O Brasileirão depois da Libertadores. Como Jesus fez história em 24 horas
Glória eterna para Jesus no Brasil. Em cinco meses de Flamengo, o treinador português conquistou os dois principais títulos pelo clube brasileiro em menos de 24 horas. No sábado ergueu a Libertadores, coisa que só ele e mais um estrangeiro conseguiram na história da prova, e no domingo festejou a conquista do Brasileirão, como é chamado o campeonato brasileiro. Jesus fez assim história, pois nenhum técnico português havia arrebatado um campeonato na América do Sul e só dois haviam triunfado no continente americano - Guilherme Farinha venceu dois títulos na Costa Rica ao serviço do Alajuelense em 1999-00 e 2000-01 e Pedro Caixinha sagrou-se campeão mexicano em 2014-15 ao comando do Santos Laguna.
A derrota do Palmeiras frente ao Grémio (2-1) deu o título de campeão brasileiro ao Mengão. O clube paulista, que se encontrava a dez pontos do Flamengo, estava obrigado a vencer para adiar a festa da equipa de Jorge Jesus e sonhar com o título, mas perdeu com a equipa de Porto Alegre. Everton, aos 69 minutos, de grande penalidade, inaugurava o marcador, mas aos 83, também de penálti, Bruno Henrique empatou, já nos descontos, Pepê fez o 2-1 para o Grémio, estabelecendo o resultado final e lançando de novo a festa rubro-negra na rua. Segundo a imprensa brasileira, cerca de um milhão de pessoas saíram à rua para festejar com os jogadores e a equipa técnica. Varandas, terraços, árvores e até sinais de trânsito serviram para alcançar a melhor posição possível e estar mais perto dos heróis.
A notícia do heptacampeonato apanhou a equipa do Flamengo a terminar o desfile de vencedor da Libertadores nas ruas cariocas. Segundo o UOL os jogadores viram o final do jogo do Palmeiras no autocarro e comemoraram aos gritos "É campeão!" e "Volta para o trio!". Jesus não estava junto da comitiva, tendo partido sozinho, de carro, para casa, escoltado pelo Batalhão de Choque da Polícia Militar do Rio de Janeiro. A festa do título segue pela noite dentro, já que o clube tinha planeado uma festa privada para comemorar a conquista da Libertadores.
O Mengão conquistou assim o sétimo título brasileiro no seu historial, algo que não acontecia desde 2009. Jesus assumiu os destinos do Flamengo na 10.ª jornada, altura em que a equipa estava com oito pontos a menos do que o líder Palmeiras, e 24 rondas depois sagra-se campeão, fruto de 19 vitórias, quatro empates e apenas uma derrota. Mas ainda há mais coisas que o português pode conquistar. O Flamengo tem 81 pontos, tanto quantos amealhou o recordista Corinthians em 2017, e tem ainda quatro jornadas para bater esse recorde. Outra marca que a equipa persegue é a de menos derrotas no campeonato - o São Paulo de 2006 e o Palmeiras de 2018 levantaram a taça apenas com quatro derrotas, e o Flamengo tem nesta altura três.
Este é também o quarto título de campeão nacional do técnico português, depois dos três que conquistou em Portugal ao serviço do Benfica.
"Muita gente não acreditava, mas acreditei desde a primeira hora, pois vi argumentos para isso. Nunca pensei que fosse tão importante para eles. Pensava que ser campeão brasileiro era o mais importante, mas percebi com eles que a Libertadores era muito mais importante", admitiu a A Bola TV o técnico português, já depois de ter percorrido o centro da cidade do Rio de Janeiro nas comemorações pela conquista da Taça dos Libertadores, que sonhava erguer um dia.
O sucesso chegou cinco meses depois de se aventurar no Brasil, mas o início não foi fácil e o técnico teve de se agarrar ao fado: "Vim para o Brasil com este objetivo, mas não há comparações. Só o Rio de Janeiro tem nove milhões de habitantes. Foi um trabalho especial, que não correu bem na primeira e na segunda semana, mas posso revelar um segredo: foi a uma cantiga da Mariza que me agarrei. O Melhor de Mim... ainda hoje quando vou para os jogos oiço essa música."
