Aquele 25 de abril de 1959 foi premonitório. Eram 523 rapazes alinhados no juramento de bandeira, que davam corpo à primeira recruta da Força Aérea Portuguesa. A instrução fizera-se na Serra da Carregueira (num aquartelamento onde hoje está o Estabelecimento Prisional), e daí seguiram, a 4 de outubro, para inaugurar a Base Aérea nº 5 de Monte Real. Nesta manhã, 60 anos depois, muitos deles vão juntar-se para festejar esse tempo. Virão de todos os pontos do país e do estrangeiro, numa comemoração sem precedentes. O DN juntou três deles (que fazem parte da comissão organizadora) para recordar o tempo em que o céu era o limite. Olegário Silva, Silvino Damásio e João Marques da Silva (a que se juntam João Botas, José Gouveia e Jacinto Lopes) têm agora entre os 77 e os 80 anos e foram incansáveis na organização. Descobriram, por conta própria, que 113 já faleceram. Mas contactaram as famílias, descobriram a dramática ordem natural da vida, quando perceberam que muitos já estão acamados ou incapacitados, de alguma forma..Desde que a recruta comemorou 50 anos, em 2009, que andam a planear esta festa em grande, mas já antes se juntavam. Na verdade, nunca deixaram de fazer convívios. "Nós olhamos uns para os outros como se ainda tivéssemos 17 anos", dizem..João e Olegário já se conheciam quando chegaram a Monte Real, naquele abril de 1959. Estudaram na mesma escola, em Aveiro. A FAP estava a nascer, até então só havia recrutas pequenas, cursos dados por pessoal do exército. Era a farda, era o fascínio pelos aviões que os movia..Depois da Carregueira de Monte Real, alguns seguiram para Paço de Arcos, onde João Marques da Silva tirou a primeira especialidade na escola militar e de eletromecânica que era pertença do exército e da FAP (isto na parte de comunicações), e só daí foram para Sintra, "tirar a especialidade final". Já Silvino frequentou o curso em Aveiro, na Base Aérea n.º 7, em São Jacinto..Os jovens recrutas apercebem-se cedo de que "as chefias nessa altura já estavam a pensar na Guerra do Ultramar. Tanto é que uma boa parte dos nossos camaradas, assim que acabaram os cursos, foram logo combater nas ex-colónias". Também lhes havia de calhar em sorte, não tardaria. João Marques da Silva cumpriu duas comissões: uma na Guiné (1965-1967) e outra em Moçambique (1971-1975)..Olegário esteve por duas vezes em Moçambique, de 1965 a 1968 e de 1972 a 1974. Silvino esteve em Moçambique de 1963 a 1967, e em Angola de 1971 a 1972. Era o único que estava em Portugal quando aconteceu a Revolução dos Cravos..Nesse tempo, os cabos especialistas eram um mito: não só pela sua capacidade técnica - não é por acaso que todos os que saíram da FAP arranjaram boas colocações na TAP e noutras companhias aéreas, bem como na RTP, como também pelo charme que destilavam: "Eram rapazes de 17 e 18 anos, com uma farda bonita, as raparigas achavam-lhes muita piada." E foi precisamente essa aparência que seduziu para a carreira militar o jovem Silvino Damásio. Trabalhava em frente à fábrica de Cimentos da Maceira, de onde é natural. "Passava lá um rapaz, à sexta-feira, com uma gabardina cinzenta. Era um rapaz alto, natural de Maceirinha, que ia namorar a filha de um industrial de panificação. Era uma figura, as raparigas que trabalhavam nas alfaiatarias vinham todas à rua para o ver." Imaginava-se assim..Quando entrou para a FAP, a ideia era "cumprir os três anos de voluntariado e depois sair. Mas isto das especialidades "tem muito que se lhe diga. E a minha especialidade era nova (Abastecimentos), e ainda antes de terminar fui nomeado para o curso de sargentos". Ficou. Só deixaria a Força Aérea nos anos 90, para se aposentar..Olegário Silva recorda que "também havia falta de empregos", e isso levava muitos jovens a quererem abraçar a carreira militar. Numa altura em que o salário médio num escritório era "200 escudos, no máximo, na FAP já ganhávamos 590 escudos. Era muito bom". Mandou fazer a farda ainda antes de entrar para a Base Aérea. A memória que tem dos primeiros tempos é de festa. "Lá não havia o 27 nem o 35. O comandante tratava toda a gente pelo nome." Nos primeiros anos da década de 60 foram nomeados para o curso de sargentos..Aos poucos, foram tomando consciência da guerra. "Foi terrível. Já estávamos no quadro, passámos a profissionais. Não havia como escapar. Estávamos diariamente à espera de ser nomeados..Silvino lembra que vivíamos num país "de partido único, ditatorial, encarávamos aquilo com muito patriotismo, não estávamos informados. Só uma pequena minoria é que estava. Quando lá chegávamos é que nos apercebíamos". Ainda assim, as suas comissões foram tranquilas. "Queixo-me mais dos mosquitos que me iam comendo na Beira do que do resto", conta..Partir para a guerra com os olhos na paz - e nos filhos.João Marques da Silva acreditava que a carta de chamada iria demorar. De modo que, naquele dia, quando entrou no autocarro