Morreu há dias um gigante do jornalismo, o americano Henry Kamm, que ganhou ao serviço do The New York Times um prémio Pulitzer pelas reportagens sobre os Boat People, os refugiados vietnamitas que fugiram do país depois do triunfo comunista em 1975. Quem me enviou o link do obituário foi Dennis Redmont, ele próprio um grande jornalista americano, com família portuguesa e que vive em Lisboa depois de ter liderado a partir de Roma a AP no Sul da Europa, nunca deixando de cobrir conflitos e outros eventos. Um muito jovem Redmont foi correspondente em Lisboa nos anos 60 e teve sérios problemas com a PIDE pelo que noticiou..Tanto no New York Times como no Le Monde, o obituário era ilustrado com uma fotografia de Kamm a falar com João Paulo II e Redmont está lá também, de gravador na mão, uns bons anos mais jovem do que aquele a quem classificava de mentor..O que me chamou mais a atenção na biografia de Kamm foi o ser um judeu nascido na Alemanha, numa cidade hoje polaca, e ter chegado como refugiado aos Estados Unidos aos 15 anos, mas assim que fez 18 se ter oferecido para lutar contra o nazismo, combatendo na Bélgica e na França. O jovem Hans passou a chamar-se Henry quando desembarcou na América e é evidente que a sua história de vida se refletiu na forma como cobriu os acontecimentos da Guerra Fria. Ele próprio um refugiado, percebe-se bem porque reagiu antes de toda a gente ao drama dos Boat People, deixados ao abandono nos mares..Também conta o New York Times que Kamm chegou a Portugal de comboio com a família e partiu para a América em 1941 num cargueiro português, mais um dos muitos milhares de judeus (e não só) para quem a neutralidade portuguesa foi a via para a salvação..Pedi a Redmont que me contasse um pouco sobre o seu amigo Kamm (que foi correspondente em Moscovo, Tóquio, Paris, etc) e como se relacionava com Portugal, ele que conheceu o país em várias épocas: "Henry foi um dos últimos sobreviventes da "Grande Geração" de gigantes do jornalismo, e eu o considero um dos meus mentores. Podia analisar uma situação em cinco línguas e produzir prosa num ritmo prodigioso com pormenores, valendo-se da sua herança judaico-polaca. Por exemplo, quando entrevistámos João Paulo II a bordo do avião papal no regresso da Nigéria e do Benim, em 1982, Henry dirigiu-se ao Papa com algumas expressões polacas e este descongelou. Já antes, entendera o triste legado do colonialismo português durante uma viagem de cinco semanas pela África em 1974, na qual afirmou categoricamente "o teto dos negros parece o chão do homem branco" num diário de viagem publicado no NYT sobre a descolonização. Portugal foi para Henry a salvação durante a sua fuga como refugiado da Segunda Guerra Mundial e era muito ligado ao país e às suas gentes"..Kamm morreu a 9 de julho com 98 anos. Entre as muitas outras grandes reportagens que fez, além da dos Boat People, destaco a cobertura da Primavera de Praga em 1968, essa tentativa de construir um socialismo de rosto humano na Checoslováquia que os tanques soviéticos destruíram..Se há figuras que nos ensinam muito, Henry Kamm é uma delas. Através dele podemos perceber tantas facetas trágicas da história do último século, mas também como o jornalismo, o grande jornalismo, que olha para a nossa rua mas também para o resto do mundo, é essencial..Diretor adjunto do Diário de Notícias