Internacional
22 maio 2022 às 22h38

"Em França o presidente detém todos os poderes. O regime português é muito mais democrático"

Em Portugal para a feira de arte de Lisboa, Jack Lang, o antigo ministro da Cultura e da Educação Nacional de França e presidente do Instituto do Mundo Árabe falou ao DN sobre a reeleição de Emmanuel Macron, o declínio do seu Partido Socialista, mas também da paixão pela cultura portuguesa e do "perigo" das plataformas de streaming.

Filipe Gil e Helena Tecedeiro

Era ministro da Cultura de François Mitterrand, um grande estadista, quando o Muro de Berlim caiu. Hoje, com o conflito na Ucrânia, a Europa tem uma guerra às suas portas. Emmanuel Macron, que acaba de ser reeleito presidente, é o líder que a França e a Europa precisam neste momento?
É um homem corajoso, visionário, enérgico. É também um militante da Europa. Um militante convicto e apaixonado. Isso deixa-me feliz. Eu sou um militante da Europa desde sempre. E ele é um europeísta de coração, de alma e de atos. Isso, evidentemente, é muito bom para França. E para a Europa. Mas há outras personalidades europeístas na Europa. A começar pelo primeiro-ministro de Portugal, que é também ele um homem muito empenhado nos valores da Europa, como o foi muitas vezes Portugal. Com todos os amigos que dirigiram este país. Estou a pensar em Mários Soares e em muitos outros. Mário Soares era um europeu inflamado.

Élisabeth Borne acaba de ser nomeada primeira-ministra de França. Conhece-a bem...
Conheci-a quando fui ministro da Educação Nacional. Da primeira vez, em 1992. E tive a sorte de a ter entre os meus colaboradores mais próximos. Ela estava encarregue de todo o equipamento universitário. O que na altura era um trabalho considerável porque os governos não tinham antecipado a demografia universitária e o meu antecessor, Lionel Jospin, tinha imaginado um plano chamado Université 2000, de construção, de renovação. Élisabeth Borne era a coluna vertebral desse plano. Nessa altura, tive oportunidade de apreciar as suas qualidades de ação, a sua energia. Gosto de pessoas sérias, não gosto de amadores. Ela é uma verdadeira profissional. Quando cumpre uma tarefa, fá-lo com solidez. O resto é política, e eu não sei que política vai ser levada a cabo. Temos uma ideia porque o presidente traçou como prioridade temas que considero essenciais: educação, construção europeia, naturalmente, mas também o emprego e o combate às desigualdades sociais. Penso que Borne é uma ótima escolha.

Élisabeth Borne é apenas a segunda mulher primeira-ministra, depois de Edith Cresson. Acha que depois dos fracassos de Ségolène Royal e de Marine Le Pen na segunda volta, França está pronta para ter uma mulher presidente?
Naturalmente que sim. Hoje, sim. E cada fracasso deve ser interpretado, não está apenas ligado ao machismo. Tem a ver com o projeto político. A senhora Le Pen encarna uma ideologia de que os franceses não querem. Felizmente a França - como Portugal - é um país anti-fascista. Que não quer uma fascista na liderança do Estado. E não é por ser mulher. Quanto à Ségolène Royal, era brilhante, talentosa. Fui porta-voz dela. Mas não gerou confiança. Mudava demasiadas vezes de linha frente a um Nicolas Sarkozy empenhado em força. Não tinha pensado nisto antes, mas também fui porta-voz de Édith Cresson. Não era fácil, na altura na sociedade, e por vezes também dentro do governo, havia um verdadeiro machismo. Parece absurdo dizer isto, mas se calhar ela foi primeira-ministra cedo demais. Mas não podemos julgar em função apenas do género. Muito depende das qualidades da pessoa. Dizer que uma mulher é excelente por ser mulher, é uma forma de a minimizar, de rebaixar as mulheres.

