Em 2006, a professora e investigadora Dália Dias deparou-se com uma sala quase vazia quando se apresentou para falar do autor de O Mundo à Minha Procura no auditório do Jardim Botânico, no Porto. Nada que a surpreendesse e que ela explicou num comentário feito nessa data: "Este é, de certa forma, o destino de Ruben A., mas ele também nunca se deu mal com isso.".O tempo passou e, 14 anos depois, os auditórios poderão continuar vazios, no entanto o nome de Ruben A. (1920-1975) vai ser ouvido e lido pois comemora-se hoje - e durante mais um ano - o centenário do nascimento de Ruben Alfredo Andresen Leitão, autor que para a literatura ficaria como Ruben A.. Uma sucessão de eventos e reedições de livros a que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa dá o alto patrocínio, amigos na década de 1970, sendo que foi Ruben A. quem, em conversa com Pinto Balsemão e o atual Presidente da República, batizou o Partido Popular Democrático (atual PSD), apesar de nunca ter sido militante..Para trás ficam várias polémicas, como a que teve devido a um reparo de Salazar - que se comportou como um crítico literário - sobre os seus diários, Páginas, feito em 1951, numa altura em que Ruben A. era leitor de Português no King"s College - desde 1947. Escreveu o presidente do Conselho o seguinte ao ministro da Educação: "Há páginas inteiras completamente ininteligíveis e irredutíveis na análise das regras da gramática portuguesa, recheadas de termos de invenção do Autor e formadas sem tom nem som." Como remate escreveu: "Se o Autor é leitor em Londres, nessa qualidade temos nós de ver o que escreve e como escreve. Em conclusão: O Autor não pode representar Portugal nem ensinar Português." O resultado foi o regresso de Ruben A. a Portugal..Dália Dias é a comissária da exposição O Incrível Ruben A. - 100 Anos do Escritor na Biblioteca Nacional e será oradora, entre outras iniciativas, no colóquio O Incrível Ruben A. na Fundação Calouste Gulbenkian. Quando se lhe recorda essa ausência de "espectadores" em 2006 e pergunta-se se hoje o desinteresse se mantém em torno de Ruben A., responde: "Hoje, consegue estar mais presente pelo exotismo, por haver uma busca de autores desconhecidos, pelo facto de ser primo da Sophia de Mello Breyner Andresen, entre outros motivos de atração.".Considera Dália Dias, no entanto, que Ruben A. "continua literariamente isolado". Explica: "Não sei se é um destino, se o tempo mitigará o esquecimento, mas penso que Ruben A. tem um pequeno grupo de fiéis que apreciam bastante o que ele escreve, que o conhecem, leem e gostam. É um grupo forte e com personalidades importantes, designadamente Eduardo Lourenço, que foi das primeiros a reconhecê-lo e a escrever sobre a sua obra.".E fora deste grupo de fiéis? "Além desse grupo, existe um fosso enorme para o que poderia ser uma leitura mais popular e comum", diz. Razões para este esquecimento: "Vamos ser sinceros, o autor é difícil. Claro que não é o único que os leitores perceberão com reserva ou nem o compreenderão muito bem, portanto não é daqueles que se usam na lapela para dizer já li este e aquele. Ruben A. é um autor difícil em alguns textos, sobretudo na ficção, em que é mais impenetrável na linguagem, mais cerrada e opaca. Os textos autobiográficos não têm essa opacidade, são mais claros e com referências que as pessoas identificam: Coimbra, Porto, Londres, por exemplo.".Qual é o problema de Ruben A.? O ter sido sempre um fora da lei no que toca a paradigma literário. Sempre..Falta-lhe uma família literária? Não só, além da família literária não foi lido. Estranhamente, porque as coisas sobre as quais fala são cruciais para perceber o mundo cosmopolita de meados do século XX. A própria cidade do Porto não o lê e, no entanto, ele está muito marcado na cidade. Talvez porque o conjunto de referências que tem serão um pouco incompreensíveis e, sei-o de experiência de muitos anos, o mais frequente é deparar-me com pessoas da área da literatura que também não o conhecem ou quando o leram, foi um único livro, A Torre da Barbela, porque foi premiado e fez parte dos programas de leitura obrigatória. Eu própria não tinha ideia, quando o comecei a trabalhar há muitos anos, da extensão da sua obra..Interessou-se por Ruben A. porquê? Por razões que a razão desconhece. Estava no Campo Alegre, ao