"É graças a Magalhães que conhecemos a Terra tal como ela é"
Entrevista ao historiador José Manuel Garcia, autor do livro Fernão de Magalhães - Herói, Traidor ou Mito: a história do primeiro homem a abraçar o mundo.

© José Manuel Garcia
Faz nesta quarta-feira 500 anos que Fernão Magalhães entrou no estreito que hoje tem o nome dele - a ligar o Atlântico ao Pacífico, através do atual Chile. Foi o ponto-chave da extraordinária viagem deste português ao serviço de Espanha?
Foi. Podemos dizer que foi o coroar da vitória da tão procurada ligação, ou passagem, entre o Atlântico e o Pacífico. Fernão de Magalhães comprometeu-se perante o imperador Carlos V - Carlos I de Espanha - a que, tal como os portugueses tinham encontrado no cabo da Boa Esperança uma ligação entre o Atlântico e o Índico, ele conseguiria encontrar, mais ou menos pela mesma latitude - por volta de 34/35 graus, que seria na zona do rio da Prata - uma passagem que desse ligação do Atlântico para o Pacífico. Não encontrou aí, mas muito mais a sul. A 52/53 graus, muito mais longe, e com muito sacrifício, mas Fernão de Magalhães estava mesmo decidido a ir até aos 75 graus - isto é preciso saber as latitudes para se compreender de facto que foi um feito fantástico. Ele com todas as condições adversas conseguiu, no dia 21 de outubro de 1520, atingir o seu ponto máximo da expedição. Porque há duas grandes fases na expedição de Fernão de Magalhães. A primeira é descobrir a passagem e, depois, a seguir, é aproveitar a sequência da passagem e descobrir o maior oceano da Terra, o Pacífico. Portanto, são duas grandes ações. Dois grandes descobrimentos que ele realiza e que lhe permitem coroar de êxito a sua viagem.
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Mas antes de chegar ao Pacífico - que batiza assim - Magalhães tem de fazer cerca de 600 quilómetros no estreito. O professor esteve lá nesse estreito e esteve lá mais ou menos nesta altura, em outubro. É primavera austral mas, mesmo assim, é muito frio.
É, é muito difícil de suportar aquele clima, porque está por volta de zero graus - um bocadinho mais de zero graus - mas comparado com aquilo que eles já tinham sofrido na atual Argentina até não era nada mau. E, portanto, digamos que eles tinham estado à espera na Argentina de condições favoráveis para poderem enfrentar, e poderem navegar - porque enquanto eles estiveram à espera, digamos, do que chamavam o verão, não podiam movimentar-se na Argentina. Praticamente só no dia 18 de outubro é que eles saem da Argentina e conseguem, finalmente, no dia 21, chegar ao estreito hoje no Chile. Porque as condições eram muito más. Aquelas montanhas, do estreito de Magalhães, estão todas cobertas de neve. Portanto aquilo é tudo complicado, um vento muito forte, correntes muito fortes - embora o estreito de Magalhães seja razoavelmente largo, exceto na entrada que é mais estreita, mais ou menos a distância que vai de Belém à Trafaria, na foz do Tejo. Dá para passarem perfeitamente os navios. Portanto, são as condições atmosféricas e as correntes marítimas que, nesses 600 quilómetros, tornam difícil a navegação. E, sobretudo, porque tem muitas ilhas e tem muitos contornos difíceis, mas, mesmo assim, os navios, com a mestria de Fernão Magalhães e dos seus pilotos, conseguiram. Só que ele teve lá grandes problemas porque a nau Santo António fugiu e isso atrasou-lhe muito a saída para o Pacífico - só saiu no dia 28 de novembro. E, portanto, perdeu muito tempo...
Magalhães está mais de um mês no estreito, mas não precisaria de tanto tempo...
Não. Teoricamente, de facto, os 600 quilómetros poderiam ser feitos calmamente, para se explorar - vamos imaginar numa semana, no máximo duas, nem isso... Depois no Pacífico, por exemplo, Fernão de Magalhães chega a fazer dias em que anda quase 200/300 quilómetros. Portanto, ele conseguia um bom ritmo se tivesse condições. Ali não. Ali, tinha de explorar, tinha de ver as condições, o estreito não é fácil de navegar. Mas a demora foi devido ao problema da fuga do navio e também do reabastecimento que tiveram de fazer entretanto para poder enfrentar o Pacífico.