Dizia há pouco que os franceses não querem uma fascista na presidência, falando da senhora Le Pen. Mas o que vimos nas presidenciais foi a subida dos extremos - esquerda e direita. Como o explica?
Eu acho que os franceses são infelizes por não terem uma verdadeira pluralidade de escolhas. Como acontece aqui em Portugal. Vocês têm um verdadeiro Partido Socialista, têm também um verdadeiro partido de direita. Há escolha, há programas. Em França o que acontece é que nos últimos anos os partidos políticos - muito por culpa própria - entraram em declínio. O Partido Comunista já há muito tempo. O Partido Socialista também. A direita tradicional também. E o presidente Macron contribuiu para tal. A sua vontade de criar um partido de centro - nem esquerda, nem direita -- veio criar disrupção. Para a democracia, não é feliz que hoje só possamos escolher entre um presidente democrata e republicano e a extrema-direita. E as pessoas não querem a extrema-direita. No futuro, é preciso que os grandes partidos tradicionais se voltem a erguer. Como? Não sei. É preciso que surjam líderes, que tragam uma verdadeira filosofia, uma visão. Não é fácil. Emmanuel Macron é um homem brilhante, extremamente inteligente e que tem a arte de conceber uma política que conquista à direita e à esquerda. Seria preciso líderes de grande envergadura. É difícil. Mas talvez surjam na nova geração.

Em junho há legislativas em França. Como vê o declínio do seu Partido Socialista e a aliança da esquerda em torno de Jean-Luc Mélenchon?
O Partido Socialista foi-se desgastando, foi encolhendo. Há muito tempo, não começou ontem. Penso que vem desde o fracasso de Lionel Jospin nas presidenciais de 2002. Foi o início do fim. Porque depois o PS, por falta de liderança, entregou-se a lutas fratricidas, a arranjinhos. O problema é que quando um partido como o PS sacrifica as ideias à tática, assina a sua sentença de morte. Por exemplo, os socialistas opuseram-se à uma revisão da Constituição que na minha opinião seria boa e de acordo com as nossas ideias. Mas, por anti-sarkozysmo, votaram contra. Perderam a alma.

E juntarem-se a esta aliança das esquerdas, é perder um pouco mais da alma?
Isso é outra coisa. Com o modo de escrutínio que temos - e que é uma catástrofe em si -, não é anormal, seria mesmo normal, que os partidos de esquerda, ou os partidos de direitos, procurem fazer um acordo eleitoral à primeira volta. Hoje, um candidato só tem hipóteses de estar presente na segunda volta nas legislativas se conseguir... a lei diz 12,5% dos votos, mas a verdade é que há muita abstenção. E por isso são precisos na prática 20% ou 25% para passar. Se não houver uma união entre os partidos de esquerda, pouquíssimos terão hipótese de passar. Por isso, um acordo eleitoral, sim. Eu conheço bem Mélenchon. Ele foi ministro do Ensino Profissional quando eu fui ministro da Educação em 2000. É um homem muito inteligente, cheio de qualidades. Mas por vezes deixa-se levar por um ego gigantesco. E se ele me tivesse pedido conselho - e nunca o iria seguir -, eu teria dito "Jean-Luc, faz-te modesto, se queres ser primeiro-ministro, aceita ideias vindas dos outros, não imponhas o teu programa". Mas nada a fazer. Dito isto, no sistema atual, quando o presidente está eleito, mesmo se houver muita gente que votou nele não pelo seu programa mas contra a abominável senhora Le Pen, no fim de contas a razão vence. E as pessoas vão querer escolher uma maioria favorável ao presidente. Infelizmente. Porque eu acho muito bem que haja na Assembleia um contra-poder.

Acha que a coabitação pode ser positiva?
Coabitação ou um grande grupo de oposição. Porque o sistema francês é uma catástrofe. E não estou a falar do senhor Macron. Há muito que luto contra ele. É um sistema que é contrário - vou dizer-lhe francamente - à Declaração dos Direitos Humanos de 1789. Esta é uma declaração admirável, luminosa, não mudaria uma vírgula. E no artigo 16 diz que um país, uma sociedade, que não estabeleça a proteção dos direitos e não estabeleça a separação dos poderes não tem constituição. Em todos os sentidos da palavra. E a separação dos poderes não existe. Quem é eleito presidente detém todos os poderes. Há coletividades locais, certo, mas o poder central está todo nas mãos de uma pessoa. Se eu estivesse no lugar de Macron iria contra a corrente. E já lhe disse: "Seja o homem que devolveu a França a separação dos poderes". Imagine uma reforma constitucional, política, democrática, que permitisse estabelecer verdadeiros contra-poderes. Talvez ele o faça. No lugar dele, eu faria.

Como olha para a política portuguesa?
Tenho de dizer que sou um admirador da política portuguesa. Vocês têm uma democracia muito viva e a extrema-direita é marginal. O vosso primeiro-ministro faz um trabalho de grande qualidade. Portugal é um exemplo para nós. E a esquerda portuguesa está muito viva, claro que há questões mas é normal em política.

