"Manter a audiência e manter o eleitorado para Trump são a mesma coisa"
Até à posse de Joe Biden, a 20 de janeiro de 2021, Donald Trump mantém os poderes como presidente dos EUA e fará pleno uso deles para melhorar a sua posição numa saída dramática da Casa Branca. Segundo Daniela Melo, cientista política luso-americana que leciona na Universidade de Boston, o principal interesse do presidente nesta fase é garantir que continua a ser a principal figura do partido republicano e que retirará benefícios financeiros após a derrota eleitoral - que nunca admitirá. O Colégio Eleitoral só elegerá Joe Biden oficialmente a 14 de dezembro e, até lá, haverá tentativas de influenciar esses eleitores, para que ignorem os resultados do voto popular e se tornem faithless electors.
Enquanto isso, e perante os processos legais que caem por terra, o presidente continua no poder. Nas últimas semanas, procedeu a duas demissões de relevo, despedindo o chefe do Pentágono, Mark Esper, e o diretor da agência de cibersegurança e segurança de infraestrutura, Christopher Krebs. Ponderou, segundo uma notícia do The New York Times, lançar um ataque armado sobre a principal central nuclear do Irão nas próximas semanas. E abriu também o processo de venda de licenças para exploração de petróleo e gás no Refúgio Nacional da Vida Selvagem do Ártico, no Alasca, que deverão entrar em vigor mesmo às portas da tomada de posse de Biden.p>
É uma sucessão de decisões que não são comuns na "presidência pato manco" (lame duck), que designa o período entre as eleições e a posse do novo presidente. Mas são, explica Daniela Melo, indicadoras da estratégia de Trump num momento em que a saída da Casa Branca é inevitável.
O que se espera que o presidente Trump faça nos próximos dois meses em que mantém plenos poderes?
Ele quer sair alegando que continua a ser um vencedor e que cumpriu as promessas de campanha. Pode haver uma tentativa nos próximos meses de fazer acordos comerciais ou retirar tropas de lugares como o Afeganistão, porque vê isso como promessas. Também nos indica que ele quer continuar a ser um player no partido republicano.
Porque é que se pode voltar a candidatar em 2024?
Nada o impede de voltar a candidatar-se. Ele tem dois interesses. O primeiro é livrar-se dos potenciais processos em tribunal que venham a seguir. O segundo é conseguir beneficiar-se financeiramente. O que tenho visto na última semana é que ele quer ficar à frente do Partido Republicano, quer ser a presença mais forte e tem muita legitimidade para tal, porque tem o eleitorado com ele.
São essas as indicações aparentes?
Esta promessa de ir para as redes sociais, de querer começar um canal de televisão alternativo, tudo isso dá imenso dinheiro. Ele precisa de injetar muito capital nas próprias empresas, sabemos isso. Precisa de uma injeção de capital, de onde é que ela virá? Ele tem que se manter uma pessoa de interesse público. A verdade é que manter uma audiência e manter o eleitorado para ele são a mesma coisa. Ele precisa dessa audiência para se beneficiar financeiramente.
A recusa em conceder a derrota é então mais uma questão financeira do que de ego, como comentadores têm apontado?
Também é ego, obviamente, mas aqui estamos a falar de sobrevivência financeira e sobrevivência legal. Isso não se pode dissociar do ego. Ele não vai admitir que perdeu. Penso que não vai fazer um discurso de concessão. Mesmo a troca de pessoas que estão em posições de poder, como o Pentágono e a comissão de segurança das eleições, são tentativas de manobra. Até acredito que o presidente queira tentar, com o possível e o impossível, reviravolta nas eleições. Vimos o que se passou no Michigan, uma manobra a favor de Trump que não deu em nada. Foi um teste ao que Trump tem tentado pedir às legislaturas em termos de ajuda.
Por um lado que não certifiquem resultados e por outro que escolham eleitores favoráveis a Trump, os >faithless electors.
Exato. O facto de ter havido dois republicanos num conselho de quatro que disseram que não iam certificar os resultados de um distrito é mesmo problemático. Mas também vimos imediatamente a reação e que os democratas não vão, de maneira nenhuma, aceitar este tipo de jogadas.
Qual é o propósito, então?
Serve para a sua narrativa pessoal, de que precisará a seguir. Seja por questões de ego, financeiras ou legais, Trump precisa de sair da presidência a dizer que é um vencedor, ganhou e foi roubado. Que a sua voz continua a ser aquela que influencia o eleitorado republicano.
Essa proeminência servirá também para dificultar uma investigação subsequente?
