Dos 100 aos zero: o trabalho dos guias desapareceu em plena época alta

Zero trabalho, zero rendimentos. É assim que estão a viver estes dias de pandemia os guias que fazem percursos turísticos, "apanhados" no período de maior atividade do ano. E com a retoma muito longe no horizonte.
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Nesta altura do ano Maria Reis devia estar a dividir o seu dia entre o Templo Romano e a Sé Catedral de Évora, com provável passagem pela Capela dos Ossos, acompanhada por uma numerosa audiência - poderiam ser brasileiros, norte-americanos, chineses, italianos ou espanhóis. Se não fossem uns eram outros, a Évora não têm faltado turistas nos últimos anos e estamos em plena época alta para os guias que acompanham visitas organizadas de grupos. Como se adivinha, Maria Reis não está a fazer nada disto. A pandemia acabou com as viagens organizadas, os grupos de turismo, os percursos culturais. Acabou com o trabalho de Maria. Por quanto tempo é a grande incógnita que se levanta. E as perspetivas são tudo menos animadoras.

Zero trabalho, zero rendimentos: foi assim que ficou toda a classe profissional dos guias-intérpretes (mais conhecidos como guias turísticos, mas esta é uma designação que os próprios não reconhecem, por não distinguir quem tem certificação). Os cancelamentos começaram a surgir ainda em fevereiro e dispararam em março, até tudo ficar congelado com as limitações ao transporte aéreo e o fecho das fronteiras.

Isabel Correia, que trabalha habitualmente na zona de Lisboa, começou a receber cancelamentos nos primeiros dias de março, sobretudo do mercado italiano. Depois, vieram todos os outros. "Não trabalho desde 14 de março", conta ao DN. Mais assustador que olhar para trás, é olhar para a frente: "Não temos perspetivas de trabalho, daqui a seis meses não vamos ter trabalho, é uma perspetiva assustadora. Sou guia há 20 anos, mas já pensei se vou mudar de vida...", diz Isabel Correia, ainda atónita com tudo o que aconteceu no último mês e meio: "Parece que levei uma pancada e ainda não recuperei, ainda estou dormente".

Embora trabalhem com agências de viagem, na esmagadora maioria dos casos os guias - os certificados - são trabalhadores independentes que prestam serviços a várias agências. Se não há trabalho, não há salário. "Os nossos rendimentos, neste momento, são zero. Estamos a viver do que conseguimos aforrar nos últimos anos, que foram anos bons", remata Isabel Correia. Em geral, os guias têm acesso ao programa de apoio aos recibos verdes mas, até agora, ainda ninguém recebeu nada.

"Este ano está perdido"

Este ano também tinha tudo para ser bom. "Dadas as reservas que estavam feitas, previa-se outro ano bom. Está perdido", vaticina Maria Reis, que não acredita que os turistas voltem rapidamente: "Mesmo que a situação melhore em Portugal, que deixem de aparecer novos casos, enquanto a situação não estiver estável noutros países europeus, não adianta". Até porque muitos dos visitantes que chegam de outros continentes, dos Estados Unidos, do Brasil ou do mercado asiático vêm a Portugal no âmbito de périplos que fazem pela Europa.

Para estes guias, o período que se segue à Páscoa - abril, maio, junho - é a época alta de trabalho, que decresce nos dois meses seguintes, em que o turismo é sobretudo de praia. E volta a ter uma acentuada subida no outono, em setembro/outubro/novembro, uma época que, à partida, tem poucas hipóteses de não estar também condenada.

"Tenho três crianças, é uma situação muito complicada", diz esta guia que há anos trabalha em Évora. "Fomos dos primeiros a sofrer [as consequências da pandemia] e seremos dos últimos a retomar", lamenta.

Cristina Leal, presidente da AGIC, Associação Portuguesa dos Guias-Intérpretes e Correios de Turismo (estes últimos são os guias que organizam viagens para o estrangeiro) também não vê uma retoma da atividade normal no horizonte de curto/médio prazo - "Provavelmente só para a Páscoa de 2021".

Nem mesmo uma possível retoma do mercado interno anima estes profissionais de informação turística, que trabalham esmagadoramente com público estrangeiro, que viaja em grupo e é, sobretudo, composto por seniores - uma espécie de tempestade perfeita, à luz da situação atual.

Cristina Leal defende que, quer as agências de viagens quer os guias-intérpretes terão de reinventar as viagens organizadas, criando novas regras e eventualmente trabalhando com grupos mais pequenos.

"Não vai ser fácil", antecipa. "O que fazemos agora é viver o dia-a-dia. Vamos vivendo das nossas economias, os que as têm e há muita solidariedade entre os pares", diz ao DN.

Paulo Cosme, secretário-geral do Sindicato Nacional de Atividade Turística, Tradutores e Intérpretes (SNATTI), que trabalha sobretudo na cidade do Porto e região norte, não tem uma perspetiva muito diferente, mas ainda não fecha totalmente a possibilidade de alguma atividade, mais para o final do ano: "Esta época que se inicia na altura da Páscoa foi toda cancelada. Tenho a agenda toda cancelada até junho. Muitos grupos estão a ser passados para outubro/novembro ou para 2021".

O responsável sindical sublinha que "90% do trabalho dos guias-intérpretes é feito com agências de viagens e este trabalho ficou reduzido a zero". Estes profissionais estão, em geral, abrangidos pelo programa criado pelo Governo para apoiar os recibos verdes, recebendo um valor máximo de 658 euros (uma vez e meia o Indexante de Apoios Sociais). E a alteração legislativa que dá acesso aos apoios a sócios-gerentes sem trabalhadores a cargo acabou por abarcar muitos casos entre os guias de percursos turísticos. Mas Cristina Leal sublinha também que há muitos profissionais que ficam fora do apoio do Estado já que fecham atividade nos meses de inverno, em que o volume de trabalho cai muito consideravelmente.

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