A conversa começa com o saboko. É um peixe, vai inteiro à fogueira embrulhado numa folha de bananeira, leva malaguetas, tamarindo e alho. Para acompanhamento faz-se puré de banana e coco, são frutos que aqui crescem por todo o lado. Se houver um prato nacional timorense, é este.."Uma tradição que se perdeu durante os anos da ocupação indonésia e agora está a ser recuperada", diz Luís Simões. "Voltou a encontrar-se saboko um pouco por toda a ilha. Quando se recupera um prato, recupera-se toda uma tradição, e toda uma identidade.".Recuperar a cultura gastronómica da ilha tem sido uma missão de vida para o chef português nos últimos cinco anos. "Quando aqui cheguei, em 2014, apercebi-me de como a gastronomia timorense tinha sido adulterada pela presença indonésia", diz, "os fritos estavam a substituir o que antes era grelhado ou cozinhado ao vapor.".Mas não era só isso. Eram as ervas que desapareciam da dieta dos ilhéus, para dar lugar a proteínas que não eram nativas. "Essa comida de casa, apurada, deliciosa, estava a desaparecer do receituário, as pessoas tinham vergonha por ser uma gastronomia da pobreza." Foi nessa altura que Luís percebeu a urgência que havia na sua demanda. Era preciso agir antes que a memória se perdesse..É precisamente para partilhar esta experiência que o cozinheiro de 29 anos vem na terça-feira a Lisboa, onde falará no segundo dia do Symposium Sangue na Guelra - organizado à margem do festival gastronómico homónimo e cuja lema é The Power of Food - O Poder da Comida. Luís Simões falará num painel que reúne críticos, chefs e produtores dos vários cantos do globo para contar como uma recolha de tradições se tornou um fenómeno de emancipação cultural..Contra todas as probabilidades.Luís Simões percebeu muito cedo que gostava de cozinha. Aos 7 anos era ele quem preparava o jantar para a progenitora e os três irmãos. "A minha mãe desunhava-se a trabalhar para nos tentar alimentar e eu ajudava como conseguia. Mas gostava muito de estar ali, a fazer arroz, a fritar salsichas. Um dia matei a minha primeira galinha e estufei-a com polpa de tomate. O que eu adorei fazer aquilo.".A vida familiar, no entanto, endurecia. No final da escola primária a mãe teria de pedir ajuda - e Luís foi institucionalizado na Obra do frei Gil, em Mira. "Aos 14 anos tinha as ideias bem definidas, queria ser chef desse lá por onde desse. Então entrei no curso de cozinha e pastelaria numa escola profissional de hotelaria e turismo em Coimbra.".Alojou-se no Colégio de São Teotónio e aplicou-se na formação. "Tive sempre boas notas, à noite ia para a cozinha praticar. Lembro-me do meu fascínio quando comecei a trabalhar com chocolate." Usava-o em pratos salgados, acrescentava-lhe picante, e nesse processo sentia um maravilhamento. "Eu sabia que tinha de continuar a aprender. Para fazer o que eu queria fazer, sem apoio familiar, só tinha uma safa: ser o melhor possível.".Queria candidatar-se à Escola Superior de Hotelaria do Estoril, mas como tinha feito o ensino técnico-profissional tinha agora um problema: "Exame de Matemática ainda conseguia fazer, mas como é que eu ia fazer a prova de Geografia se nunca tinha tido uma aula sobre o assunto?" A solução veio de uma professora do colégio onde vivia em Coimbra, que estava prestes a reformar-se. "Em dois meses deu-me dois anos de matéria. Tirei 14, consegui entrar." Era a primeira pessoa da instituição de acolhimento a conseguir ingressar no ensino superior..Mudou-se para as residências da Escola Superior e tornou-se um aluno exemplar do curso de Produção Alimentar e Restauração. Para ganhar dinheiro, usava as cozinhas do instituto e fazia caterings para fora. Depois, começou a dar pequenos cursos de cozinha no centro de emprego. "A primeira vez que entrei numa sala de aulas, era o mais novo e era o professor. Mas adorei essa experiência.".Nas encomendas para fora e nas aulas ia acumulando uns trocos. "Usei o dinheiro para fazer estágios internacionais não remunerados. Se eu queria ser bom em alguma coisa, tinha de dar o litro." Esteve no Ritz Carlton em Tenerife, no Hilton em Praga, mas a experiência que haveria de marcá-lo foi no Grupo Pestana, em São Tomé e Príncipe.."Nessa altura eu já estava a fazer o mestrado em Gestão e Direção Hoteleira, parte do meu trabalho era dirigir os recursos humanos do hotel." Na população africana, encontrou as mesmas dificuldades que ele tinha experimentado na origem do seu percurso - e isso fê-lo compreender uma coisa: "se valorizas o trabalho de alguém estás a contribuir para o desenvolvimento"..A partir daí não lhe restavam grandes dúvidas, precisava de ir ver um outro mundo..Ai, Timor.Um dia recebeu o telefonema que haveria de lhe mudar a vida. "O diretor da delegação de Peniche do Instituto Politécnico de Leiria, onde eu tinha feito o mestrado, deu o meu nome a um empresário indonésio que ia abrir um hotel em Timor e contactaram-me." No início disse que não, tinha emprego sólido no Grupo Pestana e ir para o outro lado do mundo. Mas a ideia não o largava - e Luís só pensava que não queria arrepender-se do que não tinha feito..A 14 de janeiro de 2014 aterrou em Díli. "Pensei que ia encontrar tudo destruído e afinal não era nada disso. Mas também pensava que se falava português, quando na verdade a língua corrente era o tétum." À medida que ia aprendendo o básico do idioma local, dava aulas de Inglês e Português aos funcionários do hotel. "Era a minha forma de dar-lhes uma ferramenta para se superarem a si mesmos.".A curiosidade pela gastronomia timorense foi crescendo desde os primeiros dias. Sempre que um funcionário do hotel ficava doente, Luís fazia questão de ir visitá-lo à aldeia natal - por respeito e vontade de ver o que se comia nas palhotas. "Os timorenses são extraordinariamente envergonhados, ao início não me queriam mostrar por vergonha as suas raízes alimentares. Mas, insistindo, fui transformando a timidez em orgulho.".Sempre que voltava à base, punha-se a cozinhar com os ingredientes que descobria. "A diversidade de malaguetas, por exemplo, é qualquer coisa de incrível." Então ia testando, juntava banana e abóbora, fazia espetadas e acendia fogueiras, tentava compreender Timor à mesa..Em 2016, começou a fazer um programa de televisão chamado Sabor de Timor. Ele falava em português, a sua assistente no hotel em tétum. Recriava os pratos e falava do valor das tradições - e agora tinha uma multidão a admirá-lo por se preocupar tanto com o que o povo se tinha habituado a escrever. Transformaria esse receituário no primeiro livro dedicado à gastronomia do país. Tem o mesmo nome do programa televisivo, e um prefácio de Xanana Gusmão..Luís Simões já não trabalha no hotel, mas continua a recolher receitas e dá aulas na universidade local. A semana passada, organizou com os alunos uma feira de street food na rua Cidade de Lisboa, onde houve um concurso para escolher o melhor sate, uma espetadinha de carne. "Mas talvez nada me saiba melhor do que saber que, no último ano, abriram os dois primeiros restaurantes exclusivamente timorenses na cidade. À medida que a comida autêntica é valorizada, Timor torna-se mais Timor."