Sim e não. Se o Senado se mantiver nas mãos dos republicanos, torna-se mais difícil haver investigações internas. Numa investigação de um estado, o congresso não tem poder nenhum sobre os casos que um procurador-geral de Nova Iorque ou outro quer levar a tribunal. Mas parece-me claro que Trump pretende contar com todo o apoio político que puder, para poder influenciar e conseguir alavancar, Sair numa posição forte é importante para ele, em todos os aspetos.
Os despedimentos que temos visto são uma questão de vingança ou de estratégia?
Sei que passou muito a ideia de que isto é vingança e que ele estava à espera do momento certo para despedir. Não acho que é vingança, acho que é estratégia. Vimos isso com a questão de Mark Esper no Pentágono. O presidente ponderou muito seriamente a ideia de atacar o Irão e claramente viu este indivíduo como um empecilho a esse tipo de abordagem. É óbvio que, com Esper, não foi uma questão de vingança, foi de remover o obstáculo a uma estratégia que o presidente tinha em mente para ter um novo posicionamento forte contra o Irão. Se ele tivesse avançado, estaríamos a falar de uma nova desestabilização do Médio Oriente, que podia dar guerra aberta.
Porque faria sentido para ele? Para mostrar à base que destruiu o poderio nuclear do Irão?Seria cumprir uma promessa. Destruir o poderio nuclear do Irão também fecharia as portas para que Biden não pudesse retomar o protocolo de desnuclearização, que ficou em águas de bacalhau. Todos esperam que Biden queira retomar, para tentar voltar a normalizar a situação com o Irão no que diz respeito a armas nucleares. Se tivesse havido um ataque na principal central do Irão, terminava essa questão mas iria abrir muitos novos problemas. Isso acabou por ser o argumento que persuadiu Trump a não avançar. Teve de ser persuadido pelos generais e por Mike Pompeo, aparentemente.
O que é o presidente ainda pode querer fazer nos próximos dois meses que implique mais despedimentos e remoção de obstáculos?
Em relação a despedimentos, podemos continuar a esperar isso. Não fará grande diferença na maior parte dos casos, porque Biden poderá escolher as pessoas que quer para esse tipo de posições e mudar a estratégia dos departamentos. Em termos institucionais, não há muito mais que Trump possa fazer. Vai continuar a alegar fraude eleitoral. Estamos a ver que tenta aproveitar todas as oportunidades possíveis, por mais improváveis que sejam, para evitar que os resultados das eleições sejam certificados. Mas tudo indica que ele não vai conseguir mudar o voto eleitoral.
Porque os processos legais estão a falhar em tribunal?
Sim. E vemos claras indicações de que a campanha de Trump não vai conseguir persuadir as legislaturas a nível local a enveredarem por esse caminho, que seria muito problemático. Teríamos conflito nas ruas de certeza absoluta.
No entanto, este compasso de espera está a prejudicar a transição de Joe Biden. Qual a gravidade deste atraso?
Sem dúvida nenhuma. Tem-se falado muito da segurança nacional e a importância da equipa do Biden estar preparada para perceber qual é a situação através dos relatórios de inteligência. É uma questão delicada, mas o Biden tem uma equipa forte em política externa. Apesar de ser muito importante receber os relatórios de inteligência diários, Biden já traz muita experiência. Não é um presidente que chega sem experiência, sem perceber como funciona a política externa, quem são os nossos aliados, quais são os temas. Ele já traz isso e é de um valor enorme neste tipo de transição, sobretudo quando o presidente se recusa a abrir os gabinetes, a dar acesso aos fundos para a equipa de transição, e a partilhar informação.
A recusa poderá durar até ao fim?
Eu imagino que, quando a poeira assentar, sobretudo a partir do dia 14 de dezembro, talvez já tenhamos mais pressão sobre a campanha de Trump, mesmo do lado do partido republicano, para que ele aceite e inicie a transição. Como Trump vai contra a corrente e gosta de marcar a sua presidência pela exceção, também podemos ter aqui um caso de exceção completa em que só a partir do meio-dia de 20 de janeiro é que Biden recebe esse tipo de informação.
Há alguma possibilidade de potências estrangeiras tentarem aproveitar-se desta espécie de intervalo no poder?
Claramente é esse o medo da comunidade de inteligência. É o grande receio em termos de segurança nacional. O facto de haver tanta desestabilização durante este período, de estarmos tão consumidos com estas questões domésticas, quer dizer que estamos distraídos para as questões internacionais. Isso pode levar a uma janela de oportunidade para um novo tipo de ataque, por exemplo em cibersegurança. A comunidade de inteligência está alerta e aprendeu imenso nos últimos anos, a questão é se o presidente Trump está numa posição para prestar atenção a esse tipo de assuntos e reagir de maneira concreta.
