Nunca houve tão poucas mulheres a realizar interrupções voluntárias da gravidez (IVG) em Portugal. Em 2017, esse número não chegou às 15 mil (14 899), o valor mais baixo desde 2007, ano em que o aborto até às dez semanas passou a ser legal. Mas há outros dados que saltam à vista por estarem em extremos tão opostos: das cerca de 10 500 IVG feitas no Serviço Nacional de Saúde em 2017, 98% foram realizadas com medicamentos; uma percentagem que literalmente se inverte no privado, onde 94% dos abortos feitos a pedido das mulheres recorrem a cirurgias com anestesia geral e apenas 3% a medicamentos. O que justifica então que as clínicas recorram a um método que não é aconselhado pela Direção-Geral da Saúde e até fica mais caro para o Estado?."Eu diria que são duas grandes áreas: a organização interna dos serviços e o treino dos profissionais", responde Teresa Ventura, chefe da divisão de Saúde Sexual, Reprodutiva, Infantil e Juvenil da Direção-Geral da Saúde e obstetra do Hospital Dona Estefânia. A responsável pelo relatório das interrupções voluntárias da gravidez, publicado nesta terça-feira, argumenta que a via cirúrgica, no público, obrigaria a mexer nas escalas dos blocos operatórios e que as equipas do SNS têm um grande treino na IVG medicamentosa, porque foi a via que o país adotou desde que a lei começou a ser aplicada..Logo em 2007, a norma publicada pela DGS indicava que "os métodos não cirúrgicos de interrupção da gravidez têm provado ser seguros e eficazes, com resultados equivalentes aos dos métodos cirúrgicos" e que "o procedimento mais praticado em todo o mundo e recomendado pela Organização Mundial da Saúde utiliza a associação de mifepristone e misoprostol, cujo efeito é sobreponível ao de um aborto espontâneo"..Os medicamentos têm menos riscos, salvo em casos de alergias ou reações adversas, situações que são muito raras, refere João Bernardes, presidente do colégio de obstetrícia da Ordem dos Médicos e chefe de serviço no Hospital de São João. "Evitam sedações e manobras invasivas, é um método mais seguro e eficaz, que obriga a mulher a passar menos tempo no hospital. Há um princípio básico na medicina: se podemos resolver um problema sem operar, não operamos.".Já a especialistas da DGS explica ao DN que o método medicamentoso é aconselhado porque é menos invasivo, semelhante a um aborto natural, sem consequências futuras. "É o método ideal, mas exige um maior acompanhamento, mais consultas, serviços disponíveis para responder em caso de necessidade, e naturalmente os hospitais públicos, por estarem mais próximos das pessoas e terem urgências abertas, têm maior capacidade para fazer esse acompanhamento. As clínicas privadas podem não ter meios para fazer esse seguimento.".Uma "lógica de jogar pelo seguro" que a João Bernardes faz lembrar o que se fazia há 20/30 anos em hospitais mais pequenos. "Quando tínhamos uma gravidez que se previa poder resultar num parto difícil, antecipávamos uma cesariana para não correr riscos, mas muitas vezes eram cirurgias desnecessárias. Aqui parece-me a mesma lógica, a que se juntarão também lógicas financeiras.". Além disso, a Clínica dos Arcos, recorda Teresa Ventura, é de origem espanhola "e Espanha tem uma grande tradição e treino nas intervenções cirúrgicas. Aliás, quando Espanha começou a realizar IVG ainda não havia o recurso ao método medicamentoso, portanto é natural que aconselhem as mulheres mais nesse sentido"..Diferença de 85 euros entre métodos. Segundo a tabela de preços publicada em 2018 pela Administração Central do Sistema de Saúde, o Serviço Nacional de Saúde paga por uma IVG medicamentosa 283 euros, que passa para os 368 euros no caso de uma interrupção cirúrgica. É uma diferença de 85 euros. Numa notícia publicada pela Lusa há dois anos, a diretora executiva da Clínica dos Arcos, em Portugal desde 2007, afirmou que o preço destes atos tem vindo sistematicamente a baixar..A cínica espanhola, que em 2017 assegurou praticamente todas as IVG encaminhadas pelo SNS para o privado e reforçou o seu peso nesta área, assegurando 28% do total de interrupções no país (mais 2% do que no ano anterior), anuncia na sua página online que uma mulher que se dirija aos seus serviços a título privado terá de pagar 575 euros por uma IVG cirúrgica com anestesia geral, mais 75 do que uma IVG com medicamentos..No seu site, a clínica espanhola informa ainda que a decisão sobre a técnica a ser utilizada cabe à mulher, embora