Violência doméstica é igual a tortura, diz juiz do Tribunal Europeu
"É evidente que o ato de violência doméstica tem um caráter inerente de humilhação e de rebaixamento da vítima, que é exatamente o que o agressor visa. A dor física é apenas um dos objetivos. Um pontapé, uma bofetada ou um cuspir visam também diminuir a dignidade do parceiro, humilhando e degradando. E é precisamente este elemento intrínseco de humilhação que proporciona a aplicabilidade do artigo 3 da Convenção [Europeia dos Direitos Humanos]."
Paulo Pinto de Albuquerque é o juiz que representa Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos desde 2011. A citação acima encontra-se na sua declaração de voto num caso que o tribunal apreciou em 2013, contra a Lituânia, no qual uma mulher vítima de violência doméstica acusava o seu país de não ter feito o que devia para a proteger. A Lituânia foi condenada, considerando o TEDH que tinha havido violação do artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, "proibição da tortura": "Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes."
Ao DN, o magistrado reitera a ideia expressa no comentário à decisão: "A violência doméstica e de género é um crime que atinge não apenas a integridade física e moral da vítima, mas também a sua dignidade como pessoa. O dolo [desígnio] do agressor é o de humilhar e degradar a vítima, tratá-la como um objeto à sua disposição. Nesta medida, este crime viola os bens jurídicos protegidos pelo artigo 3 da Convenção, que proíbe as condutas desumanas e degradantes."
Na sua declaração de voto, o magistrado defende que o tribunal decidiu bem, mas perdeu uma oportunidade de fazer doutrina sobre a aplicabilidade do artigo 3 aos casos de violência doméstica, ao invés da aplicação do artigo 8 - "Direito ao respeito pela vida privada e familiar" -, cuja violação tinha sido desde logo assumida pela Lituânia e que foi invocada pelo tribunal em vários casos anteriores de violência doméstica.
O facto de ter rejeitado liminarmente a aplicação do artigo 8 naquele caso quando em casos semelhantes - e alguns de maior gravidade, ou seja, nos quais a violência sofrida pelas vítimas foi maior - considerara ser esse o artigo violado conferia ao TEDH uma obrigação adicional de explicar a sua decisão, diz Pinto de Albuquerque.
Uma declaração de voto que, de acordo com um artigo publicado no The International Journal of Human Rights em 2014, da autoria de Ronagh McQuigg, jurista especialista em direitos humanos e professora na Universidade de Belfast, põe o dedo na ferida. McQuigg aponta a incoerência e inconsistência da jurisprudência do TEDH nesta matéria e manifesta a esperança de que o julgamento contra a Lituânia "marque o começo de uma jurisprudência mais coerente em relação à violência doméstica". Uma das razões para essa alteração, considera, seria a entrada em vigor - em 2014 - da Convenção do Conselho da Europa para a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra as Mulheres, mais conhecida como Convenção de Istambul.
A clarificação desejada não sucedeu até agora, porém. E o dissenso do juiz português parece também focar-se nos montantes indemnizatórios. Tendo a indemnização no caso contra a Lituânia sido fixada em apenas quatro mil euros - o que surge como pouco para compensar uma violação de tal gravidade e contrasta com indemnizações arbitradas pelo TEDH em casos também de violência doméstica nos quais considerou que o artigo da convenção violado era o 8 - "Direito ao respeito pela vida privada e familiar" -, Pinto de Albuquerque considera que, "em virtude da gravidade da culpa do agente, as indemnizações fixadas a nível nacional e internacional devem ser equiparadas às pagas pelas mais graves ofensas cometidas contra as pessoas". E prossegue: "Não comento o critério aplicado pelo TEDH, porque a tabela usada pelo tribunal é secreta. Tenho defendido em múltiplas ocasiões que esta tabela deve ser tornada pública, por uma questão essencial de transparência na administração da justiça europeia. A maioria dos meus colegas juízes é de opinião contrária."
Evitando também comentar decisões concretas dos tribunais portugueses, nomeadamente o caso Neto de Moura, o magistrado frisa que "os Estados têm a obrigação de tomar as medidas necessárias para prevenir, perseguir e punir este crime. Os tribunais nacionais devem punir este crime com penas suficientemente dissuasórias, que correspondam à gravidade da culpa do agente do crime. Em princípio, devem ser evitadas penas de prisão com a execução suspensa para agentes deste crime, segundo a jurisprudência do TEDH. Dito de outro modo, a lei penal portuguesa deve ser interpretada à luz dos valores da Convenção Europeia dos direitos humanos e da jurisprudência do tribunal de Estrasburgo".
Mas, precisamente, sendo Portugal um país no qual são reiteradas as suspensões de pena em casos de violência doméstica e de género, a desconsideração dos efeitos não físicos dos mesmos, a desvalorização do sofrimento das vítimas e até a sua culpabilização em decisões judiciais, assim como as certificações - desde logo nas análises retrospetivas de casos de homicídio ocorridos nesse contexto - de que o Estado falhou na sua proteção, não é bizarro o país nunca ter respondido no TEDH por isso?
Pinto de Albuquerque não tem obviamente uma resposta para esta perplexidade. Mas adianta que, "no que toca à situação portuguesa, o TEDH tem feito um esforço de promoção da condição feminina e de combate à discriminação das mulheres em Portugal, como se viu nos casos Pinto Morais e Soares de Melo [o primeiro respeitante a uma decisão do Supremo Tribunal Administrativo na qual se certificava que numa mulher de mais de 50 anos, por já ter tido filhos, o sexo já não era tão importante, e o segundo respeitando à institucionalização, com vista à adoção, dos sete filhos de uma mulher com poucos recursos]. Da minha parte, tenho falado a magistrados e advogados em múltiplas ações de formação do Centro de Estudos Judiciários e da Ordem dos Advogados, com vista a divulgar a jurisprudência de Estrasburgo e a sensibilizá-los para os valores da Convenção".
Nos termos do artigo 34 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, explica este membro do tribunal, "as queixas diante do TEDH devem ser apresentadas pelas vítimas ou por outras pessoas para o efeito legitimadas, como, por exemplo, os familiares da vítima morta".