Sobre o futuro, Jorge Jesus admitiu estar "apaixonado pelo Flamengo", mas "as paixões passam com o tempo". Por isso há que dar "tempo ao tempo, como diz a música da Mariza".
Para esta segunda-feira está prevista uma homenagem. A Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprovou na quinta-feira a atribuição do título de Cidadão Honorário da Cidade do Rio de Janeiro a Jorge Jesus. A proposta pertenceu ao vereador Felipe Michel.
Durante a festa, o herói da final da Libertadores, Gabigol, ou anjo Gabriel, como já o chamam, passou o microfone ao treinador Jorge Jesus, que na ausência de melhores palavras resolveu cantar... a sua própria música: "Olê, olê, olê, olêêêê... Misteeeer! Misteeeer!" Foi assim que o primeiro técnico português a erguer a Libertadores festejou a conquista do maior troféu sul-americano, aquele que lhe dá a oportunidade de jogar o Mundial de clubes no próximo mês no Qatar - além de Flamengo estão também Liverpool (UEFA), Espérance de Tunis (CAF), Monterrey (CONCACAF), Hienghène Sport (OFC) e Al-Sadd (na condição de anfitrião) e o Al-Hilal, antiga equipa de Jesus, que neste domingo venceu a Champions asiática.
Se na véspera o técnico tinha sido a imagem e a voz do orgulho português em Lima, no domingo o treinador do Flamengo foi engolido pelos festejos cariocas. E teve de ouvir aquilo que se calhar não queria ouvir. "Fica mister", ou o "mister é nosso". Afinal, o desejo dele, agora que conquistou a Libertadores, é vir para a Europa e conquistar a Champions.
Ao início da tarde em Lisboa e após um voo de cinco horas desde Lima, os jogadores começaram a festa ainda no avião. No vídeo partilhado nas redes sociais vê-se os jogadores no avião a cantar, acompanhados da taça, momentos antes de aterrarem no Aeroporto Internacional Tom Jobim. Chegaram com escolta presidencial. O presidente do Brasil ordenou que a Força Aérea Brasileira desse os parabéns à equipa do Flamengo e assim o voo de regresso foi intercetado e a comitiva ouviu uma mensagem. "A Força Aérea Brasileira, em nome do presidente da República Jair Bolsonaro, dá as boas-vindas à equipa do Flamengo e felicita a equipa campeã que tão bem representou o Brasil para a conquista da Copa Libertadores da América. Brasil acima de tudo. Parabéns", foi a mensagem ouvida pelos jogadores do Flamengo e lida por um membro da Força Aérea Brasileira, segundo a Globo.
Depois caíram nos braços da torcida. No cimo de um trio elétrico (uma espécie de autocarro aberto) oFla partiu da Calendária - Igreja de Nossa Senhora da Candelária é um templo católico localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, que tem tanto de brasileira como de portuguesa. Reza a história que este templo católico foi mandado construir em 1609 por um casal português que terá naufragado no Brasil, numa embarcação chamada Candelária. António Martins Palma e Leonor Gonçalves terão prometido edificar esta igreja em homenagem a Nossa Senhora da Candelária caso conseguissem sobreviver ao naufrágio. Passados cinco séculos, neste mesmo lugar, fez-se a festa com um outro português, de seu nome Jorge Jesus.
O desfile seguiu depois pela Avenida Presidente Vargas, onde se ouvia "o Jesus não sai do Rio". Aliás, não havia reportagem de televisão que não tivesse vivas ao portuga. Escoltado pela Polícia Militar, o gruporubro-negro foi ao encontro dos milhares de adeptos eufóricos e vestidos a rigor que nas ruas esperavam para ver os novos campeões da América do Sul. A emoção tomou conta dos corações flamenguistas. Durante o trajeto, o treinador natural da Amadora pulou e cantou desafiado por alguns jogadores. Durante o desfile, Jesus trocou a bandeira portuguesa que usou em Lima pela bandeira do Mengão às costas, qual manto sagrado, e chegou mesmo a ensaiar uns passos de funk enquanto comia uma maçã. E foi identificado pelo Twitter do Flamengo como "homem incrível" e o "melhor do mundo".
