Festival da Carne de Cão avança apesar dos protestos. 62 milhões são animais de estimação

A cidade de Yulin recebe nesta semana um festival gastronómico em que a carne de cão é a principal iguaria. Mas este é um costume que cada vez mais é posto em causa pelos jovens chineses, sobretudo em ano de covid-19.
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Todos os anos, no final de junho, milhares de cães são sacrificados na cidade de Yulin, no sul da China, no famoso "Festival da Carne de Cão". No entanto, o coronavírus salvará a vida de alguns animais este ano. A pandemia, que causou a morte de mais de 470 mil pessoas, surgiu no final de 2019 num mercado em Wuhan, no centro da China, no qual se vendiam animais vivos. A partir de então, as leis para o comércio de animais foram reforçadas.

O Festival da Carne de Cão, que realiza-se todos os anos em Yulin, uma cidade na província de Guangxi, decorre de 21 a 30 de junho, que é geralmente uma das épocas mais quentes do ano. Durante dez dias, mais de dez mil cães são comidos neste festival gastronómico onde se podem encontrar outras iguarias como carne de gato, líchias e licores frescos.

A primeira edição do festival realizou-se em 2009 para marcar o solstício de verão. O consumo de carne de cão é tradicional na China e, de acordo com o a tradição, comer carne durante os meses de verão traz sorte e saúde. Alguns também acreditam que a carne de cão pode afastar doenças e aumentar o desempenho sexual dos homens.

Muitas vozes de protesto

Desde o início, este festival recebeu várias críticas, quer na China quer internacionalmente. Vários ativistas denunciaram que os animais são abatidos desumanamente e que as práticas de higiene no festival não estão de acordo com os regulamentos chineses. Há também acusações de que cães são trazidos para Yulin de toda a China em condições apertadas, e os visitantes do festival relataram ter visto alguns animais com coleiras, indicando que são animais de estimação roubados.

Em Yulin, onde o festival começou no domingo e dura uma semana, dezenas de cães amontoam-se em gaiolas estreitas, constatou a AFP através de vídeos. Como de costume todos os anos, os animais sacrificados são empilhados nos balcões dos açougues.

Neste contexto, o americano Jeffrey Bari criou um abrigo próximo de Pequim, onde cuida de cerca de 200 cães salvos do destino fatal. A festa de Yulin é "desumana e bárbara", afirma à AFP este defensor dos animais, que tenta encontrar famílias de acolhimento para os animais.

Os ativistas dos direitos dos animais salvam centenas de cães todos os anos, organizando verdadeiros ataques aos matadouros ou intercetando camiões cheios de cães que se dirigem para o sul, onde ainda persiste a tradição do consumo da sua carne. Os traficantes são acusados não só de pegar cães abandonados, mas também de roubar os de estimação.

"Temos uma sensação de prazer quando conseguimos mudar o destino de um animal", diz também à AFP Miss Ling, voluntária que ajuda um abrigo da ONG No Dog Left Behind (nenhum cão abandonado).

Além disso, a Organização Mundial da Saúde alertou que o comércio de cães espalha a raiva e aumenta o risco de cólera.

Comer cães é legal?

Comer cães não é ilegal na China. Cerca de 10 a 20 milhões destes animais são mortos todos os anos para consumo humano e, embora o festival seja novo, o costume deverá ter pelo menos 400 anos. Mas os tempos estão a mudar. Durante a Revolução Cultural era proibido manter cães como animais de estimação, mas hoje em dia a posse de cães tornou-se popular entre a crescente classe média da China: existem 62 milhões de cães registados como animais de estimação. Os cães começam a ser vistos com novos olhos. Não só os ativistas mas também várias celebridades e muitos jovens têm-se manifestado cada vez mais nas redes sociais criticando o ato de comer carne de cão.

Mesmo antes do surgimento da covid-19, o consumo de carne de cão mostrava um declínio acentuado na China. Com o impacto da pandemia, o Governo chinês aprovou uma lei que proíbe o comércio e consumo de animais selvagens. A lei não se aplica especificamente aos cães, mas o Ministério da Agricultura reclassificou os cães como animais de estimação, removendo-os da lista de animais comestíveis.

Essa alteração pode ser um sinal de que uma proibição mais ampla do consumo da sua carne está a ser planeada. Peter Li, especialista em políticas da saúde na China, disse ao Independent que o festival de Yulin é um "espetáculo sangrento [que] não reflete o humor ou os hábitos alimentares da maioria do povo chinês".

Cada vez menos interessados

Uma sondagem nacional realizada em 2016 constatou que 64% dos cidadãos chineses queriam o fim do festival de Yulin e 69,5% nunca comeram carne de cão. Uma outra sondagem de 2017 revelou que em Yulin quase três quartos das pessoas não comem carne de cão regularmente, apesar dos esforços dos comerciantes para promovê-la.

Alguns fornecedores especializados contactados pela AFP por telefone em Pequim reconhecem que este mercado começa a enfrentar dificuldades. "Há cada vez menos clientes", declarou um funcionário, identificando-se como Chen, para quem o problema está na obsessão pela segurança alimentar que, como consequência da covid-19, se espalhou por todo o país.

Nas redes sociais, muitos utilizadores defendem a proibição dessa festividade, cujo novo nome, Festa do Solstício de Verão, parece não enganar ninguém.

"Agora que o Governo chinês reconheceu oficialmente os cães como companheiros e não como animais, esperamos que a China tome medidas mais fortes para acelerar o fim do comércio de carne de cães e gatos, com o qual milhões de animais continuam a sofrer todos os anos", afirmou Peter Li. Esta será, portanto, "a oportunidade perfeita para as cidades chinesas agirem de acordo com as palavras do Governo, protegendo cães e gatos dos ladrões, dos comerciantes de carne e matadouros".

Em abril, as cidades de Shenzhen e Zhuhai foram as primeiras na China a proibir oficialmente o consumo de carne de gato e cão. Apesar de tudo, o governo municipal de Yulin alega que o festival não existe como um evento oficial e por isso não há maneira de proibi-lo.

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