Horas antes de Vladimir Putin ter anunciado o reconhecimento das repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk certamente terá sabido da nova greve de fome de Mikheil Saakashvili, um antigo presidente da Geórgia acusado de abuso de poder e detido quando em outubro do ano passado regressou ao seu país. E o irónico da situação é que, antes da liderança ucraniana, o atual presidente Volodymyr Zelensky e o seu antecessor Petro Poroshenko, ter desafiado Moscovo, era Saakashvili o político que na antiga União Soviética mais tinha ousado ir contra o Kremlin..Pró-americano e entusiasmado com a tal promessa de adesão à NATO feita meses antes na Cimeira de Bucareste, o então presidente georgiano reagiu no verão de 2008 a ataques dos separatistas e ordenou uma reconquista do controlo sobre as repúblicas secessionistas da Abcásia e da Ossétia do Sul. O resultado daquela guerra em agosto foi uma intervenção russa, a derrota georgiana e o posterior reconhecimento por Moscovo da independência abcase e osseta. Desde então, dividida entre lutas políticas internas, a Geórgia saiu do primeiro plano da atualidade e nunca mais recuperou a integridade territorial. E Saakashvili, que continua a ter muitos apoios dentro e fora do país, tornou-se uma figura imprevisível, tendo chegado a adquirir a nacionalidade ucraniana e logo nomeado governador de Odessa, de onde saiu pela porta pequena. Será arriscado, porém, dar por finda a sua carreira política, num espaço pós-soviético cheio de incertezas..Ora, aquilo que Putin fez agora na Ucrânia - e tinha já feito há 14 anos na Geórgia, quando era temporariamente primeiro-ministro mas mandava mais do que o presidente Dmitri Medvedev - é uma cartada forte para atingir o seu óbvio objetivo de pôr Moscovo à frente das repúblicas saídas da União Soviética, com a notável exceção dos países bálticos, membros da UE e da NATO desde 2004..Sim, o objetivo é reconstruir uma espécie de tutela sobre o antigo espaço soviético, que na realidade era também em boa medida o herdeiro do império czarista. E este reconhecimento de Donetsk e Lugansk tem de ser compreendido como apenas um passo. Putin não quer somar à Rússia uma série de confetis chamados Transnístria (na Moldávia e que até não foi ele que criou), Abcásia ou Donetsk povoados por russos ou filorrussos. Esses territórios apenas servem para paralisar qualquer tentativa dos países onde se integram de procurar sair da influência de Moscovo. A melhor prova disso é Putin nunca ter cedido aos apelos dos ultranacionalistas para anexar o extremo norte do Cazaquistão, onde são milhões os russos. A sua ideia é ter todo o Cazaquistão como aliado seguro, mesmo tolerando certa abertura a outras potências para efeitos de investimento. E o mesmo vale para a Ucrânia. Se puder, Putin tentará tê-la de novo na íntegra à sua mercê. A anexação da Crimeia em 2014 foi um primeiro e grande aviso..Perante as ações preparadas ao milímetro por Putin, incluindo o provável envio de tropas para a região do Donbass, haverá agora o risco de uma resposta militar desesperada da Ucrânia. Já da parte da NATO, o provável são novas sanções contra a Rússia e uma solidariedade com Kiev que pode passar por fornecimento de mais armas, mas mesmo isso está longe de ser unânime. A diplomacia tem mesmo de fazer o seu papel..São muitas as desvantagens da Rússia numa disputa aberta com a NATO, e só em termos nucleares o poder militar é hoje equilibrado. Mas Moscovo conta com a determinação que não existe no Ocidente. Ele tem mais a ganhar do que os Estados Unidos e os aliados europeus. Putin, que considera a desagregação da União Soviética em 1991 a maior tragédia geopolítica do século XX, está decidido a recuperar a antiga Rus de Kiev, o primeiro Estado medieval russo, tal como não desiste de controlar essa Geórgia que é pátria de José Estaline. Arrisca muito para isso? Arrisca, pois fomenta em boa parte das populações das repúblicas cobiçadas a aversão a Moscovo e põe o mundo às avessas com a Rússia. Mas quando pensa em Saakashvili provavelmente sente-se reforçado.