerca de sete biliões de passageiros.
Para responder à concorrente europeia Airbus, que tinha lançado o A320, em 2017, a gigante norte-americana anunciou o 737 Max 8, sucessor do Boeing 737 Next Generation, prometendo mais sustentabilidade, eficiência e conforto. Até serem proibidos de voar, havia 300 destas aeronaves em atividade e cinco mil encomendadas.
Uma das novidades avançadas em relação ao velhinho 373 era a economia de combustível ser mais ecológica e mais leve - menos 350 toneladas. Os motores são maiores e mais silenciosos, levando a uma redução de ruído de 40%.
O 737 Max trouxe outra grande novidade: a atualização do software de sistema de controlo de voo, com a introdução do MCAS, o tal estabilizador que é acionado automaticamente quando o avião entra em queda ou perde sustentação (o estol, em linguagem técnica), que lhe permite baixar o nariz.
O grande problema é que a construtora aeroespacial não informou os pilotos deste software, por considerar que fazia parte do manual de voo.
Em outubro do ano passado, precisamente um ano depois da queda do avião da Lion Air, Dennis Muilenburg, ainda CEO da empresa, admitiu pela primeira vez os erros da Boeing. "Sabemos que cometemos erros e que estávamos errados. Somos culpados disso", afirmou, perante o Comité do Comércio do Senado norte-americano.
A única boa notícia recente para a Boeing foi, finalmente, a realização do voo inaugural do 777X, no passado sábado (25 de janeiro), e que marca o início de uma nova bateria de testes de voo para que o modelo possa obter certificação. O avião partiu de Paine Field e aterrou na base aérea da Boeing em Washington, nos Estados Unidos.
O vento forte tinha obrigado a adiar o voo inaugural, na quinta e depois na sexta-feira.
O 777X tem capacidade para transportar entre 384 e 426 passageiros e é também uma resposta ao A350 da Airbus. Trata-se do maior avião bimotor do mundo, com capacidade para voar por até 13 500 km, suficiente para ligar quase todas as principais capitais do mundo sem necessitar de fazer escalas.