O que se espera que Biden vá trazer ao nível de relações internacionais que modifique o statu quo neste momento?
Biden vai tentar modificar tudo. Vai tentar renovar as alianças, sobretudo a aliança transatlântica e todos os velhos aliados dos Estados Unidos. Muito claramente ele tem falado sobre refocar os valores da política externa americana na democracia e nos direitos humanos, portanto, um retorno a dois temas que têm sido importantes nas últimas décadas. Para fazer tudo isso, ele vai ter de fortalecer o Departamento de Estado, que foi completamente esventrado nos últimos quatro anos.
De que forma?
Um dos primeiros grandes choques ao sistema foi no Departamento de Estado, onde tivemos imensas pessoas de carreira que decidiram sair quando a administração Trump entrou, logo no primeiro ano. Perdemos muitas pessoas que eram realmente especialistas e tinham um know-how muito importante, que foram para a reforma ou mudaram de carreira. Em lugares importantíssimos para embaixadores, como Bruxelas, em vez de nomear especialistas do Departamento de Estado, Trump nomeou indivíduos que fizeram donativos para a sua campanha. Isso mandou um sinal importante para os aliados. Por um lado, tivemos várias embaixadas que por anos não tiveram embaixadores, uma falta de interesse em manter os canais abertos com os aliados. Depois, também tivemos nomeações políticas para posições de muita influência. Claramente, com Biden, vamos ter um retorno e um fortalecimento do Departamento de Estado, que é vital para relançar a aliança transatlântica. Biden começará com as coisas mais simples, como voltar à Organização Mundial da Saúde, ao Acordo de Paris, em normalizar o comércio internacional.
Será o fim da guerra das tarifas?
Até que ponto será fácil, ou rápido, modificar tudo isto e os Estados Unidos voltarem a ter o lugar que tinham antes de Trump no panorama internacional?
Algumas coisas serão relativamente rápidas. Voltar ao protocolo com o Irão, por exemplo, às questões ambientalistas, Organização Mundial da Saúde, tudo isso será relativamente fácil e rápido. Agora, os Estados Unidos perderam muito soft power nos últimos quatro anos, e perceber até que ponto a confiança internacional pode ser reposta na liderança dos EUA é uma grande questão. Não tenho a certeza de que isso pode acontecer do dia para a noite só com a mudança de liderança. O que estou a dizer é que houve um abalo muito grande na confiança internacional de que os Estados Unidos são o país que deve liderar a ordem internacional liberal.
Mesmo com as reações à vitória de Biden?
Neste momento, mesmo com o Biden, não acho que será uma transição automática. Vai ter que haver um processo de restabelecer a confiança com os nossos aliados e a reconstrução do soft power dos Estados Unidos. O soft power não se cria de um dia para o outro. O retorno às alianças, tratados, acordos, instituições, é fácil. Teremos mais diplomacia e menos unilateralismo, que é isso que o resto do Ocidente quer. Mas em termos de soft power a montanha ainda tem de ser escalada. Vai demorar mais algum tempo para os Estados Unidos recuperarem o tipo de posição e hegemonia que tinham, mesmo dentro da aliança transatlântica. A perda do soft power traduz-se numa perda de confiança. Os europeus perceberam que já não podem contar com os Estados Unidos ao mesmo nível e no futuro para manter a segurança no continente europeu, que eles próprios têm de avançar.
E principalmente porque a ameaça do trumpismo se mantém.
É isso. É que agora temos um presidente que também não quer ficar mais do que um mandato. Daqui a quatro anos podemos estar outra vez numa posição em que temos ou o Trump ou um Trump 2.0, alguém que adira mais ou menos à mesma linha e que consiga mobilizar o eleitorado com as mesmas questões. Quatro anos não é muito tempo para desfazer o que foi feito. Em quatro anos, sobretudo quando pensamos que Biden poderá não ser o candidato à reeleição, é um momento muito frágil. Pode ser um interregno, e há medo disso: que a seguir venha Trump ou outro candidato que desestabilize outra vez a situação. Por isso é importante que os democratas consigam ganhar o Senado, para que as decisões, mesmo em termos de acordos internacionais, possam ser ratificadas.
Retomar o controlo do Senado é provável ou apenas possível?
Vamos ver o que acontece na Georgia. Há uma boa probabilidade, mas tudo é possível. Tanto o Partido Republicano como o Partido Democrata vão lançar milhares de milhões de dólares para as corridas na Georgia por essa mesma razão. Porque tanto a nível doméstico como a nível internacional isso vai ditar muito a base de poder que o presidente tem.