Foi uma polémica pública importante no último mês. O chamado "museu Salazar" motivou uma petição, um debate entre historiadores e a habitual polarização de comentários prós e contra nestas situações. A Comissão Permanente do Parlamento, na única sessão realizada entre as férias e as eleições legislativas do próximo dia 6 de outubro, decidiu votar contra a criação do museu (com PS, BE, PCP e PEV a votarem nesse sentido, e a abstenção de PSD e CDS). Mas, longe dos olhares do debate público aberto, o assunto também foi levantado, de outra forma..A mentira mais difundida nos últimos dias no Facebook, em Portugal (mais de 1,6 mil gostos, 888 comentários e 726 partilhas) foi publicada no dia 11 de setembro, à tarde, por um utilizador que assina como José Manuel, num dos grupos mais populares da rede social, o célebre "grupo de apoio ao juiz Carlos Alexandre", que tem mais de 100 mil membros. Diz assim: "Querem apagar a história, que canalhas! Então derrubem a ponte Dr. Oliveira Salazar, derrubem o hospital Santa Maria, Dona Estefânia, São Francisco Xavier, Egas Moniz, IPO, da Cruz Vermelha e outros. Derrubem a fundação Gulbenquia. Arranquem todas as escolas industriais que ainda existe como Secundária. Não queriam porque não deixavam os canalhas deixavam mamar" (citação exata da mensagem)..Descontando o mau português do texto, os factos em que se baseia são quase todos errados. Dando de barato que a mais antiga ponte sobre o Tejo, em Lisboa, recebeu o nome de Salazar, e que o Hospital de Santa Maria foi inaugurado em 1953, durante o Estado Novo, os exemplos seguintes são todos falsos registos históricos da ditadura. Os hospitais da Estefânia (1877) e Egas Moniz (1902) são obras da monarquia. O IPO remonta a 1923, na Primeira República, e foi inaugurado em 1927 - quando Salazar não integrava o governo. O corolário deste exercício de memória é o recente Hospital de São Francisco Xavier, inaugurado em 1987, durante o primeiro mandato de Cavaco Silva como primeiro-ministro, que aqui também aparece como um legado da ditadura. Quer a Fundação Gulbenkian quer a Cruz Vermelha, sendo organizações internacionais privadas, não devem a sua criação, naturalmente, a qualquer intervenção de Salazar..Esta enumeração, e reprodução, de erros fáceis de desmentir numa mentira histórica ajuda-nos a perceber o tom de uma campanha, muitas vezes escondida, e muito eficaz, que se desenrola longe dos holofotes dos debates e dos comícios. Por isso, o DN e o MediaLab do ISCTE estão a analisar, em permanência uma amostra que inclui mais de 40 páginas de Facebook que foram detetadas a publicar mensagens propositadamente enganadoras, os 40 grupos temáticos mais importantes e, desse conjunto, que tem em comum o facto de publicar textos políticos, fazer um ranking com as mensagens mais difundidas e, dentro dessas, identificar as que promovem a desinformação. Essa lista de páginas é liderada por uma que se chama "O país do mete nojo" (com mais de 35 mil membros). No conjunto, estas páginas têm mais de 1,36 milhões de seguidores no Facebook. Numa só semana, entre finais de agosto e inícios de setembro, estas páginas publicaram mais de 1480 textos, vídeos e fotografias. A história sobre Salazar é a quinta com mais interações, como revela esta pesquisa dos investigadores Gustavo Cardoso, Ana Martinho, José Moreno, Miguel Crespo, Rita Sepúlveda, Inês Narciso, José Nuno Pereira e Nuno Palma..O MediaLab está a verificar também os posts mais "virais" (com mais interações) deste conjunto de páginas e grupos com conteúdo maioritariamente político. Na análise feita na semana de 7 a 14 de setembro, 15 das 17 mensagens mais difundidas apresentavam conteúdos enganadores..Com mais de mil gostos, 970 partilhas e 438 comentários, há um exemplo mais atual. José Sócrates aparece, numa foto, abraçado ao juiz Ivo Rosa. O título diz: "Sócrates vai ser interrogado pelo AMIGO Ivo Rosa no final de outubro!" A mensagem é toda ela falsa, da fotografia ao título. E vem assinada por um repetente nestas tentativas de manipulação, Mário Gonçalves, ex-presidente da secção do CDS de Monforte que, em novembro passado, pôs a circular outra mentira - a de que António Costa tinha processado judicialmente um fotógrafo da Reuters..Desta vez, António Costa não aparece na fotografia, mas ela insinua-o. É que a foto de Sócrates abraçado a Ivo Rosa é uma fotomontagem (bastante evidente) em que a cara do juiz é acrescentada (sobredimensionada) numa célebre foto de Sócrates com Costa. Falta referir que, além da manipulação da foto, a referência à amizade entre o arguido e o juiz é, também ela, falsa..Incêndios e familygate.Um dos desafios deste projeto de "monitorização de propaganda e desinformação nas redes sociais", iniciado em março de 2019, é o de identificar os temas mais relevantes usados pelos difusores de fake news em Portugal. Por isso, desde o início, tentámos perceber se os assuntos dominantes da desinformação coincidem com o resto da Europa (discurso antirrefugiados, racismo) ou se aproximam mais do que foi