Acredita que o sistema político português, parlamentarista, é melhor que o sistema presidencialista francês para uma real separação de poderes.
Sim, prefiro o sistema parlamentarista. Esse sistema existiu em França, mas foi abatido por De Gaulle em 1958. E essa presidencialização foi sempre crescendo e prosperando. O regime português é muito mais democrático. Não é o único. A Alemanha é muito mais democrática também. Com partidos fortes.

Existe interesse em França para mudar para um sistema político parlamentarista?
Os cidadãos em França hoje sentem um certo desconforto por não disporem de verdadeiras alternativas. Era extraordinário que o presidente Macron dissesse que ia mudar as coisas e fazer um new deal da democracia. Eu apoiaria a fundo.

Veio a Portugal para a feira de artes de Lisboa (ARCO) . Está interessado em algum artista em particular. Algumas compras em vista?
Vim de espírito livre. Sem ideias feitas. Portugal é um país vivo, criativo. Tive a sorte de conhecer muitos artistas portugueses com os quais trabalhei em momentos diferentes da minha vida. Venho com o espírito aberto. Sou curioso por feitio. Gosto de Portugal, gosto da cultura portuguesa. Tive a sorte de conhecer muitos escritores, cineastas, artistas portugueses.

Estamos em plena Saison Portugal-França. Acompanha a criação cultural portuguesa?
A Saison é uma ótima ideia. Há muitas iniciativas a decorrer nos dois sentidos. Ainda ontem à noite encontrei o presidente da fundação Gulbenkian e ele explicou-me que estão a organizar uma grande exposição em Paris, no Hotel de la Marine. Mas há muitas iniciativas. E os artistas portugueses estão presentes na vida cultural francesa. Por exemplo, fico muito feliz que Tiago Rodrigues seja o futuro diretor do Festival de Avignon. Vem europeizar o festival, dar-lhe dimensão internacional.

Algum grande nome da cultura portuguesa que admire em particular?
Não há um, há tantos [risos]. É sempre difícil escolher. Mas se calhar destacava Manoel de Oliveira. Ele pode não ser muito conhecido das pessoas no geral mas era um cineasta de aventura intelectual, de pesquisa. E por isso enfrentou muitas vezes dificuldades. Eu fico feliz por, enquanto ministro, ter feito tudo para ele poder concretizar os seus projetos até à sua morte. E morreu aos 106 anos! Tornou-se meu amigo. Era uma pessoa de grande nobreza. E há o fado. Eu não sou especialista mas o fado comove-me. Tive a honra de condecorar a grande Amália Rodrigues em Paris. E de a voltar a ver duas ou três vezes. Entre os escritores, Saramago, claro. E Pessoa. Mas Pessoa é um monumento. Apesar da época, a sua obra conta um pouco o nosso mundo, uma forma de desesperança que é muito atual. Depois há os escritores de língua portuguesa. Jorge Amado, que na minha opinião devia ter sido Nobel da Literatura. Adoro. Um homem de um humanismo incrível. E muitos, muitos outros. Tive a sorte de conhecer Vieira da Silva. Era tão maravilhosa e bela. Tão bela quanto as suas obras. E também nomes como Joana Vasconcelos, Nadir Afonso, Maria de Medeiros, Álvaro Siza, Souto de Moura.

Em Portugal a cultura francesa nas últimas décadas foi substituída pela anglo saxónica. Com é que a cultura francesa pode reganhar a importância que teve outrora?
Não tenho nada contra os escritores e cineastas ingleses e norte-americanos. Eles próprios são vítimas da mercantilização do sistema. Sou sim contra a forma de facilitar a vida aos grupos culturais financeiros mais poderosos. Estou francamente preocupado com a influência crescente de plataformas como a Netflix, Amazon, Disney Plus, entre outras. E face a essa influência acho que os Estados são muito passivos. Por exemplo, o governo francês regozijou-se porque a Netflix doou 20 milhões de euros para a produção cinematográfica em França. Em primeiro lugar, esse valor são peanuts, em segundo, isso pode alterar o equilíbrio de poder na cultura. As plataformas são muito inteligentes, e por vezes conseguem fazer coisas que o cinema não consegue. Dou um exemplo, em França a plataforma Disney está a transmitir um filme chamado Oussekine, sobre um escândalo que aconteceu em 1986 durante o governo de Mitterrand, quando um estudante franco-argelino, Malik Oussekine, de 22 anos, foi espancado até à morte pela polícia, o que provocou grande emoção e manifestações na sociedade francesa da altura. Não foi o cinema ou a televisão francesa a fazer esse filme, foi uma plataforma! Para mim as plataformas são mais perigosas do que o mundo de Hollywood, que sempre combati. Infelizmente, os países europeus são passivos em relação a isso, apesar de que em Bruxelas, o comissário Thierry Breton tem pressionado as plataformas digitais para pagarem taxas e respeitarem as regras europeias. Mas o cinema em sala, por exemplo, continua a perder espectadores, e para mim o cinema é para ver em grandes salas. Não tenho nada contra a cultura anglo-saxónica, mas sou contra todas as formas de imperialismo, seja francês, russo ou chinês, e contra todas as formas de concentração económica ou culturais. É a morte da liberdade de criação.