lado da casa dele, e ainda não tinha escolhido o autor para a minha tese de mestrado. Estamos a falar no princípio dos anos 1990, num dia em que estava um temporal próprio dos de fevereiro no Porto, com as japoneiras [cameleiras] a abanar. Ao reparar onde estava, ao lado da casa de Ruben A., disse: "É este mesmo!" Foi uma decisão própria de um dia de temporal..A sua obra não deveria, pelo menos, interessar os da sua geração? Ruben A. apanha essa geração, basta ver a Fotobiografia e encontramos imagens que mostram que à volta dele aparecia toda a gente, da Amália ao João Villaret, do Vitorino Nemésio a Almada Negreiros, de Freitas Branco a Vieira da Silva ou a João Gaspar Simões... Dava-se com todos eles e tinha um grupo que o apreciava, o reconhecia e participava nos encontros em sua casa no Minho, em Montedor. Foi daquelas pessoas que não só tiveram muita gente à volta como influenciou muitos outros com o seu trabalho, pois na primavera marcelista foi diretor da Imprensa Nacional e desenvolveu as relações com o Brasil de uma forma muito forte, ou com a realização dos festivais de música de Viana do Castelo, que tiveram uma importância enorme. Há por parte de todos o reconhecimento do seu trabalho cultural..O que se passou com a geração de leitores que não se reveem nele como autor? É possível que não se revejam porque a obra em livro não tinha eco. Ele publicava 300 exemplares dos seus livros na editora Coimbra e pouco vendia - dava os livros aos amigos e vendia dois ou três. Não era conhecido porque nunca esteve muito publicado nos anos 1950 e 1960. E depois teve aquele percalço que fez que um setor importante da sociedade o pusesse de lado, quando Salazar resolveu fazer figuraça de crítico literário com o seu livro Páginas 1. Até poderia ter sido um motivo para se tornar notado noutros setores antisalazaristas e estes irem lê-lo a correr, mas nesse setor ele também não tinha eco pois era um apátrida e fora da lei no sentido de não agradar aos neorrealistas, representados pela revista Seara Nova. Ruben A. agradava pouco pois era um estranho a todos e, ainda por cima, a questão de ser um menino de ouro da cidade do Porto, pertencente a uma família com tradição, punha-o sob suspeita. E como era um ser esquisitíssimo, porque não punha as vírgulas no sítio certo e tinha ideias de andar nu a visitar um museu e outras coisas que inventou, também não era aceite na sua família social..Não se pode dizer que A Torre de Barbela seja um livro difícil. Exatamente, não é difícil e não necessita de se ter uma chave de leitura específica. Mas Barbela é mais tardio e premiado, representando o momento em que a ficção de Ruben A. fura determinados meios. Um tempo em que ele até é muito legitimado, pois entra nos programas do ensino secundário. Nessa altura foi lido, mas esse livro é olhado como um romance surrealizante quando a obra de Ruben A. é muitíssimo mais do que isso. Além das questões editoriais, do ponto de vista literário, o que lhe aconteceu foi ficar um pouco entalado entre estilos e, pior, morreu muito cedo e com a obra por publicar. Quando comecei a trabalhar, não encontrei os seus livros e tive de os pedir à família. A sua reedição foi relativamente recente e falta um esforço. Como diria Camões: "Quem não sabe a arte não a estima", ou seja, falta todo esse trabalho de estima. Pode ser que tal aconteça a propósito deste centenário. Há correspondência importantíssima com tudo o que é gente porque ele é um pivô de muitas relações e a sua grandeza não reside apenas no que deixou escrito enquanto ficção e autobiografia, também na sua biografia concreta e no que trouxe e levou, nas relações que estabeleceu no mundo a que se ligou..Ser-se muito focado no seu eu não é um problema? Creio que isso não altera nada, basta ver o exemplo de Picasso, muito focado no seu eu e no seu umbigo, e não é por isso que ficou desconhecido. Olhe-se o Camilo! Não é por aí, essa crítica foi-lhe feita pelo setor mais ligado ao compromisso social, como o professor Óscar Lopes, que o criticou em determinado momento e, já bem velhinho, aconselhou-me a trabalhar Ruben A. porque, disse-me, "eu devo um pedido de desculpa a esse homem, ele tem um dos textos mais importantes da nossa literatura, que eu desconhecia, o da abertura de O Mundo à Minha Procura; aquela descrição do