identificado, recentemente, no Brasil, com a corrupção a liderar o pretexto para a criação de mentiras com impacto público..Os grupos mais populares no Facebook português, que partilham conteúdos maioritariamente políticos, parecem privilegiar a corrupção. Além do grupo de apoio a Carlos Alexandre, completam a lista dos cinco maiores o "Portugal a rir", "A indignação e a revolta", "Os reformados no Facebook" e o "Contra a esquerda"..Nesse emaranhado de temas alusivos à corrupção - nepotismo, influência, promiscuidade, gestão de serviços públicos - António Costa é, nesta semana analisada, o político mais visado pelas fake news. Aparece, por exemplo, numa que se tornou muito popular, numa foto real, abraçado ao autarca de Pedrógão Grande. A acompanhar a imagem uma citação, que lhe parece ser atribuída: "Estamos com Valdemar Alves". Mas a foto é de 2017, tirada na cerimónia de homenagem às vítimas do incêndio, e a frase não é de Costa - é do presidente da distrital de Leiria do PS. Para "enquadrar" a acusação, o autor da mensagem falsa, Álvaro Lopes, faz uma insinuação sobre o familygate, a polémica sobre a nomeação de familiares de membros do governo para cargos públicos, que não tem qualquer ligação com a realidade neste caso..É assim em vários outros temas. Um assunto real, como o dos incêndios de 2017, é usado agora com fotografias erradas (tiradas noutros países) ou com alusões a outros escândalos, também eles reais, mas que não se relacionam com aquele..O crescimento do discurso de ódio.Mas esta pesquisa revela, também, que a tendência europeia de produzir fake news sobre refugiados já tem seguidores em Portugal. O primeiro exemplo de desinformação racista aparece com 950 gostos e 429 partilhas e foi publicado na página de apoio a Carlos Alexandre, no dia 9 de setembro. É um artigo do El Correo, sobre violações na Índia, apresentado pelo utilizador Pedro Coimbra com a frase "nunca se esqueçam, nós deixámo-los entrar..." Esta manipulação é quase total, porque deixa subentendida a mensagem de que o assunto se refere à presença de refugiados, ou migrantes, em Portugal, quando, na realidade, o texto partilhado fala apenas sobre a situação da Índia. A notícia em causa é de 2015..No mesmo grupo do Facebook, com quase o mesmo número de interações, está outra mensagem racista evidente: "Nao se esqueçam que a maioria dos refugiados sao dessas zonas e tem todos a mesma mentalidade .....é altura de lutarmos pelos nosso filhos!" (mensagem transcrita com os erros originais). Este comentário antecede um link para um texto sobre escravidão sexual no Afeganistão. A pesquisa do MediaLab foi mais longe, neste caso, e descobriu que a foto usada para transmitir esta mentira já foi usada por outros sites de fake news noutros países, no passado: "Obama promove a pedofilia" é um dos exemplos encontrados, "Tropas dos EUA fecham os olhos quando as crianças são violadas" é outro. Tudo, neste texto racista, pode ser desmentido assim, com factos claros. Segundo os últimos dados oficiais disponíveis houve 32 pedidos de asilo de cidadãos afegãos para Portugal em 2017. Foram todos rejeitados. A frase sobre a "mesma mentalidade" é típica dos argumentos classificados por todas as organizações internacionais como "discurso de ódio"..Muito popular também, no mesmo grupo, é outra mensagem racista totalmente falsa. "Racismo é pagar 600€ a um refugiado e pagar 450€ a um reformado." A rima pode funcionar, mas não há nenhum traço de realidade na afirmação nem nos números..Como verificámos, ao longo da investigação europeia que o DN integrou em 2019, uma das páginas de fake news mais ativas na Europa chama-se Voice of Europe e tem sede na Holanda. É uma das fontes relevantes destas páginas e grupos em análise em Portugal, sendo mais partilhada, por exemplo, nesta semana analisada pelo MediaLab, do que o Correio da Manhã..Em cima do arranque da campanha eleitoral para as legislativas é opinião de Gustavo Cardoso que "a desinformação nas redes é essencialmente produto de estratégias individuais de não militantes partidários. O objetivo destas pessoas será, então, o de "dissuadir cidadãos de votar nos partidos que apoiaram a anterior solução governativa, abstendo-se ou dando os votos a novos partidos do centro-direita ou ainda impedindo que partidos como o PAN aumentem o seu score eleitoral", avalia o professor do ISCTE. Já sobre os partidos presentes na AR e as suas estratégias nas redes sociais, "todos parecem ter aprendido com erros anteriores e ninguém quer minimamente arriscar a sua reputação e perder votos por causa de campanhas de desinformação - mas ninguém nos partidos manda a 100% nos seus militantes pelo que na era da Informação a desinformação nunca é controlável", adverte Gustavo Cardoso..Ao longo das próximas semas o DN e o MediaLab continuarão a pesquisar a difusão de fake news na campanha eleitoral portuguesa, a tentar verificar estes conteúdos e a avaliar o alcance das redes de difusão criadas na principal rede social, com mais de seis milhões de utilizadores registados em Portugal.