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O estreito é no atual Chile, Magalhães esteve antes na Argentina. Na Argentina, caçam pinguins e leões-marinhos para se abastecerem. No estreito também se preocupam em levar mantimentos para a travessia do Pacífico. O que é que conseguiram lá apanhar?
Eles basicamente apanharam peixe, que era abundante e bom, e que havia lá. Ainda hoje esse peixe é bastante no estreito, peixe que era a base da alimentação, enquanto se podia salgar e comer fresco. Mas também o segredo da alimentação foi eles terem apanhado o aipo-selvagem, no chamado rio das Sardinhas - que era de facto uma zona onde havia muita sardinha, ou peixe equivalente à sardinha. O aipo-selvagem era uma planta que dava para comer ao natural, lá, enquanto estavam no estreito, e que depois puseram em vinagrete. Conseguiram conservar o aipo em vinagre e tinham vitamina C. De modo que, por causa disso, entre o estreito de Magalhães e a ilha de Guam - já quase perto das Filipinas - só morrem nove pessoas da expedição. De escorbuto, o que mostra bem que a vitamina C resultou nesses navios. É curioso que eram três navios, na armada de Fernão Magalhães dessa altura, e essas nove pessoas morrem na nau Vitória, que era uma nau que não tinha o tal aipo em vinagrete e, portanto, não levavam esse suplemento de vitamina C. É um fenómeno curioso que nós vemos, serem as nove vítimas da Vitória, porque a Vitória tinha andado à procura da nau Santo António e não tinha recolhido o aipo. Portanto o aipo é o segredo do sucesso... mesmo assim passaram muita fome, tinham de comer ratos e couro, porque não tinham alimento e estava tudo degradado, não tinham água...
Há pouco falou da nau Santo António, que se vai embora, porque não quis enfrentar a travessia, nem, depois, o Pacífico. Houve sucessivas revoltas... Magalhães, quando nós temos de pensar nele, é, além de um homem arrojado e de ter conhecimento científico para arriscar esta viagem, um grande comandante de homens. É alguém que não desiste de um objetivo.
Sem dúvida que ele é o símbolo máximo de resistir contra tudo e contra todos. Quer dizer, ele vai contra os comandantes espanhóis, que não tinham experiência. Estou convencido de que os capitães dos três navios espanhóis, que vão com Fernão de Magalhães, nunca tinham entrado num barco, sequer. Exceto um quarto comandante, que era o Juan Serrano. Juan Serrano era piloto e capitão da nau Santiago, a nau mais pequena. Esse sim, esse espanhol tinha experiência. De resto Fernão de Magalhães era um homem com uma experiência imensa, tinha estado por todo o Oriente, desde o cabo da Boa Esperança até às Molucas, tinha uma experiência fantástica. Os pilotos, grande parte dos pilotos, eram portugueses, com muita experiência. E os espanhóis não, não tinham experiência. Daí que os espanhóis se tivessem revoltado no Puerto de San Julián e, depois, curiosamente a nau Santo António, no estreito de Magalhães, comandada pelo português Estêvão Gomes, que era, tal como Magalhães, do Porto, revolta-se e prende o primo de Magalhães, português, de Estremoz, Álvaro de Mesquita, que vai para Espanha preso. Portanto... ele recusa-se a avançar no estreito de Magalhães e recua. Enquanto Fernão de Magalhães segue, contra tudo e contra todos... embora a tripulação, ao que tudo indica, o apoiasse completamente. Porque ele era muito autoritário, mas tinha a confiança dos seus homens. Era um homem que sabia merecer a confiança dos seus homens. Praticamente os inimigos e rivais eram só, digamos, da aristocracia espanhola, enquanto a maior parte dos pilotos e tripulação era favorável a Fernão de Magalhães.
Fernão de Magalhães morre nas Filipinas. É Juan Sebastián Elcano que faz a viagem final, na nau Vitória, mas a Santo António também chega a Espanha. Portanto, na verdade, há duas naus sobreviventes, mas só uma é que fez a circum-navegação. De qualquer forma não era o objetivo de Magalhães, mesmo que não tivesse morrido, fazer a circum-navegação, certo?
