A irresponsabilidade da Associação Sindical dos Juízes
Desde que o caso Neto de Moura foi conhecido, em 2017, e que a atenção da comunidade incidiu sobre a forma como os crimes de violência doméstica e de violência de género em geral são tratados pelos tribunais portugueses, a Associação Sindical de Juízes está em pé de guerra, quer denunciando aquilo que qualifica de "linchamento" do juiz quer alegando existir uma conspiração contra a judicatura.
Ainda assim, e porque o escândalo público ante as decisões relativas a violência de género subsiste, a ASJP anunciou, num vídeo criado para o Dia Internacional da Mulher, que o seu próximo congresso vai ser dedicado ao tema - não se percebendo bem qual, se o da violência doméstica se o das críticas de que os juízes são alvo por causa dela - e que, como o seu presidente já adiantara em artigo no Público, vai levar a cabo um estudo (e participar noutro) visando avaliar a forma como os tribunais julgam esse tipo de crime.
Porém, e ao mesmo tempo, a ASJP não se cansa, pela voz do seu dirigente, o desembargador Manuel Soares, de apresentar explicações e justificações para aquilo que diz negar saber. Se por um lado o sindicalista diz que não se sabe se os tribunais têm um viés de género, se desvalorizam a violência sobre as mulheres e se aplicam demasiado a suspensão da pena nestes casos, e portanto que não se pode partir desse princípio - daí serem necessários os estudos -, por outro continua a certificar que a "culpa" das penas suspensas na violência doméstica é "do poder político", quer pela moldura penal (dois a cinco anos caso não se trate da forma agravada do crime) quer porque ao estender, em 2007, de três para cinco anos a duração das penas que podem ser suspensas "obriga" os juízes a não aplicar prisão efetiva.
Nega saber se a suspensão da pena é demasiado utilizada no crime de violência doméstica mas diz que tem de o ser por imposição da lei. Caso estivéssemos perante a fundamentação de uma sentença, chamar-se-ia a isto uma contradição insanável. Mas o problema da argumentação de Manuel Soares e da ASJP não se limita à inconsistência.
Na semana passada, o magistrado não só afirmou que, de acordo com um levantamento levado a cabo pela ASJP, Portugal e França são os únicos países europeus onde se pode suspender uma pena de prisão até cinco anos - o que, como o DN noticiou, não é correto: existem pelo menos mais dois países com o mesmo regime e um, a Irlanda, onde não há sequer limite para a duração das penas que podem ser suspensas -, como quis provar, através da apresentação de alguns dados sobre número de reclusos, que a possibilidade de suspender penas até cinco anos fez descer muito a população das prisões, o que igualmente não se verificou. Portugal permanece um dos países da Europa onde a taxa de prisioneiros versus população é mais alta, e é mesmo aquele em que a duração média das penas de reclusão é mais elevada. E se não é fácil encontrar dados que permitam comparar a aplicação de penas suspensas entre países da Europa, um relatório de 2014 do Instituto Europeu para a Prevenção e Controlo do Crime mostra que em 2010 a percentagem de penas suspensas em Portugal foi de 18,5 do total de condenações, colocando o país abaixo da média europeia.
Estas afirmações sem sustentação de Manuel Soares são tanto mais graves quando, devido à sua qualidade de magistrado de tribunal superior e de porta-voz da judicatura, se lhe aplica a presunção de que tenha fundamento sólido para o que diz. Tanto assim é que os media em geral as reproduziram como verdade revelada, sem aspas e nem sequer pondo a hipótese de se tratar de "uma interpretação", quanto mais de um erro.
O afã de imputar ao legislador toda a responsabilidade daquilo que enfurece a comunidade inclui, como já referido, a afirmação do sindicalista de que, no crime de violência doméstica, "fora os casos excecionais em que a vítima morre ou é gravemente ferida, o tribunal está sempre obrigado a suspender a pena quando se verificam os respetivos pressupostos". Para concluir: "Os políticos definem o quadro legal e os juízes cumprem. Se quiserem os tribunais também podem suspender penas até dez anos de prisão ou mais. Mas depois têm de se responsabilizar."
Se qualquer pessoa de bom senso sabe que a possibilidade de suspender penas não implica obrigação de o fazer, um juiz e desembargador tem obrigação de saber muito mais: que os próprios tribunais têm a capacidade de determinar jurisprudencialmente orientações nesta matéria. Que há crimes em relação aos quais a tendência é só admitir a pena suspensa em circunstâncias excecionais, em nome daquilo a que em juridiquês se chama "as exigências da prevenção geral", e que podemos denominar simplificadamente de "pedagogia pública". Para tal é necessário, claro, que os tribunais considerem que o crime em causa é muito grave e combatê-lo uma prioridade.
No próprio tribunal onde Soares trabalha, a Relação do Porto, isso está claramente dito num acórdão de 2015 que cita a jurisprudência do Supremo. Leiamos: "A suspensão da execução da prisão nos casos de tráfico de estupefacientes em que não se verifiquem razões muito ponderosas seria atentatória da necessidade estratégica nacional e internacional de combate a esse tipo de crime, faria desacreditar as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e não serviria os imperativos de prevenção geral."
Quem assim fala são os desembargadores Eduarda Lobo e Castela Rio, ao decidirem dar provimento ao recurso do MP e aplicar pena de prisão efetiva a um homem que, apanhado com sete gramas de haxixe nas axilas e 25 euros nos bolsos, fora condenado, em primeira instância, pelo crime de tráfico de de menor gravidade (com pena de um a cinco anos), a dois anos de pena suspensa. Ficamos assim a saber - se já o não soubéssemos - que os tribunais portugueses têm critérios estranhos. Um crime de dano "abstrato" (o tráfico de drogas é penalizado pelo mal que as substâncias poderão fazer) surge-lhes, em princípio, muito mais gravoso, merecendo-lhes maior severidade sistemática, do que um crime sobre pessoas de dano direto e verificado como a violência doméstica (ou a violação). E que a ASJP achará que o princípio constitucionalmente consagrado da irresponsabilidade dos juízes abrange o discurso corporativo.