Quando Tiago Pereira começou a percorrer o país, em 2011, à procura do povo que canta (como lhe chamou Michel Giacometti, no início dos anos de 1970), Portugal estava mergulhado (só) numa crise económica. Era outro o país que ele e um punhado de entusiastas foram mostrando, através do projeto A Música Portuguesa a Gostar dela Própria, gravando sons e vozes e difundindo tudo através da rádio, da TV e de outras plataformas digitais. Era outro, ou talvez não..Quase uma década depois, aconteceu o que alguns desses protagonistas já não testemunharam, mas muitos outros viveram - e estão a viver: um isolamento social sem precedentes, à boleia de uma pandemia. E com isso, "outros aspetos menos explorados da A Música Portuguesa a Gostar dela Própria vieram ao de cima: o que fazíamos, gravar pessoas dentro das suas comunidades, mais afastadas dos centros urbanos, ao ar livre, dando-lhes o espaço para poderem ser o que quiserem e ativando uma escuta social... já lá estava, o que acontece agora é que as pessoas estão mais isoladas e mais longe dos seus familiares", conta ao DN Tiago Pereira, diretor artístico do projeto, que acaba de vencer a oitava edição do Prémio Maria José Nogueira Pinto, promovido pela farmacêutica MSD..As gravações que deram origem ao prémio aconteceram em Vila Nova de Poiares, um pequeno município do distrito de Coimbra, que terá pouco mais de sete mil habitantes. Foi um mês inteiro (de 27 de abril a 27 de maio) e "muito vivido", em que Tiago e a equipa sabiam de antemão que estariam a ajudar "a mitigar a solidão dessas pessoas, dando-lhes espaço para cantarem, fazerem rezas ou contarem a sua história, e a seguir reproduzir essas histórias pela rádio, pela internet".."Todos os dias íamos para Vila Nova de Poiares gravar e estar com as pessoas, foi muito intenso." Um dia, uma senhora teve um aneurisma à janela. Tiago e a equipa chamaram o INEM e participaram do socorro. "A senhora, Isabel, veio a falecer uns dias mais tarde. Isso abalou-nos imenso, foi muito forte, para mim ainda foi mais forte quando, no funeral, o seu marido, a chorar, me dizia "ela morreu como gostava, no palco, a cantar". Ter vivido isso, de certa forma, transformou-nos. Tínhamos começado a gravar há uma semana e depois algo tão forte está ali à nossa frente, a verdadeira dimensão humana, que somos todos finitos, e ainda por cima no meio de uma pandemia, em que todos estão isolados e fechados", sublinha Tiago Pereira..Com tudo isso na cabeça, criou um vídeo no qual misturava a amálgama que tinham gravado em Poiares: "Esse estar intenso com aquelas pessoas, essa responsabilidade social. Depois abriram as candidaturas para o prémio e concorremos com esse vídeo. E percebemos que se calhar este lado do projeto sempre esteve pouco explorado, mas era o essencial, só podemos fazer o que fazemos pelas pessoas e com as pessoas. O prémio veio ajudar a mostrar isso e a respeitá-lo cada vez mais.".O prémio representa um valor monetário de dez mil euros, mas para a associação que tutela este projeto tem outro significado: "Hoje queremos que o projeto se vire mais para esse lado, ajudando-nos a combater o idadismo e a demência, através da escuta, da partilha, do estar com as pessoas, partindo da música, da dança e da memória desses outros tempos, onde a sociabilidade era tão especial e tão vivida.".Mas a maior recompensa terá acontecido ainda antes do prémio, quando a equipa percebeu que já tinha resultados: "A aproximação, por reforço positivo da comunidade e familiares, que reagiam ao que ouviam e viam, e entravam em contacto com elas, dizendo-lhes que estavam bem e que ficassem seguras.".A história da "música portuguesa a gostar dela própria" começou em 2011, "com muitas pessoas que, juntas, decidiram gravar música ao ar livre, em espaços estranhos. Havia outros projetos assim, mas eu depois fui transformando e abrindo o projeto, para que se gravasse outra música, mais amadora e pouco divulgada, mais concentrada na interpretação e nas pessoas, do que no seu repertório ou no seu estudo", recorda Tiago Pereira. A ideia era clara - que depois fosse possível disponibilizar essas gravações "para estudo, fruição geral ou utilização artística"..O realizador lembra outro pormenor importante: "As pessoas que gravo produzem sons únicos mais perto das nossas supostas raízes, que se foram transformando ao longo do tempo, mas que ainda têm uma riqueza enorme, porque a revolução industrial chegou tarde a Portugal e manteve intactos ofícios manuais únicos, com uma sonoridade própria, e podemos encontrar isso hoje ainda nas pessoas que ainda tecem com teares, que ainda utilizam carroças, que falam e chamam os animais, e por aí adiante.".Alguns anos depois de imergir no projeto da música (que entretanto se tornou uma associação), Tiago Pereira mudou-se para Serpins, no concelho da Lousã, distrito de Coimbra, afastado dos centros urbanos. "Mas ainda