SIRESP: "Estamos praticamente ao mesmo nível de fragilidades do que nos incêndios de 2017"

Numa altura em que o país vive uma situação de emergência com o covid-19, a rede de comunicações SIRESP terá um papel fundamental. Mas será que está em condições? O especialista e deputado do PSD Paulo Moniz diz que não.
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Paulo Moniz Integrou, na qualidade de especialista em comunicações de emergência e como presidente da Associação Empresarial de Comunicações de Portugal, o grupo de trabalho da Anacom (Autoridade Nacional de Comunicações), na sequência dos incêndios de 2017, para propor medidas que melhorassem a rede de comunicações de emergência, SIRESP.

Este engenheiro eletrotécnico e de computadores, mestre em Eletrónica e Automação Industrial pelo Instituto Superior Técnico, membro efetivo das comissões de Defesa Nacional e de Assuntos Europeus, é natural dos Açores, foi o cabeça-de-lista do PSD daquela região autónoma e é deputado na Assembleia da República. Até agora, fez a sua vida profissional fora da política. É membro conselheiro da Ordem dos Engenheiros e foi presidente do conselho diretivo da Região Açores da Ordem dos Engenheiros. Foi também presidente da direção da ACIST - Associação Empresarial de Comunicações de Portugal e docente convidado da Universidade dos Açores. Trabalhou na EDA-Eletricidade dos Açores, na Globaleda - Telecomunicações e Sistemas de Informação, SA. Foi consultor do Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros dos Açores na área de telecomunicações de emergência.

O país está a viver uma situação de emergência com o covid-19. Qual é a relevância das comunicações de emergência da rede SIRESP utilizadas pelas polícias e meios de socorro, neste cenário?
A partir do momento em que se entra em estado de emergência deve ser a rede SIRESP que, em última instância, será utilizada para coordenar todas as forças e esforços de auxílio de emergência e segurança do país.

Fez parte de um grupo de trabalho da Anacom, na sequência dos incêndios de 2017, para propor um conjunto de medidas para aumentar a resiliência das redes de comunicações. Das 27 recomendações apresentadas por esse grupo, em maio de 2018, quais eram as mais importantes e quais foram já realizadas?
Tanto quanto sei, nenhuma das medidas mais importantes foi implementada, efetivamente, no terreno. Por exemplo, a utilização de feixes hertzianos (que funcionam como as frequências de rádio) como alternativa aos cabo aéreos, ou para assegurar redundância na rede, que deveria ser ativada em caso de falha da rede por cabo. O relatório do grupo de trabalho da Anacom apelava também à melhoria de cobertura da orla marítima (operações de segurança e socorro na orla costeira) e também zero, nada feito.E destaco também algumas das 47 recomendações, propostas pelo grupo de trabalho do próprio Ministério da Administração Interna (MAI), que não saíram do papel: a aquisição, por parte do MAI, de equipamentos técnicos para medir no terreno os reais níveis de sinal/cobertura, de forma a validar os valores que lhe dizem os fornecedores; não foi operacionalizada a utilização das infraestruturas públicas de telecomunicações, ao invés de estar a pagar rendas altíssimas pelo aluguer à Altice; não foram adquiridos mais geradores, para espalhar pelo país (sediados no Algarve e eegiões autónomas); o reforço de cobertura na Madeira e Açores, zero feito.

