A vitória de Chloé Zhao na 93.ª edição dos Óscares serviu para relembrar que há mulheres a fazer cinema. Depois de Kathryn Bigelow, a sino-americana foi apenas a segunda a subir ao palco para receber a estatueta numa categoria que ao longo do tempo, de forma mais ou menos deliberada, contribuiu para a validação da ideia de que atrás da câmara o olhar pertence aos homens. Por obra e graça do acaso, é no espírito desta celebração do feminino que se inscreve o lançamento (com estreia em sala no próximo dia 13 de maio) de Women Make Film - As Mulheres Fazem Cinema, uma caixa de cinco DVD com mais de um milhar de excertos de filmes realizados por mulheres. Um cativante itinerário de 14 horas assinado por Mark Cousins, o cinéfilo que tem espalhado a sua paixão em valiosos trabalhos documentais, como A História do Cinema: Uma Odisseia (2001) e Os Olhos de Orson Welles (2018), ambos editados em DVD pela Midas Filmes, que é de novo a responsável por esta importante edição..Desde o princípio, a narrativa do cinema fez-se no masculino. Não por ausência de mulheres na cadeira de realizador, mas porque o mapa das grandes obras se desenhou em função de uma maioria: os "clássicos" citáveis são invariavelmente de homens e o seu discurso, enquanto valor assumido de um coletivo, moldou os estudos de cinema. Um exemplo à mão dessa ordem estabelecida é a notável coleção de livros Cahiers du Cinéma - Grandes Realizadores, que em 25 volumes, de Charlie Chaplin a Manoel de Oliveira, não conta com uma única mulher. Todos os realizadores aí contemplados marcaram, de facto, a paisagem da Sétima Arte, e não há nada de condenável na coleção em si. A questão é aquilo de que ela dá testemunho: o cinema como um inquestionável clube de rapazes..Ora, um dos realizadores que surge consagrado na referida coleção, Francis Ford Coppola, foi, ele próprio, aluno de uma das pioneiras da indústria do cinema americano, Dorothy Arzner, realizadora que acabou a lecionar na UCLA School of Theater, Film and Television. Uma relação que pode muito bem ilustrar os termos do documentário de Cousins. A saber, Women Make Film apresenta-se como um road movie que vai viajando pelos cinco continentes, enquanto proporciona depuradas lições de cinema através de diferentes conceitos..Cada um dos seus 40 capítulos corresponde a um aspeto da linguagem cinematográfica, a um tema ou a um género (da montagem aos grandes planos, da política ao sentido da vida, da comédia ao melodrama), e para todos eles há uma série de fragmentos de filmes realizados por mulheres que revelam a arte delas, contrariando o ensino canónico talhado pelos clássicos "masculinos". Quer dizer: porque é que quando se fala na mestria de um travelling só se cita Welles, Max Ophüls ou Alexander Sokurov? Cousins faz-nos mergulhar no exemplo espantoso de um travelling do filme D"Est (1993), de Chantal Akerman, que concentra todo o sentimento do colapso da União Soviética..Já deu para perceber que na qualidade de espectadores é como se ficássemos na posição do jovem estudante Coppola diante da professora Arzner, neste caso entregues a uma "Academia de Vénus" (como lhe chama Cousins) que revela formas de inteligência, destreza e poética nascidas atrás da câmara, sem que os ditos ensinamentos das imagens se associem, por si só, ao género feminino. Entenda-se: cada um dos filmes chamados à extensa masterclass prova que a voz autoral não se confunde com sensibilidades especificamente femininas. Um filme de uma mulher - pensemos em Bigelow - pode sugerir um olhar masculino. Não há obras reféns de uma etiqueta de género, embora haja olhares que ficaram na sombra de um sistema patriarcal. Esta é uma indústria "sexista por omissão", escreve também Cousins no texto que guia todo o documentário, narrado por Tilda Swinton, Jane Fonda, Sharmila Tagore e Debra Winger, entre outras atrizes..Aqui percorrem-se "estradas" de algumas realizadoras conhecidas (para além de Bigelow, Agnès Varda, Sofia Coppola, Jane Campion, Lucrecia