naufrágio na barra do Douro é suficiente para que se faça um trabalho sobre ele. O professor não se dava bem com o surrealismo nem com a questão do eu, era um teórico marxista convicto e, quando olhava para a literatura, queria encontrar sinais de relação com o mundo. Não era sectário, afinal foi sempre um grande defensor da Agustina Bessa-Luís e do Vasco Graça-Moura. O mundo mais surrealizante com que Ruben A. aparecia não tinha a legibilidade de Agustina, nomeadamente no livro Caranguejo, é um mundo que aparece para esse paradigma da crítica e da teoria literária como uma situação gratuita. Essa gratuitidade e não compromisso social e ético profundo fez que um setor não encontrasse ali valor. Ruben A. é um pouco dadaísta, um pouco gratuito, é como o mictório do Marcel Duchamp, e às vezes coloca lá coisas que só estão por estar e para nos fazer perceber que temos categorias mentais um pouco extravagantes. Ainda hoje, a questão em debate continua a ser a mesma: era um enfant terrible ou de boas famílias? Acho que não é por aí e, até por ter morrido em 1975, há todo um mundo que não é normal em Ruben A.. Aliás, nada é normal, até a pandemia surge em cima do centenário..Pode-se dizer que era o homem que representaria o da década de 1950? Ele é, sobretudo, o homem nascido no Portugal nos anos 1920. Vai ter um percurso invulgar por razões familiares: falava alemão, era protestante na católica cidade do Porto, emerge de um mundo que é diferente. Vai para Lisboa nos anos 1930, antes da guerra, e conhece um conjunto de pessoas que na altura estão a despertar para aquele intervalo entre a explosão do movimento surrealista e a sua interrupção pela II Guerra Mundial. Ele é das primeiras pessoas em Portugal a falar de Salvador Dalí, depois vai ter influência de Agostinho da Silva, que era seu explicador porque ele não era um grande aluno, e é um jovem com 18 anos que visita a Alemanha antes da guerra, um dos poucos que no final dos anos 1930 assistem a desfiles nazis e conhecem mulheres alemãs, mais livres. Ou seja, é uma pessoa que tem um tipo de vivência que em Portugal é invulgar. E vai para Londres exatamente no fim da guerra, em 1946, onde ainda havia bombas por explodir..É um autor marcado pela história? Completamente. Além de que é formado em Histórico-Filosóficas e faz o curso na mesma turma do Eduardo Lourenço. São da mesma fornada de formação e pertencem à primeira geração que em Portugal lê Fernando Pessoa sem ser aquele grupo mínimo que estava à volta do poeta. Quase ninguém o leu em vida! Além disso, Ruben A. conhece o Pessoa pela via da Presença, o José Régio pela via de Coimbra, e esta questão de "o outro que era eu", esta fragmentação, vai-lhe acontecer. Não é uma questão de heterónimos à maneira pessoana, mas tem essa fratura do eu, aliás, é o Ruben A. e depois também é o Ruben B. e O Outro Que Era Eu, o Silêncio para 4, e não sabemos quantos falam ou são. Há sempre um eu que fica e outro que parte, em cada sítio a que vai diz que fica lá o eu que fez a visita. Como o Pessoa dizia: "Cada um de nós é muita gente.".Hoje sabe-se que é Ruben A.? Sim, diria que o Ruben A. é o autor que escreve literatura e não o que publica as cartas de D. Pedro V, esse é o Ruben Andresen Leitão, é o historiador. No limite, podemos encontrar ligações entre o ficcionista e o ensaísta, mas este assume uma identidade onomástica para o homem da história e do arquivo sob o nome completo, enquanto o que inventa coisas e que se constrói como autor é o Ruben A.. Este A. é muito mais complexo..Que livro de Ruben A. escolhe? Não é difícil recomendar, o grande romance de Ruben A. é a autobiografia O Mundo à Minha Procura. Os três volumes estão esgotados e agora vã ser reeditados num único volume (pela Assírio & Alvim), um conjunto que é uma espécie de caldo inicial de onde toda a obra emerge. E como uma grande arquitetura que faz que todo o resto seja lido de um modo mais claro e profundo. Qualquer romance pode ser lido por si, mas tudo vai lá ter e fica com mais sentido. Depois há As Páginas, muito interessantes, e para os mais novos há o conjunto de contos, Cores, que é muito visual..Estas grandes comemorações farão novos leitores? Acho que pode haver aquela situação de que todas as crises encerram uma oportunidade... como há menos ruído por razões de confinamento, as