A conduzir um camião Kamaz cor de laranja, o presidente russo Vladimir Putin inaugurou em maio uma ponte de 19 quilómetros que passou a ligar a ocupada Crimeia ao território russo. Prova da importância estratégica e simbólica da operação, foram investidos três mil milhões de euros na construção da ponte rodoferroviária (a ligação de comboio está em conclusão). Moscovo respondeu em força ao boicote comercial de Kiev à península que passou de facto para as mãos russas..A ligação entre os dois territórios no estreito de Kerch serviu também para condicionar as atividades marítimas ucranianas. As exportações (em especial aço e cereais) dependem muito dos portos de Mariupol e de Berdyansk e estes perderam 30% das receitas porque os grandes navios não passam por baixo da ponte..Também nos últimos meses, desde que as autoridades ucranianas apreenderam uma embarcação de pesca com registo ucraniano (da Crimeia) com bandeira russa, os russos responderam na mesma moeda. Mas em grande escala. Só entre maio a agosto, a agência russa FSB (sucessora do KGB) deteve 148 navios ucranianos e de outros pavilhões para interrogar os tripulantes, conta a Radio Free Europe..Para completar o quadro, a Rússia reforçou a presença naval, tendo desviado parte da frota dos navios de guerra do mar Cáspio para o mar de Azov..É devido ao acesso destes 340 quilómetros de comprimento por 135 de largura, no mar menos profundo do mundo (máximo de 14 metros de profundidade), que pode residir a chave de mais um capítulo do conflito entre a Ucrânia e a Rússia - agora sem separatistas de permeio..A Rússia admitiu ter aberto fogo na tarde de domingo contra duas vedetas e um rebocador ucranianos que, na sua versão, estariam nas suas águas territoriais, perto da Crimeia, para forçá-los a parar. Já a Ucrânia afirma que o ataque ocorreu em águas neutras, depois de Moscovo decidir fechar o estreito de Kerch, para impedir o acesso de navios ucranianos ao mar de Azov..Do incidente resultaram três a seis feridos (consoante as fontes) e a detenção de todos os marinheiros ucranianos, 24, tal como o apresamento dos três navios..Reações ao incidente.Na segunda-feira, os deputados ucranianos aprovaram a proposta do presidente Petro Poroshenko em impor a lei marcial por um período de 30 dias nas áreas mais vulneráveis a um ataque russo. "A Rússia tem travado uma guerra híbrida contra o nosso país pelo quinto ano. Mas com um ataque a embarcações militares ucranianas, entrámos num novo estágio de agressão", disse o presidente..Segundo a lei, o calendário eleitoral não é afetado (há eleições presidenciais no dia 31 de março). O Fundo Monetário Internacional também fez saber que tal não afeta as suas operações na Ucrânia..A NATO, que tem colaborado com a Ucrânia em exercícios militares, reuniu-se de emergência. "Todos os aliados expressaram total apoio à integridade e soberania territorial da Ucrânia", acrescentou. "Não há justificação para o uso de força militar contra os navios ucranianos e contra os marinheiros, por isso pedimos à Rússia que liberte imediatamente os marinheiros e os navios ucranianos apreendidos ontem", disse o secretário-geral, Jens Stoltenberg, em Bruxelas..Em Nova Iorque, também se reuniu de emergência o Conselho de Segurança da ONU. A embaixadora dos EUA, Nikki Haley, protestou contra a "violação afrontosa do território soberano ucraniano" e instou também à libertação dos marinheiros ucranianos. O seu presidente, Donald Trump, reagiu depois, tendo mantido a linha de não criticar o regime de Vladimir Putin. "Nós não gostamos do que está a acontecer. E esperamos que isto se resolva", disse aos jornalistas, na Casa Branca..Anexação do mar de Azov?.Em 2003, Vladimir Putin e Leonid Kuchma assinaram um acordo internacional, no qual reconheciam que o mar de Azov e o estreito de Kerch são "historicamente águas internas da Federação Russa e da Ucrânia" e que todos os navios mercantes e todos os outros navios não comerciais dos dois Estados podem "navegar livremente". O acordo, porém, não definia as fronteiras marítimas entre os Estados..Em 2016, Kiev deu entrada no Tribunal Permanente de Arbitragem, em Haia, de um processo contra Moscovo devido aos direitos costeiros no mar de Azov e no estreito de Kerch. Segundo a Ucrânia, a Rússia violou os seus direitos quanto ao acesso aos recursos de hidrocarbonetos, aos recursos vivos do mar, bem como à construção ilegal no estreito de Kerch que "ameaça a navegação e o ambiente marinho"..Em agosto, já o editor do Black Sea News Andriy Klymenko alertava para uma nova jogada de anexação da Rússia, depois dos territórios da Ossétia do Sul e Abecásia à Geórgia (2008) e da Crimeia (2014). "Se do lado [ucraniano] não houver mais patrulhamento, demonstrando as intenções de visar navios russos, e um forte apelo à Federação Russa e à comunidade internacional, então pode tornar-se no começo da anexação do mar de Azov", escreveu..Mais sanções.Quer a NATO, quer no Conselho de Segurança das Nações Unidas, quer ainda a União Europeia e as suas chancelarias apelaram à contenção de ambas as partes. Mas que contrapesos se pode acionar para acalmar um conflito cada vez mais aberto entre Kiev e Moscovo?.O antigo embaixador norte-americano na Ucrânia John Herbst, diretor do Eurasia Center, resume a questão: "Se o Ocidente não reagir - e se os media ocidentais facilitarem ao focarem-se em assuntos laterais como a lei marcial - então Putin irá ganhar outra aposta.".Já o ex-secretário-geral da NATO Anders Fogh Rasmussen escreveu que as "ações ilegais de Moscovo devem ser travadas com uma respostas internacional robusta. Putin só responde ao poder"..O ex-ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano Volodymyr Ogrysko, por exemplo, defende em depoimento ao think tankAtlantic Council "sanções setoriais, incluindo no setor financeiro, a importação de todos os bens de know-how especialmente para a indústria de petróleo e gás e quaisquer bens de dupla utilização, e a proibição da entrada de aviões russos no espaço aéreo dos países da NATO". Defende também a presença da Aliança Atlântica no mar Negro e uma patrulha militar na região em conjunto com a Ucrânia e a Geórgia. E, por fim, um programa militar de venda de equipamento militar à Ucrânia por parte do Ocidente..As sanções são uma arma que os EUA têm usado desde a aprovação da lei Magnitsky, em 2012, por Barack Obama, e também pela UE, em março de 2014, na sequência da anexação da Crimeia e da guerra no leste da Ucrânia..As sanções procuraram isolar Moscovo, restringindo o acesso a financiamento externo, a trocas comerciais com o intuito de forçar uma mudança do governo de Putin. Se de início visavam políticos russos, o setor energético e o complexo militar-industrial, as sanções passaram a ser cada vez mais direcionadas contra indivíduos e empresas..No entanto, como explica o Financial Times , não se consegue isolar um país como a Rússia: por um lado porque tem capacidade para se virar para outros mercados como o chinês, ou o Médio Oriente, por outro porque os próprios europeus não deixam de ter negócios bilionários com os russos e as suas empresas, do gasoduto Nord Stream 2 aos negócios com a francesa Total, a britânica BP ou a alemã Daimler, que está a construir uma fábrica nos arredores de Moscovo.."É bastante claro que ao tentarem isolar a Rússia, os Estados Unidos estão a fazer um bom trabalho ao isolarem-se", disse um diplomata asiático que pediu o anonimato ao Financial Times.