Martel), mas a magia de Women Make Film está sobretudo na (re)descoberta de mulheres ainda escondidas na sombra, como seja a brilhante e trágica Larisa Shepitko (1938-1979), nome maior do cinema soviético, Kinuyo Tanaka (1909-1977), a Bette Davis do Japão, atriz de Mizoguchi, Ozu e Kurosawa, que se converteu numa apuradíssima cineasta, ou a sueca Mai Zetterling (1925-1994), que se lançou como atriz num filme de Ingmar Bergman, tornou-se estrela do cinema britânico e, já como realizadora, viu a sua primeira longa-metragem, Os Amantes (1964), banida no Festival de Cannes devido à carga sexual....Eis uma edição DVD que é uma verdadeira carta de amor ao cinema feito por elas..Bárbara Virgínia (1923-2015).Também por cá houve uma mulher que abriu caminho. Em 1945, com a longa-metragem Três Dias sem Deus, Bárbara Virgínia surgiu no panorama como a primeira realizadora portuguesa em pleno Estado Novo e a única até 1976. O filme foi exibido no Festival de Cannes, na companhia de Camões, de Leitão de Barros, e nunca mais esta promessa feminina deu de si. Nos anos 50 partiu para o Brasil e não voltou..Jacqueline Audry (1908-1977).Mais uma figura solitária, desta vez da indústria francesa em meados do século XX, Jacqueline Audry destacou-se pelas suas adaptações literárias no espírito da Belle Époque, que foram produzidas a um ritmo regular numa altura em que mais nenhuma mulher o fazia. Apesar da popularidade dos filmes, atravessados por sinais de emancipação feminina e temas à volta da sexualidade, o seu nome acabou por cair no esquecimento. Só em anos recentes cinéfilos como Bertrand Tavernier chamaram a atenção para a importância de recuperar a divulgação da sua obra. Falha que será colmatada através de uma retrospetiva na Cinemateca, em outubro, no âmbito da 22.ª Festa do Cinema Francês..Dorothy Arzner (1897-1979).Única mulher realizadora a trabalhar nos "anos dourados" de Hollywood e também a única que fez a transição do cinema mudo para os talkies, Dorothy Arzner soube muito bem gerir o seu lugar numa indústria masculina. Começou como datilógrafa, foi argumentista e montadora, e quando passou à realização, no apertado studio system, não deixou de inscrever uma visão feminista nos seus filmes, geralmente a retratar o conflito entre a modernidade e a tradição e com personagens femininas que revelam o desejo de se libertar das convenções sociais (desde logo o casamento). Impulsionou talentos como Katharine Hepburn e Rosalind Russell, e antes de dar aulas a Coppola na UCLA tornou-se a primeira mulher a integrar a Directors Guild of America, seguida por Ida Lupino..Lois Weber (1879-1939).Foi uma das mais inventivas e prolíficas realizadoras do cinema mudo em Hollywood, com filmes fortemente marcados por uma consciência social. Entre temas como o aborto, a prostituição, o alcoolismo e a dependência de drogas, Lois Weber viu o cinema como um meio de alcançar profundidade dramática, e é por esse traço ambicioso da obra que o seu nome é muitas vezes mencionado ao lado de D. W. Griffith e Erich von Stroheim. Em 1914 tornou-se a primeira mulher a realizar uma longa-metragem, The Merchant of Venice (adaptação da peça de Shakespeare), coassinada com o marido, Phillips Smalley, e em 1916 já era a principal realizadora da Universal Film Manufacturing (agora Universal Pictures). O seu filme mais polémico, Hypocrites (1915), tem a primeira cena de nu frontal feminino..Alice Guy-Blaché (1873-1968).Considerada a primeira realizadora da história do cinema no campo da ficção, começou como secretária da Gaumont - também o estúdio cinematográfico mais antigo do mundo - e ao longo de 20 anos dirigiu e produziu mais de mil filmes, em França e nos Estados Unidos, onde veio a fundar o seu próprio estúdio. Uma vida e um legado que vale a pena descobrir no documentário Be Natural - A História Nunca Contada de Alice Guy-Blaché, de Pamela B. Green, que a Midas Filmes vai estrear em sala com o road movie de Mark Cousins, acompanhando o lançamento do pack..dnot@dn.pt