pessoas podem estar mais atentas e prestarem mais atenção a Ruben A.. Se houver divulgação, pelo menos a notícia fica, mas a leitura dos seus textos, tendo conservadoramente a achar que vai ter de passar pela escola e pelo trabalho das bibliotecas..Obras de Ruben A..Caranguejo (romance, 1954); Cores (contos, 1960); Cartas de D. Pedro V aos seus Contemporâneos (1961); A Torre da Barbela (romance, 1965); O Outro Que Era Eu (1966); O Mundo à Minha Procura (1964, 1966 e 1968); Páginas (seis diários publicados em 1949, 1950, 1956, 1960, 1967 e 1970); Silêncio para 4 (novela, 1973); Kaos (romance, 1982)..Opiniões sobre Ruben A..Para Eduardo Lourenço, é "uma personagem de romance" de tão original. Nunca se esquece que Ruben A. foi capaz de obter autorização do diretor do Museu de Atenas para visitar a instituição nu para se identificar com as estátuas..Fernando Pinto do Amaral considera que Ruben A. leva o leitor "a um território onde as palavras parecem sempre novas para as coisas que dizem, numa água corrente de factos, ideias, lugares, objetos, imagens, emoções - tudo o que pode caber numa cabeça humana"..José Augusto-França diz que A Torre de Barbela é "um dos mais importantes romances da língua portuguesa moderna - obra barroca e louca, nas aparências da sua estrutura tensa e exigentíssima"..Para Liberto Cruz, Ruben A. é variado: "Todos nós sabemos que havia o Ruben A. e havia o Ruben B., mas o Ruben que eu conheci e com quem convivi durante mais de 20 anos não cabe no nosso alfabeto, ainda que se lhe acrescente o K e o Y.".Segundo Pedro Mexia, em A Torre de Barbela, Ruben A. é "o romancista que escreve sobre miragens e nevoeiros, já não a famosa 'neblina da guerra' mas uma neblina da memória"..Uma biografia para Ruben A..Um resumo de biografias online: "Aos 18 anos, em 1938, vai viajar sozinho a Berlim e a Viena, ficando a conhecer a Alemanha de Hitler durante dois meses. Preparou-se para entrar no curso de Ciências Histórico-Filosóficas em Lisboa, tendo recebido explicações de Agostinho da Silva. Depois de ter chumbado na cadeira de Anatomia, desiste e muda-se para Coimbra. Licenciou-se na Universidade de Coimbra em Ciências Histórico-Filosóficas em 1945, onde foi colega do pensador Eduardo Lourenço. Fez uma tese de licenciatura sobre os textos e correspondência inédita do rei D. Pedro V, temática que irá explorar ao longo da sua vida. Torna-se professor de Francês num liceu. Em Setembro de 1947 parte para Inglaterra para ser leitor no departamento de Português no King's College, como bolseiro do Instituto para a Alta Cultura. Foi professor no King's College, em Londres, de 1947 a 1952. A sua obra Páginas II é criticada por Salazar e resulta em Ruben A. abandonar o leitorado em Londres e regressar a Lisboa."."A segunda metade da década de 1960 será marcada pela publicação dos três volumes autobiográficos: O Mundo à Minha Procura. Em 1973, publicou a sua última obra, a novela Silêncio para 4, deixando inédito o romance de inspiração histórica Kaos.".Agenda do centenário de Ruben A..Com o alto patrocínio do Presidente da República.Edições.É lançada hoje, reedição de A Torre de Barbela (Livros do Brasil).No segundo semestre, reedição da novela Silêncio para 4 e da autobiografia num volume, O Mundo à Minha Procura (Assírio & Alvim).Teatro.Por UMCOLETIVO.6 de junho. Estreia da peça Júlia no Teatro Municipal de Elvas.14 de novembro. Silêncio para 4, O Espaço do Tempo em Montemor-o-Novo.16 de novembro. Júlia, Teatro Sá da Bandeira em Viana do Castelo.24 de novembro. Júlia, Fábrica da Criatividade em Castelo Branco.Televisão.Coleção Ruben A. da RTP Arquivos.Em 2021 (datas a confirmar).Exposição O Incrível Ruben A. - 100 Anos do Escritor, na Biblioteca Nacional, comissariada pela professora Dália Dias.Conferência de Liberto Cruz, História e Ficção em Kaos de Ruben A., inserida no Colóquio O Património do Romance, Museu Ferreira de Castro em Sintra.Dia Ruben A., no Centro Cultural de Belém em colaboração com o Centro Nacional de Cultura.Colóquio O Incrível Ruben A", na Fundação Calouste Gulbenkian, organização da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.Encontro Ruben A. - Um Cosmopolita nas Margens da Cidade, no Centro Cultural de Cascais.Evocação de Ruben A., na Casa Andresen.Homenagem a Ruben A. na Academia das Ciências de Lisboa