Mas as plataformas digitais não são um bom meio para dar a conhecer a produção francesa ao mundo?
Sim, é uma boa questão, mas é o cinismo, a duplicidade e malícia, e também a inteligência dessas plataformas que me preocupa. Eles são muito fortes. Fazem o que querem e vão contra as regras de difusão dos filmes. Claro que dão a conhecer os talentos franceses, ou coreanos, por exemplo. Mas podem, a termo, destruir todo o sistema de produção e criação de um país. Até hoje, o Festival de Cannes recusou-se a aceitar para competição os filmes produzidos pela Netflix, mas não sei até quando o vão conseguir fazer... Creio que face a essa dominação da cultura, não digo anglo-saxónica, mas sim de cultura assética, a cultura e a língua deve tornar-se mais ativas. O ex-presidente do Senegal, Léopold Sédar Senghor, era um apaixonado pela língua francesa e escreveu que a língua francesa isolada não resiste, e por isso há que fazer uma aliança das línguas de expressão latina, como espanhol e português, etc. E quando se tem em conta os povos da América Latina, e das antigas colónias africanas, há um número considerável de pessoas que falam línguas de expressão latinas que podem rivalizar com o mundo chinês ou anglo-saxónico. Não é fazer uma guerra mas ter consciência que pertencemos a uma era linguista e cultura ao mesmo tempo múltipla mas com raízes comuns. Quando fui ministro da Educação reuni por um par de dias todos os ministros do Ensino Superior de todos os países de língua latina. Foi um projeto extraordinário. E penso, seriamente, que seria uma boa ideia criar um instituto do mundo latino, que pudesse elevar a consciência dessa comunidade cultural e mundial. Não sou especialista, mas o mundo da lusofonia é extraordinário com os seus cantores e escritores.

Já falámos sobre a literatura portuguesa, falemos agora da francesa, quem recomenda da nova geração de escritores franceses?
Respondo, mas sublinho que não gosto de ser júri. Durante muitos anos da minha vida fui professor de Direito na universidade e aquilo que mais detestava era ter de dar notas ou fazer parte de júris. Contudo, posso dizer que gosto muito da Leila Slimani, que vive aqui em Portugal. O Instituto do Mundo Árabe teve um projeto com ela em Nova Iorque. É uma escritora brilhante com ideias muito universais. Gosto muito também da escritora Annie Ernaux, não sei se é conhecida em Portugal mas é uma grande senhora da literatura francesa contemporânea. E também o vencedor do prémio Goncourt 2021, o senegalês Mohamed MBougar Sarr. É muito corajoso, tem uma escrita muito direta. O que é interessante é que a francofonia, tal como a lusofonia, é multicolor de culturas, de estilos e de diversidades.

É também autor de muitos livros. Está atualmente a trabalhar em algum projeto?
Não, tenho inúmeras ideias na cabeça mas de momento não estou a escrever nenhum livro. Mas tenho agora um projeto que estou a desenvolver com o autor de banda desenhada, Hervé Bourhis, sobre a minha vida política.

Já mencionou o Instituto de Mundo Árabe, a que preside. Qual tem sido a sua importância para a integração das minorias árabes, que é um desafio para a França?
Temos muitos projetos, mas há um projeto inovador sobre a expressão da diversidade de género no mundo árabe. É o primeiro projeto de um instituto cultural ligado ao mundo árabe que dá visibilidade à expressão dos jovens árabes LGBT+. E tivemos três grandes exposições sobre as três grandes religiões monoteístas. Infelizmente, não consigo concretizar todas as ideias que vou tendo, sou rápido mas não consigo fazer tudo. Mas gostava de fazer uma grande exposição sobre a arabidade de França, Itália, Espanha, Sicília, Portugal, etc. Não sou um especialista em línguas, mas o mundo árabe irrigou a língua portuguesa, por exemplo e também na francesa.

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