E o que foi feito de mais relevante?
As melhorias que foram feitas na rede, logo a seguir aos incêndios de 2017, foram, essencialmente, a compra de 18 geradores a gasóleo móveis, a atualização do software da infraestrutura da rede SIRESP e a instalação de 451 antenas de ligação via satélite - embora o espaço contratado disponível no satélite só permita no máximo 60 estações em simultâneo das 470 existentes. O conjunto de 27 medidas do grupo da Anacom, destinado a melhorar a segurança e a integridade das redes e serviços de comunicações eletrónicas de utilização pública, apontava e impelia ainda para a elaboração, a aprovação e o estabelecimento de um novo quadro legal aplicável que as robusteça, incremente a sua fiabilidade e resiliência, em geral, e face a incêndios, em particular. Não se conhecem estas iniciativas. Este grupo de trabalho era bastante alargado e teve a participação dos principais players com intervenção em todas as fases abordadas. Importa realçar que as redes de comunicações de emergência e segurança são pela sua natureza distintas, com níveis de exigência e resiliência ainda superiores e muito mais criteriosos e apertados do que as redes públicas pela sua natureza, função e robustez. Na sequência das conclusões do grupo de trabalho, a Anacom propôs ao governo uma redução nas taxas, com o objetivo de favorecer a preferência dos operadores por ligações hertzianas (muito mais fiáveis como se demonstrou durante os incêndios), em detrimento dos cabos aéreos. Esta proposta permitiria aos operadores uma poupança imediata da ordem dos 3,5 milhões de euros por ano, constituindo um forte incentivo ao investimento nesta solução.

De quem é a responsabilidade do incumprimento dessas recomendações?
A responsabilidade de dar forma de lei e norma regulamentar cabe ao governo, em articulação com os diversos aspetos e condicionantes do setor.

Que impacto prático tem a não execução dessas medidas?
Estarmos com os níveis de robustez, fiabilidade e resiliência das redes de comunicações públicas (móveis e fixas) em circunstâncias semelhantes às que se encontravam aquando dos grandes incêndios de 2017. Dito de outra maneira, estamos praticamente ao mesmo nível de fragilidades do que nos incêndios de 2017.

Consegue dizer quanto já gastou o país, os contribuintes, com a rede SIRESP até agora?
Começo por dizer que se deve ter todo o cuidado e reserva quando se abordam estes aspetos de maior detalhe. Por isso, os valores concretos que utilizarei são aqueles que são públicos e foram já veiculadas por diversos órgãos de comunicação. Dito isto, o SIRESP começa a funcionar "na sua versão paga" a 3 de julho de 2006. O valor da proposta inicial foi de 580 milhões, apresentada pelo consórcio constituído por PT, Motorola, Esegur, Grupo Espírito Santo, Caixa Geral de Depósitos e Sociedade Lusa Nacional. Após renegociação liderada pelo então ministro da Administração Interna, António Costa, chegou-se ao valor de 485 milhões. Na altura, António Costa justificou a decisão com a garantia de que "o SIRESP assegura comunicações móveis de elevada qualidade a estes operadores, bem como a possibilidade de todos comunicarem entre si, o que é decisivo em termos operacionais e não é assegurado pelos atuais sistemas de rádio."

Acontece que fruto do abaixamento dos valores iniciais, que contemplava por exemplo uma solução redundante soberana e própria de feixes hertzianos, acabou por se comprometer determinantemente a fiabilidade e a robustez de funcionamento como veio a demonstrar-se em 2017 e com custos no final global muito mais elevados do que a aparente poupança negocial... Assim, julgo que não andaremos muito longe se dissermos que o sistema SIRESP, que termina o seu contrato com o Estado em junho de 2021, terá tido um custo global ao longo de 15 anos, entre 500 e 600 milhões de euros, se incluirmos também o encargo com a aquisição dos rádios em utilização. Apesar deste custo galáctico o seu desempenho e prestação foi o que todos infelizmente conhecemos. É caso para dizer que o que nasce torto tarde ou nunca se endireita...

