Raiashopping. Um disco de afetos, tiques suburbanos, néons e alumínios

Depois de ter explorado "os tiques e lugares de Gaia" nos dois primeiros discos em nome próprio, o músico e produtor David Bruno inspirou-se na aldeia natal da família, Figueira de Castelo Rodrigo, para criar<em> Raiashopping</em>, "um álbum de afetos".
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É ao som de um excerto de Pátria, um poema de Miguel Torga, que Raiashopping arranca, numa viagem pelas memórias de infância e adolescência de David Bruno numa remota aldeia da Beira Alta. O músico e produtor deu-se a conhecer enquanto membro do Conjunto Corona, mas já há muito se emancipou, graças a dois trabalhos em nome próprio, O Último Tango em Mafamude (2018) e Miramar Confidencial (2019), que o elevaram a condição de cronista-mor de um certo modo de ser português, tantas vezes desvalorizado pela arte dita mais séria, feito de tiques e lugares suburbanos, de néons e alumínios, churrasqueiras de bairro, bingos e danceterias em caves de prédios.

Desta vez, porém, deixou a sua Gaia natal, que foi a musa inspiradora dos discos anteriores, para arrancar em direção ao interior, mais em concreto para Freixeda do Torrão, uma aldeia raiana do concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, onde passou grande parte da infância, adolescência e juventude, entre tardes passadas no café do avô, bailaricos de verão, festas de espuma e incursões noturnas ao outro lado da fronteira. "Turbulências de calor no horizonte, garrafões vazios para encher na fonte, três e meia a apitarem no meu Casio, Dire Straits a passarem no meu rádio", ouve-se em Flan Chino Mandarim, um tema que recorda o famoso pudim, que a avó religiosamente lhe fazia quando chegava à terra. Não é por isso de admirar que "apesar da ironia e da brincadeira", o resultado disto tudo é "um álbum de afetos", como o classifica nesta entrevista ao DN.

Tal como os anteriores também editado em versão videoálbum, disponível no YouTube, no qual os temas são acompanhados de deliciosas imagens de época: vídeos caseiros filmados por familiares e amigos do próprio David Bruno, seja através de anúncios e peças de telejornal desses tempos, em que os emigrantes tinham "péssimos hábitos de condução, comem muito, bebem bastante e raramente param para descansar", como noticiava então uma jornalista da RTP. "Écoute bien, viens doucement, faites atención avec le camien, porque eles vêm tolos em contramã", alerta David Bruno na última faixa, precisamente intitulada Doucement, uma espécie de tributo tão nostálgico quanto irónico a esse hino sobre o regresso à terra que dá pelo nome de Vem Devagar Emigrante, da autoria Graciano Saga.

Como é que surgiu este disco, tão diferente, em termos de ambientes e de histórias, quando comparado com os anteriores, muito mais suburbanos?Desde o meu primeiro disco,
O Último Tango em Mafamude, editado em 2018, que já tinha vontade de fazer algo assim, um disco de histórias reais, a maior parte delas vividas por mim e limitadas a um determinado espaço, neste caso a aldeia onde passei grande parte da minha infância e juventude.

É uma ligação familiar, a que tem com a aldeia de Freixeda do Torrão?
Sim, porque a minha família, tanto da parte da minha mãe como do meu pai, é toda da raia, eu fui o primeiro a nascer fora, na cidade, neste caso em Gaia. De certa forma a morte das minhas avós foi o que me impulsionou a avançar para este disco e o período de confinamento, decorrente da pandemia, deu-me o tempo que precisava para pesquisar essas memórias de uma forma mais metódica.

Ainda mantém viva essa ligação com a aldeia?
Antes de ter todos os fins de semana ocupados com a música, ia lá todos os meses ou pelo menos esforçava-me por isso. Agora é mais complicado, mas tento ir o máximo de vezes que me é possível. Entretanto, a covid veio piorar isso, porque as pessoas da aldeia já têm alguma idade e torna-se perigoso para elas ir lá com tanta frequência, apesar da vontade que tenho de lá voltar.

O que pretendia ao fazer este disco?
O objetivo foi mesmo o de conseguir deixar um documento para o futuro, para mostrar como era a nossa vida na aldeia, nessa altura tão rica como o foram as décadas de 1980 e 90. Acima de tudo gostaria que, ao ouvirem este álbum, as pessoas olhassem para as suas terras de outra forma, porque por vezes há uma certa sobranceria no modo como o interior é tratado por quem vive na cidade.

Mas mesmo assim não deixa de usar uma certa ironia e um certo tom de gozo, que já são uma espécie de imagem de marca na sua música.
Por acaso até acho que este é o meu álbum menos a gozar. Enquanto nos outros contava histórias fictícias, de tiques e lugares que conheço bastante bem, em Gaia, neste disco todas as músicas estão relacionadas com momentos vividos por mim. E apesar de toda essa ironia e brincadeira, que faz parte de mim enquanto artista, trata-se acima de tudo de um álbum de afetos, sobre pessoas e locais dos quais gosto muito.

Como é que as pessoas da aldeia reagiram ao álbum?
Estão a compreendê-lo aos bocadinhos [risos]. As pessoas mais velhas não entenderam muito bem a ironia nem tinham de a entender, mas reagiram muito bem aos vídeos e aos nomes que recordo nas músicas. Acho que todos perceberam o objetivo, que é precisamente o de prestar uma homenagem a um lugar que nos é comum.

Onde foi buscar todas aquelas imagens de época com as quais construiu o videoálbum?
A maior parte das imagens são minhas e de amigos meus. Aproveitei o confinamento para digitalizar muitas gravações em VHS e passei muito tempo na net à procura de imagens de época.

Apesar das contingências, tem planos para apresentar o álbum ao vivo brevemente?
As duas coisas que mais gosto de fazer, em termos artísticos, é pesquisar samples e atuar ao vivo. Felizmente os concertos já recomeçaram, apesar de as lotações serem menores, o que é chato, porque as receitas também são mais pequenas. Mas sim, vou apresentar em Lisboa, a 5 de setembro, no Capitão Beato, no Porto a 12, no Hard Club, e em Braga a 18, no Theatro Circo.

O David Bruno é real ou, pelo contrário, trata-se de mera personagem?
Tenho de reconhecer que às vezes exagero um bocadinho na personagem, mas é apenas com o objetivo de poder contar as histórias como elas realmente são. Digamos que 20% é personagem e o resto é mesmo meu.

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