dependa do tempo de gravidez e da situação clínica. Em relação aos métodos disponíveis, enquanto a cirurgia de "remoção do conteúdo uterino por aspiração e/ou curetagem" é descrita como uma técnica que dura apenas alguns minutos, com uma permanência de três horas na clínica, em relação ao método medicamentoso - que consiste na administração de dois medicamentos diferentes com intervalo aproximadamente de 48 horas - refere-se que os efeitos são comparáveis aos de um aborto espontâneo e incluem hemorragia (que dura cerca de dez a 15 dias), e dores abdominais ligeiras ou moderadas..Teresa Ventura admite que a intervenção cirúrgica "tem esse lado de ser mais rápida, de a mulher sentir que sai com o assunto resolvido, o que é importante em termos psicológicos", mas a questão é que tem mais riscos de complicações a longo prazo. "É invasiva, há uma dilatação e a entrada no canal cervical, o que no futuro pode provocar mais abortos espontâneos e aumenta o risco de prematuridade".. Medicamentos podem ser usados até às dez semanas. Na sua secção de dúvidas frequentes, a Clínica dos Arcos avisa que apenas faz a IVG com recurso a medicamentos até às sete semanas de gestação, limite a partir do qual só realiza interrupções cirúrgicas. O DN tentou ouvir a direção da Clínica dos Arcos, que até ao momento não se mostrou disponível para prestar declarações, até porque os especialistas são unânimes em afirmar que o método medicamentoso pode ser usado até às dez semanas.."É um método que pode ser usado durante toda a gravidez, mesmo quando interrompemos mais tarde por alguma razão clínica que o justifique", afirma Diogo Ayres de Campos, diretor do serviço de obstetrícia de Santa Maria e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, que garante que todos os hospitais universitários recorrem aos métodos farmacológicos. "São mais seguros e têm menos complicações futuras.".Teresa Ventura confirma que não há uma idade gestacional contraindicada para recorrer aos medicamentos, método que pode ser usado até às dez semanas, como determina a nossa lei, embora a Organização Mundial da Saúde até preveja que possa acontecer para lá das 24 semanas. "Nas semanas mais avançadas, o que pode acontecer é uma maior probabilidade de alguma retenção, mas o número de mulheres que tem de receber cirurgia no seguimento de uma interrupção medicamentosa é pequeno.". Apesar de defender que o método medicamentoso é mais seguro na saúde obstétrica "e foi mesmo um salto civilizacional a nível global, para cuidados em países sem grandes recursos", a responsável da DGS sublinha que essa via não pode ser utilizada em todas as situações. "Há casos em que temos logo indicação para cirurgia, nomeadamente quando a mulher tem alterações de coagulação ou problemas de saúde que desaconselham um método mais demorado.".Em relação ao facto de o privado continuar a assegurar mais de um quarto das IVG realizadas no país, Teresa Ventura lembra os problemas recentes de recursos humanos nesta área e lamenta que, "quando é preciso realocar profissionais, o primeiro sítio onde se corta é no serviço de IVG". Os dados da DGS mostram que, em 2017, mais de metade (59%) das mulheres que abortaram no privado foram encaminhadas por centros de saúde, enquanto 15% foram dos hospitais públicos e 22% foram por iniciativa própria..Quebra de 25% desde 2011.O número de abortos por opção da mulher desceu 25% entre 2011 e 2017. A idade média das mulheres à data da interrupção da gravidez tem-se mantido desde 2008 na casa dos 28 anos, tendo as mulheres entre os 20 e os 34 anos "sido sempre as mais numerosas a realizar" abortos..Houve ainda uma diminuição do número de adolescentes (menores de 20 anos) e um aumento das que têm idade igual ou superior a 40 anos, no que toca a todas as interrupções de gravidez (não apenas por opção da mulher). Enquanto as menores de 20 anos desceram no número de todas as interrupções da gravidez, observou-se um aumento de 9,6% nas que têm 40 ou mais anos, entre 2012 e 2017..O relatório da Direção-Geral da Saúde estabelece ainda uma comparação com a região europeia e destaca que Portugal se tem situado abaixo da União Europeia. A média de abortos por mil nados-vivos era em Portugal em 2017 de 192, enquanto a média dos países da União Europeia era de 203..Portugal tem estado sempre abaixo da média europeia e tem vindo a reduzir constantemente desde 2010 a proporção entre interrupções da gravidez e nados-vivos.