assim perto o suficiente para perceber que esse rural está cada vez mais extinto e que apenas se mantém pelos jardineiros dos seus próprios jardins, ou das suas hortas. A cidade é cada vez mais tentacular, estendendo-se às zonas menos urbanas e transformando-as", afirma..E, afinal, é importante viver perto das pessoas que cantam no mundo rural para as compreender? "Aqui estou mais perto das pessoas, que aqui são mais fáceis de encontrar, que viveram nesse tal campo, onde trabalhavam na segunda metade do século XX - onde a rádio, a televisão e a internet não existiam com a força que hoje têm, permitindo uma sociabilidade baseada no canto e nas danças e na tradição oral", sustenta Tiago Pereira.."Hoje, o que fazemos cada vez mais é assistir a essa transição da era da tradição oral para a era da tradição digital, em que tudo é mediado por dispositivos eletrónicos. Estar perto dessas pessoas permite poder documentar melhor o que ainda existe, e o que vai desaparecer, e ao mesmo tempo aceitar a transformação tal como é.".De resto, o diretor artístico de A Música Portuguesa a Gostar dela Própria sublinha que "não vive no campo nem no interior". E lembra que "o romantismo de um país rural e bonito para o olhar, as casas de xisto e a ruralidade própria disso já não existem. O que vemos é o betão e o desordenamento do território, a mistura da cidade que se expandiu, a que muito pensadores do urbanismo chamam de difuso. Eu vivo nesse difuso e assisto à sua evolução e a toda uma transformação acelerada".."Quando comecei, não sabia bem no que me metia. E no primeiro ano de A Música Portuguesa a Gostar dela Própria éramos muitos, cada um com o seu estilo e a sua forma de ver. Logo em março, eu comecei a ir pelo país à procura do que era mais óbvio para mim : adufeiras, pauliteiros, gaiteiros, tamborileiros, bombos, cante, romances, polifonia. Com o tempo fui abrindo e fui conhecendo mais, sem nunca deixar de gravar em Lisboa ou no Porto, e estando sempre atento ao que ia surgindo, ao que era novo." Tiago recorda que muitos fizeram o mesmo, quer com projetos que gravavam música mais urbana em locais estranhos, quer investigadores mais ligados às ciências sociais, que foram fazendo trabalho de campo, gravando as pessoas mais velhas. "O importante, quanto a mim, sempre foi a disponibilização das gravações, tentando que fossem vistas e fáceis de encontrar na internet e nas redes sociais, mas também disponibilizando-as para quem as quisesse utilizar em estudo ou em projetos artísticos.".Foi assim que, em 2013, a NOS Discos editou um CD intitulado Deem-me Duas Velhinhas e Eu Dou-vos o Universo, com 26 músicas gravadas em todo o país, convidando artistas sonoros a fazer remisturas com elas..Volvidos quase dez anos dessa viagem à volta do país, a iniciativa conta hoje com 3030 projetos diferentes e mais de 6000 vídeos, de todo o território nacional, Madeira e Açores incluídos. Tiago recusa, porém, assumir a paternidade desse projeto. "Nunca seria justo dizer que eu dei a conhecer ao mundo... eu ajudei a dar a conhecer muita gente, mas não fui o único, e hoje cada vez estou mais interessado na mensagem do que em ser o mensageiro. O foco não pode, nem deve, estar em mim, mas sim na necessidade de educar, consciencializar para a importância cultural e social de conhecer, estar, partilhar e dar a conhecer pessoas que têm conhecimentos únicos e formas de vida muito suas." Focado na importância de fazer entender "que cada pessoa tem a sua história e que deve ter um espaço para a partilhar com dignidade. Essa partilha é que nos pode ajudar a todos a sermos melhores e a escutarmos melhor o mundo e a sociedade"..A Música Portuguesa a Gostar dela Própria vive sobretudo de protocolos municipais e projetos artísticos. "Nem sempre é fácil. Mas o objetivo é cada vez mais ter centros interpretativos onde se possa receber público e realizar seminários, aulas e conversas sobre diversos assuntos e temas que tenham a ver com o projeto, e onde as pessoas possam fazer percursos de tradição oral, umas vezes ouvindo sons em auscultadores, quando se passeiam pelo território, outras vezes indo conhecer as pessoas e estando com elas. Ou simplesmente vendo os vídeos e fazendo perguntas." Como o DN fez com ele, afinal..Realizador, documentarista, radialista e visualista, Tiago Pereira tem promovido e divulgado a música portuguesa como mentor e diretor de A Música Portuguesa a Gostar dela Própria. Com o tempo, tornou-se um ativista, defensor da memória coletiva e da tradição oral, realizando filmes, séries documentais, programas de rádio, programação musical e de eventos sobre o tema da cultura popular. O interesse estende-se ao artesanato e à gastronomia. Nesta semana estreou um novo projeto na página da internet da MPAGDP: As Estórias de Vida a Gostarem delas Próprias. Porque esta é, afinal, uma história de amor. E, como todas, vive várias etapas.