Quanto custa fazer as melhorias propostas? Foi noticiada uma estimativa, do grupo de trabalho do MAI, de cerca de 25 milhões de euros de investimento (cabos de fibra ótica enterrados e/ou feixes hertzianos, sempre com redundância, por exemplo). O presidente da Altice, no entanto, veio dizer que esse valor "é totalmente surreal" e que a reestruturação em causa implica investir "mais de mil milhões de euros". Tendo em conta tão grande discrepância, quanto teremos de gastar mais com a SIRESP, afinal?
Os valores públicos, alguns dos quais verbalizados quer em sede de comissões parlamentares quer por diversos responsáveis, dizem que após a renegociação de 2015, entre o Estado e a SIRESP, SA, o valor pago à Altice (pelas comunicações de interligação de todas as estações da rede SIRESP entregues e a cargo desta operadora) é de cerca de três milhões de euros anualmente. Também de acordo com os dados disponíveis, o Estado paga ainda, anualmente, à Altice (pelos alugueres de espaços em abrigos de telecomunicações e torres, trabalhos de operação e supervisão técnica) e à Motorola (prestação de serviços de manutenção), um valor global da ordem dos 30 milhões de euros. Quer a transmissão (rede que liga as antenas ao centro de comando), que não teve uma solução própria e soberana (os tais feixes hertzianos) quer os locais e torres para instalação das antenas serem alugados a terceiros (Altice) são consequência de não se ter planeado e acautelado atempadamente - e assegurado pelo Estado como se impunha - estas óbvias condições indispensáveis à implementação da rede.

O valor que refere de 25 milhões seria o custo para construir a rede própria de feixes hertzianos e não ter de usar nem a fibra da Altice nem pagar a renda de antenas satélite à Altice.

A incúria e depois a pressa da implementação forçaram a solução mais "fácil" e ao casamento de conveniência com o aluguer à Altice destes recursos pelo período de 15 anos e com custos "irreversíveis" e dificilmente negociáveis como veio a provar-se.

Mas não se poderá renegociar em 2021, quando terminar o acordo da PPP entre o Estado e a SIRESP, SA?
Seria possível se nesta altura já estivesse concluído o plano do que se quer depois dessa data (1 de julho de 2021). Era preciso que estivessem já em marcha todas as alterações para acabar com a dependência exclusiva da Altice e da Motorola. Como nada está ainda definido, nem decidido, é inevitável que tudo continue como está, mesmo terminando o contrato da PPP. A certeza que desde já temos é que, face a este cenário inerte, o Estado já está condenado a estender e a prolongar os contratos com os fornecedores Altice e Motorola por prazo ainda não conhecido e naturalmente tendo em mente os valores que já aqui enunciei e que são públicos. É muito triste e traz grandes custos para o país. As recomendações do grupo de trabalho ficaram no papel. Decisões do governo, designadamente do MAI, nem se fala. Zero.

Com o que se pode contar neste momento e para este verão em termos de melhorias do sistema?
Pelos dados disponíveis, sensivelmente o mesmo do ano passado. Deixe-me só citar um dado caricato. Para as cerca de 470 estações de base de cobertura da rede SIRESP (vulgo antenas), foram adquiridos, no âmbito da polémica ação de melhorias da autonomia energética, 18 geradores móveis. O objetivo era acorrer a todo o território continental (menos as regiões autónomas Madeira e Açores que nem foram contempladas) a eventuais falhas de rede elétrica. Repare, para um parque global de 471 estações, foram adquiridos 18 geradores móveis...18... Nem quero imaginar o drama de ter que decidir, em caso de falhas, quais as estações, da totalidade das 471, a alimentar com os 18 geradores móveis, para já não falar em movimentar, por entre cenários de incêndios florestais, grupos geradores a gasóleo... Espero que esteja, do ponto de vista operacional, tudo muitíssimo bem definido e com clareza se quem toma a decisão de onde colocar os 18 grupos geradores em cenário de emergência e de falha de rede elétrica é a equipa do MAI que tutela a Autoridade de Proteção Civil ou uma equipa nomeada pelo Ministério das Finanças que constitui o conselho de administração da SIRESP, SA...

O que deve ser acautelado na negociação em 2021?
Que o país passe a ter uma rede de emergência e segurança capaz, em linha com os padrões europeus destas infraestruturas, e que, em última instância, é o garante da nossa segurança e suporte a todas as ações de emergência e catástrofe. Que, por exemplo, o Metro do Porto seja contemplado com a cobertura da rede de emergência como acontece em Lisboa - e está previsto contratualmente - e nunca foi implementado. Já imaginou a complexidade de uma ação de socorro no Metro do Porto onde não existe cobertura da rede de emergência e segurança SIRESP e naturalmente, como é habitual, as redes públicas imediatamente congestionam? É também urgente melhorar e aumentar a cobertura, muito deficitária, do SIRESP nos Açores e na Madeira assim como no interior dos edifícios. É preciso conferir fiabilidade, resiliência e redundância e fundamentalmente tornar esta rede de comunicações de emergência numa infraestrutura soberana e nunca dependente de terceiros, sejam eles quem forem.

