Cinema no feminino. Se à primeira vista a expressão pode remeter para filmes "sobre" mulheres, é preciso sublinhar o seu sentido programático no Olhares do Mediterrâneo - Women's Film Festival: cinema com mulheres atrás da câmara, oriundas de países do Mediterrâneo ou a trabalhar no âmbito dessas culturas. Chegado à sétima edição, o certame regressa às salas do Cinema São Jorge, em Lisboa, até dia 30, neste ano com a grande maioria das sessões apenas online, na plataforma Filmin, até 10 de dezembro - o enquadramento da pandemia obrigou a redesenhar o formato do festival..A par de um programa composto por 55 filmes, entre curtas e longas-metragens, uma das novidades desta edição chama-se Awareness and Empowerment, um projeto internacional que visa debater, através de um conjunto de mesas-redondas, masterclasses e workshops, o trabalho das mulheres na indústria cinematográfica, e o próprio papel dos filmes e dos festivais na promoção do olhar social..Contemplando uma diversidade de visões e realidades, desde documentários politicamente afirmativos como I Am the Revolution, de Benedetta Argentieri, até filmes em torno da questão humanitária dos refugiados, como é o caso de Omar and Use, da dupla Maryna Er Gorbach e Mehmet Bahadir Er, passando por uma mão-cheia de curtas-metragens portuguesas e uma sessão para famílias, o festival de cinema no feminino volta a trazer para a linha da frente vozes e perspetivas que ampliam o conhecimento de paisagens sociais e humanas mais próximas de nós do que se pensa.. God Exists, Her Name Is Petrunya, de Teona Strugar Mitevska.(hoje, dia 25, 19.30, Cinema São Jorge).O filme de abertura do Olhares do Mediterrâneo é, naturalmente, uma brilhante declaração de intenções do próprio festival: Deus existe e é uma mulher. A protagonista do título, Petrunya, a viver numa pequena cidade da Macedónia, encaixa naquela categoria da jovem frustrada que, aos 32 anos e com uma licenciatura em História, ainda está na casa dos pais, desempregada. Com este peso nas costas e uma súbita determinação, ela acaba por provocar uma tempestade local: assistindo a uma tradição religiosa masculina em que o padre atira uma cruz de madeira ao rio, a qual se diz trazer prosperidade ao homem que a apanhar, Petrunya atira-se à água e apanha a cruz antes de qualquer um dos jovens misóginos que a vão ali amaldiçoar... O que se segue é uma noite na esquadra e um curso rápido sobre o absurdo dos cânones da Igreja - reflexo da sociedade patriarcal - à volta de um item sagrado que, no fundo, serve apenas de pretexto para a anti-heroína desafiar a autoridade e descobrir dentro de si um sentimento novo. A cruz não trazia boa sorte?.YouTubeyoutubeiWLqo8_DHSc.Que L'Amour, de Laetitia Mikles.(dia 27, 20.00, no Cinema São Jorge e no Filmin).Um enorme fascínio por Jacques Brel reveste este documentário sobre um jovem franco-argelino que se dedica à interpretação de canções do artista. Entre o trabalho num rent-a-car e o trabalho performativo nos ensaios, em que procura o rigor da linguagem corporal para além da impressão emotiva das letras, Abdel Khellil não se apresenta como um cantor mas sim um exclusivo intérprete de Brel, tocado pelas histórias que cada canção contém, pelo seu imaginário visual e mesmo pelo espírito de uma época para ele desconhecida, os anos 1950/60. A câmara de Laetitia Mikles mostra-o em palco, mas interessa-se sobretudo pela preparação dos espetáculos, o modo como ele gere a aparência - por exemplo, através da manutenção exigente do corte de cabelo -, seguindo-o até às origens argelinas, na relação das palavras musicadas com as experiências da vida. Que L'Amour recorda-nos ainda que no início do ano tivemos também Salvador Sobral apanhado por este sortilégio de Brel....YouTubeyoutube7o1-syytW9U.Between Heaven and Earth, de Najwa Najjar.(dia 29, 11.00, no Cinema São Jorge e no Filmin).Road movie com um toque de melodrama, Between Heaven and Earth é um olhar sobre o desgaste e a ternura que unem um casal à beira do divórcio. Salma e Tamer, residentes no Território Palestiniano, passam juntos um posto de controlo israelita (local que nos recorda o filme de Elia Suleiman Intervenção Divina) para ir ao tribunal tratar da papelada. Quando estão no início do processo, um erro sobre os dados pessoais de Tamer leva a um mergulho no passado político do seu falecido pai, iniciando-se aqui uma viagem de pesquisa que servirá de motivo para explorar a própria relação amorosa em reta final. Pelo caminho, diferentes personagens, com ensinamentos mais ou menos cómicos, ajudam a refletir sobre o ponto de vertigem daquele casamento tomado por silêncios e melancolia. E é com discretos sinais de exorcismo que se vai reconfigurando a razão inicial de se terem feito à estrada. Já a melancolia, captada pela lente de Najwa Najjar, leva a melhor em todas as situações..YouTubeyoutubeku9y-Y9xUZs.La Hija de un Ladrón, de Belén Funes.(30 novembro, 19.00, no Cinema São Jorge).O realismo social espanhol marca a sessão de encerramento do Festival. La Hija de Un Ladrón segue os passos de Sara, uma jovem mãe solteira cansada de trabalhos pesados e com uma nova oportunidade de emprego que a poderá libertar da dependência dos serviços sociais. O pai, que passou anos na prisão, reaparece na sua vida, mas não traz senão mágoa aos seus dias divididos entre a nova experiência laboral, as rotinas da maternidade e o mau comportamento do irmão mais novo. Ao observar o drama da protagonista, Belén Funes evita acentuar a psicologia de cada momento, deixando à excelente protagonista, Greta Fernández (Prémio de melhor atriz no Festival de San Sebastián 2019), a condução da verdade íntima deste retrato. Quando lhe perguntam como é que se define e ela responde "Uma pessoa normal", há qualquer coisa de profundamente triste e digno no seu rosto. É alguém que persegue com todas as forças o estatuto de vida para além da sobrevivência..YouTubeyoutubenvEB3eg6hbo.Pile Poil de Lauriane Escaffre e Yvonnick Muller.(no Filmin).No extremo oposto da crueza de La Hija de Un Ladrón, Pile Poil é uma crónica de 20 minutos do amor entre pai e filha, sem meio grama que seja de lamechice, com humor doce e uma simplicidade desarmante. Vencedor do César de melhor curta-metragem, o filme do par francês Lauriane Escaffre e Yvonnick Muller conta uma pequena história de emancipação. Élodie está a tirar um curso de esteticista e nas horas vagas ajuda o pai no talho. Dentro de poucos dias vai fazer o exame da disciplina de Depilação, para receber o diploma, mas tem um problema prático: falta-lhe uma cobaia para levar consigo nesse dia, sujeita ao teste da cera quente. Perante a escassez de hipóteses, será preciso dar azo à criatividade..YouTubeyoutubeoro5An9k90s