A festa acabou, momentos antes de se saber que eram campeões nacionais, em confusão. Com milhares de pessoas na rua e sem vontade de dispersar, a polícia recorreu a bombas de gás lacrimogéneo para dispersar a multidão, gerando algum pânico e confusão. Nas imagens é possível ver crianças no meio do tumulto e a polícia a apontar armas aos adeptos que restaram na avenida.
O Flamengo conquistou a Taça Libertadores, no sábado, pela segunda vez na história, depois de ter ganho em 1981. Foi uma final emocionante e dramática. Dominado durante a maior parte do jogo, o Flavirou sobre o River Plate com dois golos de Gabigol em três minutos e soltou a festa.
Mas para muitos o título sul-americano começou a ser conquistado no primeiro jogo de Jesus na prova. Uma derrota em Guayaquil (Equador), o dia 27 de julho, frente ao Emelec, nos oitavos-de-final. Nesse jogo, o técnicorubro-negro surpreendeu ao tirar Cuéllar do onze e recuar Diego no meio-campo, além de adiantar o defesa Rafinha e meter Rodinei a lateral-direito. A estratégia saiu furada. Com os jogadores claramente perdidos em campo, oFla perdeu por 2-0 e ficou sem Diego, que sofreu uma fratura numa perna e desfalcou a equipa por alguns meses.
A equipa ficou a precisar de um triunfo por três golos no Maracanã para passar a eliminatória. Os dirigentes ficaram apreensivos, os jogadores apáticos e Jesus, segundo a imprensa brasileira, ficou "assustado" e sem entender muito bem por que todos "davam mais importância" à Libertadores do que ao Brasileirão. "A verdade é que nunca coloquei a Libertadores à frente do Brasileiro. Hoje tenho a noção de que todos os flamenguistas dão mais importância à Libertadores do que ao Nacional", admitiu o mister na conferência de imprensa antes da decisão com o River Plate.
Daí para frente, o português definiu que faria as coisas de maneira diferente. No jogo da segunda mão com o Emelec, o técnico resolveu "não inventar mais". Rafinha retornou à lateral-direita e, com Diego lesionado, Cuéllar, Arão, Gerson e Everton Ribeiro formaram o meio-campo. Empurrados pela arquibancada, os jogadores empataram eliminatória. Depois, a sorte do penálti sorriu aos brasileiros com a ajuda do guardião Diego Alves, que brilhou. E foi aí que Jesus encontrou a equipa que tornaria o Flamengo arrasador... Seguiram-se duas eliminatórias frente a compatriotas de Porto Alegre, primeiro o Internacional, depois o Grémio... e a final.
Em Lima a coisa até começou a correr mal. O Flamengo viu-se em desvantagem logo aos 14 minutos com um golo de Borré e durante a primeira parte sentiu grandes dificuldades para contrariar a estratégia montada por Gallardo, o treinador do River Plate. No segundo tempo, a equipa canarinha melhorou, mas o aproximar do final do jogo já não dava grandes esperanças aos adeptos do Flamengo. Até que ao minuto 89 tudo mudou. Gabriel Barbosa marcou o golo do empate e levou ao delírio os adeptos brasileiros. E quase como por artes mágicas, Gabigol, quando já todos se preparavam para o prolongamento, apontou o segundo do Fla aos 90'+2', esse minuto fatal que ficou marcado pela negativa na carreira de Jorge Jesus na época 2012-13, primeiro com o golo de Kelvin que praticamente deu o título ao FC Porto e, depois, na final da Liga Europa com o cabeceamento de Ivanovic na partida com o Chelsea.