Desde dezembro de 2019 que o Estado controla 100% das participações da SIRESP, que comprou à Altice e à Motorola, por sete milhões de euros. O que mudou na prática? Que vantagens tirou o Estado?
É meu entendimento que esse negócio foi motivado, fundamentalmente, pelo chumbo do Tribunal de Contas à intenção do MAI de proceder a um aditamento ao contrato com a SIRESP, SA. Este aditamento, recorde-se, pressupunha um investimento de 15,8 milhões de euros para pagar a redundância da rede, com a compra de antenas por satélite e geradores a gasóleo por parte da SIRESP, SA. Ou seja, os valores que a Altice e a Motorola disseram ser os necessários para as melhorias que efetuaram e que, no dizer do ministro Eduardo Cabrita, foram por iniciativa unilateral destes acionistas. Não posso deixar de recordar a resposta que o Ministério da Administração Interna deu ao Tribunal de Contas: "O parceiro privado, face à necessidade reconhecida quanto a dotar o sistema SIRESP de soluções de redundância, iniciou a implementação das soluções por iniciativa unilateral", lê-se. Por isso, do meu ponto de vista, a única coisa que mudou com a SIRESP, SA, na esfera do Estado, foi a nomeação do presidente da empresa e dos administradores para a comissão executiva.

Como membro efetivo da Comissão de Defesa Nacional do Parlamento, pode dizer-nos que impacto sentiu com a carta dos generais, ex-chefes dos ramos, ao Presidente da República?
A carta é mais um importante instrumento que contém um conjunto de informações que, não sendo surpresa na sua natureza, não deixam de ter grande importância para complementar o quadro atual. Permite ainda atualizar a caracterização dos ramos através da leitura de oficiais generais e ex-chefes militares com profundos conhecimentos da temática e contextos envolventes e que por esta razão também tecem pertinentes observações e preocupações que devem ser tidas em boa nota e conta.

Tinham conhecimento daquelas situações? Já as conferiram com os chefes dos ramos no ativo?
As dificuldades das Forças Armadas ao nível dos recursos materiais e humanos são conhecidas. Diferente é a continuada e acelerada divergência do executivo de António Costa das orientações da reforma Defesa 2020, acentuando o desinvestimento nos últimos anos e que, para além das dificuldades e situações referidas nesta missiva, já tinha tido um alerta importante, há pouco tempo, consubstanciado nas declarações do senhor almirante chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas, Silva Ribeiro, sobre a escassez de pessoal militar em algumas funções e postos.

Da parte da Marinha, pelo menos, são públicos os problemas com a manutenção dos navios e a idade avançada de vários deles. Que leitura faz da situação?
É mais uma consequência de anos de desinvestimento e obsolescência de equipamentos e meios navais (acontece também nos restantes ramos), que se traduzem em custos muito elevados de manutenção e modernização e muitas vezes só devidamente quantificáveis aquando de profundas, demoradas e minuciosas inspeções e, não menos vezes, incompatíveis com algumas estimativas orçamentais habituais e de "gabinete".

A Marinha anunciou recentemente o abate do único navio reabastecedor, o Bérrio. O país pode ficar sem o único navio com estas características?
Não, de todo! Um navio destas características é absolutamente indispensável à frota em termos da sua operacionalidade e capacidade de atuação em diversos teatros de operações e responder aos desafios de participação das Forças Armadas com os serviços de proteção civil. A Marinha e o país não podem prescindir de uma unidade naval que cumpra as funções abastecedores e de capacidade logística como o Bérrio. O exemplo que deu do excelente desempenho e da importantíssima colaboração das forças armadas, em que o navio Bérrio também foi empenhado, foi determinante na recuperação das condições de normalidade no pós furacão Lorenzo, em outubro último, na ilha das Flores.

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