que o levava de Monte Real a Leiria, onde morava, e lhe disseram "estás nomeado para a Guiné", voltou a sair e foi confirmar se era verdade. "Era nomeação por escolha, não tinha qualquer hipótese de contestar. Para mim foi um drama: os meus filhos tinham 22 meses e 19 dias, respetivamente.".Chegou a casa em silêncio e foi ao berço do mais novo. Atrás dele, a mulher quis saber o que se passava, quando o viu de lágrimas nos olhos. Nem precisou dizer..Marques da Silva trabalhava na parte dos serviços secretos. Todas as missões tinham de ser codificadas, e quem estava a fazer o trabalho naquele posto era um oficial que "namorava uma bajuda, sobrinha de um elemento importante do PAIGC da Guiné". De modo que era um conflito constante. "Assim que lá chegavam soldados nossos eram abatidos a tiro. E aquele indivíduo, que foi responsável pela morte de tantos camaradas que foram abatidos, depois do 25 de Abril foi arvorado em herói", lamenta.."Para trabalharmos nos serviços secretos fomos espremidos pela PIDE", recorda Marques da Silva. "Nós e toda a nossa família." Olegário lembra-se bem dessas idas à PIDE. Lá sabiam de que o pai (alentejano) era do reviralho, que um dos tios estava preso - estaria, por 27 anos. "Já eu estava em Moçambique, na Beira, onde tinha dois irmãos, a minha pobre mãe gastou 500 escudos numa chamada telefónica, porque a PIDE entrou-lhe pela casa dentro a querer saber coisas de mim. Ela temeu o pior.".Olegário fez a guerra a voar. "Fui abonado (atingido) duas vezes no avião, andei metido naquilo até aos olhos." Em Aveiro, a família deu-o como morto mais do que uma vez. Um dia, numa licença, chegou a casa e tinha a mulher e os quatro filhos "e mais cem pessoas a fazer-me o velório". Só que o destino trocara as voltas à vida de Olegário, que no norte de Moçambique trocara de avião com um colega, um antigo aluno que iria fazer admissão à universidade na semana seguinte. "Fizemos o resto da missão, e nessa noite, no regresso de Porto Amélia para Moebe, o avião caiu. Morreram todos. A lista da tripulação foi divulgada, e cá ninguém sabia que nós tínhamos trocado de avião.".Enfim, a liberdade.A 25 de abril de 1974, Marques da Silva estava em Nampula. Como trabalhava nas comunicações, "ia sabendo alguma coisa, mas nunca ninguém sabia a verdade. Havia muita contrainformação"..Hoje, quando fala do passado, diz sempre a mesma coisa: "Nós tínhamos a noção exata de que estávamos lá a mais, que aquela terra era deles." Olegário recorda que foi "mais mal tratado pelos fazendeiros portugueses, que na altura lá estavam, do que pelos nativos"..Silvino estava em Ota a terminar o curso de oficiais. Já na altura tinha o hábito de acordar cedo, e por isso às 06.00 já tinha o rádio ligado. "Ouvi aquilo e acordei uma porrada de gente. Depois seguiram-se diversos episódios que recorda, de muitos vira-casacas. De repente apareceram revolucionários de toda a parte." Marques da Silva lembra uma época em que, na base, quando iam para a Messe almoçar só comiam, nem falavam, "porque tinham medo uns dos outros"..Olegário ia a voar da Beira para Tete, com Taveira Martins (que haveria de ser chefe do Estado-Maior), naquela manhã de 25 de Abril de 74. Foi ele quem lhe disse para ouvir a BBC. "Só me lembro de ouvir a palavra 'revolução, revolução!'." Começou aos saltos dentro do avião. "Foi uma alegria. Uma felicidade. Fui buscar a Frelimo, depois recebi as comissões todas do MFA. Desde pequenino que esperava aquilo, por causa do pai.".Só voltaria a Portugal em dezembro desse ano. Marques da Silva só voltou em 1975. Tinha lá a família, a filha mais nova nascera lá. De resto, qualquer um dos três tinha levado a família para África, entretanto. Os últimos filhos de cada um nasceram em Moçambique..Em Portugal, e longe da guerra, cada um haveria de ficar na Força Aérea por mais uns bons anos. O primeiro a sair foi João Marques da Silva, em 1988. Como tinha cumprido duas comissões de serviço em zonas de guerra, o tempo contava a 100%. Já colaborava com vários jornais (foi correspondente de vários nacionais, a partir de Leiria) e soube de um concurso para a câmara. Acabaria por ser o primeiro assessor de imprensa da autarquia, onde ficou 25 anos. Silvino saiu em 1993, aos 51 anos. Era major. Dedicou-se ao associativismo local, fundou a Associação Recreativa Amarense e a associação ambientalista OIKOS, é dirigente da Liga dos Combatentes. Olegário era sargento-mor, aproveitou a "lei dos coronéis". Nunca mais trabalhou, mas dedicou-se também ao associativismo..Nas últimas semanas intensificaram os contactos com o comandante da BA 5, João Gonçalves, que acedeu fazer as comemorações em conjunto. Descobriram que é, afinal, filho de um desses cabos especialistas, que dividiu uma comissão com Olegário, mesmo não sendo da mesma recruta. Hoje, vão ser os anfitriões de uma festa onde esperam 300 pessoas. Mais de cem são rapazes da mesma recruta.