Sim, essa é a parte da história que é mais difícil de explicar às pessoas. É porque as pessoas em geral dizem que Fernão de Magalhães deu a volta ao mundo. Foi ele que dirigiu e quis fazer a volta ao mundo. Ele deu a primeira volta ao mundo porque - eu explico sempre, tento explicar as etapas - ele já lá tinha estado nas Molucas, e as Molucas são ao pé das Filipinas, quando ele chega às Filipinas acaba de dar a volta ao mundo... de forma indireta, não é de seguida. O Elcano chega passados três anos de sair de Espanha, em 1519. Chega em 1522 e deu a volta toda. Mas não era essa a intenção porque o rei D. Manuel I de Portugal não permitia que os espanhóis atravessassem o Índico, nem o patrono da expedição. Carlos V, deixava que os espanhóis percorressem o oceano Índico porque isso era parte portuguesa. E Carlos V queria dar bem com o rei D. Manuel. Não autorizava. A partir do momento em que sai das Molucas com a nau Vitória - de que tinha ficado capitão já bastante tempo depois da morte de Fernão de Magalhães -, Sebastián Elcano é uma quinta escolha, porque a nau Vitória tinha sido capitaneada por vários portugueses e tinha tido uma difícil navegação. Quando toma conta do governo da nau, em Bornéu, e depois, a partir das Molucas, já bastante depois da morte de Fernão de Magalhães, é que ele vai dirigir a expedição, ilegalmente, mas - eu sublinho isto sempre - com a glória de ter sido ele que deu a primeira volta ao mundo completa. E ninguém pode discutir isso. Porque ele vai contra tudo e contra todos também. Embora fosse um homem que não tinha a experiência, nem de perto nem de longe, de Fernão de Magalhães. Ele nunca tinha navegado fora da zona da Península Ibérica e da zona do Mediterrâneo. Portanto, não tinha a experiência de Fernão de Magalhães, que tinha andado por todo o Oriente.
Dos 18 que chegam a Espanha na Vitória, quantos são portugueses?
Dois. Há dois portugueses apenas que chegam entre esses. Depois há outros dois que chegam, que estavam presos ainda nas ilhas de Cabo Verde porque a nau Vitória antes de chegar a Sevilha tinha ficado retida em Cabo Verde e ficaram lá presos 12 tripulantes, dos quais dois eram portugueses. Portanto, ao fim e ao cabo, chegaram quatro portugueses... acabaram a viagem quatro portugueses. Porque esses 12 foram libertados pelos portugueses mais tarde.
Magalhães é um herói universal. É um nome reconhecido por todo o mundo. Faz sentido ser um herói português, mesmo estando ao serviço do rei de Espanha?
Penso que sim, a partir do momento em que é português... mesmo que se tenha posto ao serviço de Espanha, pois a expedição é espanhola. É de Carlos V. Era uma expedição contra os interesses portugueses, daí ele ter sido considerado traidor. Mas verdadeiramente ele é um herói porque faz a viagem mais difícil e longa do mundo, da história - nunca tinha havido uma viagem tão difícil, e comprida, e complicada, e complexa, e dificílima. Mas, para mim, ele torna-se, como eu digo no meu livro, um mito, porque consegue, verdadeiramente, transformar-se no primeiro homem a conhecer a Terra tal como ela é. Por isso é que ele é o verdadeiro herói, na minha opinião. Porque é graças a ele que nós conhecemos a Terra tal como ela é. Já se sabia que a Terra era esférica, tudo bem, é evidente. Mas não se sabia a dimensão. E ele conseguiu, a partir do momento em que passa o estreito de Magalhães e entra pelo Pacífico, perceber que é o maior oceano. Que o planeta Terra é maioritariamente ocupado por água. Porque o Pacífico é um oceano imenso. Daí que, só nessa altura, com Fernão de Magalhães, é que se percebe que a maior parte da Terra é água. E isso é um facto fantástico. Além de que a dimensão da esfericidade da Terra é percebida porque, eu sublinho sempre isto, ele navegou 20 mil quilómetros da esfera terreste. Desde o rio da Prata até às Filipinas - ele descobriu toda essa parte do mundo - são 20 mil quilómetros. Que é metade da esfera terrestre que é medida no equador. Porque já antes 20 mil quilómetros eram conhecidos. Ele conhece os outros 20 mil. Ele conhece metade do mundo e, com isso, fica a conhecer o mundo por completo. Daí que seja um herói universal, de origem portuguesa. Porque, aliás, ele só viveu dois anos em Espanha. De resto ele esteve sempre a viver ou no Porto, na sua juventude, ou em Lisboa na maior parte do tempo, ou em Azamor, ou entre 1505 e 1513 no Oriente. Ele viveu muito da experiência no Oriente.
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