Combateu por Catarina a Grande e Napoleão, foi herói português e acabou enforcado
Nascido em 1757 em Viena, capital onde o pai era embaixador de Portugal, Gomes Freire de Andrade recebeu uma esmerada educação, muito beneficiada por ter vivido até aos 24 anos no coração do império dos Habsburgos.
A própria mãe de Gomes Freire pertencia a uma família nobre da Boémia, um dos muitos territórios então sob a alçada dos soberanos da Áustria, os mais poderosos de todos os reis e príncipes de língua alemã na época.
E surpreendeu todos com a força da sua personalidade e com a sua bravura física, assim que chegou a Portugal em 1781, no reinado de D. Maria I e foi prestar serviço militar em Peniche, como cadete. Em 1784 já recebia louvores pela coragem num ataque a Argel, praça de corsários árabes, em que Portugal enviou navios de apoio a uma operação punitiva liderada pela Espanha. Foi uma efémera passagem pela marinha pois seria sempre um homem do exército, com promoções e condecorações, combatesse por Catarina, a Grande contra os otomanos ou os suecos, pelos prussianos contra os exércitos republicanos franceses, por Portugal contra também os franceses e depois contra Espanha na Guerra das Laranjas ou finalmente por Napoleão pela Europa fora.
"Penso que o currículo militar do general Gomes Freire de Andrade fala por si: um militar exemplar que serviu e foi elogiado e condecorado pelo seu desempenho ao serviço do exército português, do exército russo e mais tarde do exército francês de Napoleão; um estratega na forma como viu e implementou as reformas militares em Portugal, um comandante militar que comandou e participou em inúmeras campanhas um pouco por toda a Europa... era um homem à frente do seu tempo", afirma o tenente-coronel Luís Bernardino, autor de um sólida nota biográfica do general publicada na Revista Militar.
Acrescenta o militar, lembrando a execução em 1817, por alegada conspiração contra a Coroa, que "o general Gomes Freire de Andrade se evidenciou não só pela forma como viveu, mas também pela forma como morreu. Sendo alvo de inúmeros interrogatórios, viria a ser sumariamente acusado e lavrada sentença de acusação, vindo a ser acusado de liderar uma conspiração contra o absolutismo vigente, é sentenciado à forca, tendo sido executado por enforcamento, pelas cinco horas da manhã do dia 18 de outubro de 1817, fora da Fortaleza de São Julião da Barra". Não lhe permitiram usar nem o uniforme e foi-lhe cortada a cabeça, o corpo queimado numa fogueira e as cinzas lançadas ao mar.
Sublinha o tenente-coronel que o currículo militar e o exemplo de vida levou a que Gomes Freire de Andrade seja "das personalidades mais estudadas e referidas no contexto dos estudos militares". Só a Revista Militar, ao longo das décadas, publicou mais de cem artigos sobre o general. Mais recentemente, "alguns autores militares têm destacado também a dimensão político-militar, talvez na descoberta de um paradigma que liga e identifica o general Gomes Freire de Andrade com a forma de Portugal se posicionar face à dimensão militar da invasão francesa do general Junot e à dimensão política da luta pelo liberalismo", diz ainda Luís Bernardino.
Tendo sido iniciado na maçonaria numa das suas estadas por terras alemãs, o general martirizado chegou a ser grão-mestre em Portugal, e a sua execução por iniciativa de William Beresford, o general inglês que mandava em Portugal devido à longa ausência de D. João VI no Brasil, terá sido um dos motivos de indignação que levaram à Revolução de 1820, de forte inspiração maçónica.
Em termos de referência hoje para as Forças Armadas, o tenente-coronel Luís Bernardino destaca que Gomes Freire de Andrade "tem uma ligação histórica muito forte ao Exército e principalmente à Academia Militar, principalmente quando em 1801 assume as funções na Divisão d'Entre Douro e Minho, tendo editado uma das suas obras de referência, Ensaio sobre o Methodo de Organizar em Portugal o Exército, onde na epígrafe surge uma frase em latim que constituiu o seu lema de vida - ... dulce et decorum est pro patria mori... - e que constitui a divisa de honra da Academia Militar atualmente."
E acrescenta: "O general Gomes Freire de Andrade constitui, no contexto das personagens militares estudadas nas escolas militares em Portugal, um caso, para não dizer inédito, muito pouco vulgar. Tão raras vezes uma personagem militar motivou, para além do seu tempo, uma abordagem tão holística e diversificada de assuntos e de tão diferentes perspetivas. De facto, existem artigos no âmbito da história militar, do comando e liderança, da política e da estratégia e até no âmbito da organização superior do Exército e até no contexto da pedagogia e do ensino militar. Se existem personalidades militares, nomeadamente oficiais generais, que fazem parte da nossa mui rica história militar, existem ainda personalidades militares que pela contingência da complexidade da época em que viveram, pela circunstância da vida que foram escrevendo e alguns pela forma como morreram, os tornaram figuras sempre presentes no ideal do jovem cadete que estuda na Academia Militar, no do oficial superior que frequenta o Curso de Estado-Maior e no do oficial general que serve o Exército e Portugal".
O fascínio por Gomes Freire de Andrade vai muito além dos militares. E se os políticos liberais portugueses do século XIX o tomaram como inspirador, também os republicanos da passagem do século XIX para o XX o fizeram. Teófilo Braga, que a 5 de outubro de 1910 foi o presidente do governo provisório republicano, escreveu anos antes uma peça dedicada àquele que chegou a ser chamado de "o general sem medo". Aliás, a ousadia verbal de Gomes Freire de Andrade (capaz de comunicar a Napoleão que não contasse com ele para a terceira invasão francesa de Portugal) é outra das suas características notáveis, que os inimigos usaram para o denegrir como brigão mas os admiradores nunca se cansaram de enaltecer: o escritor Raul Brandão, que foi militar e escreveu já como civil uma biografia do general, afirmava que Gomes Freire de Andrade "tinha o coração ao pé da boca".